Volume 5
Capítulo 258: Cecily, Eu Te Odeio! Odeio, Odeio, Odeio… Odeio…
O abraço de Cecily não era bom, mas também não chegava a ser ruim.
Era como uma comida sem tempero, apenas servia para saciar a fome de qualquer maneira. As chances da deusa loira nem saber o que fazia eram altas, ela agiu por instinto ao ver o estado da menina encolhida no chão.
Apesar de ser algo mal-feito, foi suficiente para salvar o coração destroçado de Luminus. A sensação da armadura fria e os fios dourados tocando seu rosto era desconfortável, contudo o contato a lembrou de Loright, recordou como o seu irmão a abraçava quando tinha medo.
Sem mais conseguir conter as emoções, chorou, berrou, esperneou e cerrou as mãos com o único objetivo de se machucar.
As memórias de Mirim surgiram diversas vezes enquanto a garotinha se debatia, mas Cecily não a soltou, ficou apenas em silêncio, aguardando o momento que ela se acalmasse.
E passaram-se cinco… dez… vinte… quarenta…. oitenta minutos até Luminus parar de chorar. Na verdade, ela só não possuía mais força, seus lábios secaram e a dor nas unhas quebradas chegou a um nível infernal.
Cecily segurou a menina com se carregasse uma pequena princesa e a levou em passos vagarosos, examinando o ambiente. Logo as pessoas notariam o cenário horroroso na clareira, e nesse momento a atenção de todos do vilarejo seriam direcionados a Luminus, a pessoa mais próxima de Mirim.
Não podia deixar, queria que o corpo da pessoa que a considerou uma amiga fosse pelo menos enterrado de maneira digna, mas no momento a menina não dispunha de mais forças para dizer mais nada.
Em instantes, o som dos passos de Cecily e fraca luz do sol se pondo fugiram do seu campo de visão. Uma escuridão sem fim surgiu — Luminus adormeceu.
O seu corpo possuía um calor incomum e, embora não visse nada, as vozes das memórias de Mirim ainda reverberavam em algum canto da sua cabeça. Várias vezes ela escutou uma voz infantil gritando “avô! Avô!”, deviam ser palavras de Mirim direcionadas ao senhor Higs.
Como ficaria o avô da menina falecida quando escutasse a terrível notícia? E se ele visse o estado em que o corpo de Mirim estava?...
Talvez fosse melhor que não abrisse mais os seus olhos. Não queria encarar Cecily ou aquele senhor tão gentil, seu coração não suportava tanta dor. Afinal… afinal…
“Eu… eu… eu sou apenas uma criança… Eu quero os meus pais! Eu quero o meu irmão! Por favor… alguém me tira daqui!”
Devagar, a consciência da menina desvaneceu.
◈◆◇◆◇◆◈
Uma luz. Não estava enganada, existia uma luz forte, a ponto de cegar quem a encarasse por um longo período, à frente.
O cenário flanqueando a menina não tinha forma, era o que ela quisesse.
A claridade à frente diminuiu a sua intensidade e a garotinha, Luminus streix Astarte, pôde distinguir a origem dela: uma grande espelho. Não havia nada mais ali, apenas o objeto comum, sem apoio ou uma parede para segurá-la na posição atual.
Cambaleando, aproximou-se do espelho e um questionamento estranho surgiu: de onde veio a luz a qual o objeto refletia? O cenário não possuía uma forma estável, contudo não conseguia ver o sol ou tochas por perto. Deixou isso de lado e reduziu ainda mais a sua distância.
O espelho com bordas douradas e um vidro completamente limpo estava a poucos centímetros da menina, considerando que Luminus possuía menos de 1,40, o artefato devia possuir seus 1,90 a 2,00 metros.
Estranhamente, não via o seu reflexo. Jamais ouviu falar de um espelho quebrado antes.
Luminus deu mais um passo, tocando a mão direita estendida no vidro fino. No momento em que a mão entrou em contato com a superfície, a cena sendo exibida no artefato mudou, e essa mudança fez a garotinha dar um salto para trás.
O que devia exibir a aparência atual de Luminus não fez esse trabalho. À frente, estava uma menina de cabelos negros sedosos, olhos escuros, roupas simples e um sorriso no rosto. Era Luminus, a verdadeira, não uma existência que começava a parecer a deusa Astarte.
Os olhos avermelhados fitaram os olhos escuros atrás do vidro. A garotinha no espelho sorria, sem preocupações… Sua vida seria tão diferente se não tivesse nascido amaldiçoada? Se não tivesse saído aquele dia para passear no lago, ainda assim a coloração do seu olho mudaria?
Quando pensou em tocar a superfície novamente, a figura mudou, exibindo dessa vez uma Luminus mais parecida com essa. Ela possuía longos cabelos prateados, olhos vermelhos-carmesins e uma expressão depressiva. Ao seu redor, havia sangue.
Não queria olhar a origem do líquido vermelho, sabia que eram corpos conhecidos. Pensou em se virar e fugir dali, mas a imagem na superfície de vidro mudou mais uma vez.
A menina de expressão depressiva desapareceu, dando lugar a uma mulher madura. A figura em questão não usava roupas, os seus seios avantajados eram ocultados pelo seu cabelo prateado grande. Era bela, jamais viu uma beldade como essa antes.
Os olhos vermelhos-carmesins adornando o rosto pálido eram semelhantes aos da menina no lado de cá. A beldade nua começou a sorrir, todo o ar nobre desapareceu, ou melhor, foi trocado por um ar de sadismo.
Por um segundo, a garotinha esqueceu de respirar. A beleza da mulher no espelho era cativante, porém o que mais a surpreendeu foi o olhar afiado da figura direcionado a ela.
Luminus deu um longo suspiro e tentou se afastar. Não conhecia a mulher, mas tinha uma ideia aproximada de quem se tratava… Ter contato com ela não era bom, não queria, de maneira alguma, vê-la por mais um segundo.
O pensamento de fugir ainda não havia se espalhado para o corpo quando sentiu um peso em seu ombro. Seus olhos foram ao encontro da origem da sensação: uma mão pálida, adornada com dedos finos e unhas vermelhas na tonalidade do sangue.
A menina não teve coragem para virar a cabeça. Sabia, apenas por ver a mão tocando seu ombro, quem era a sua dona: a mulher que estava antes no espelho. Ao olhar o vidro à frente, notou que a figura não existia mais lá.
Enfim, a entidade ali atrás moveu-se, aproximando os lábios dos ouvidos de Luminus. As palavras seguintes foram sussurradas de maneira que era necessária muita atenção para entender todas:
— Esse mundo não tem mais salvação. Os humanos não têm mais salvação.
Foi apenas isso. O peso no ombro desapareceu, assim como a figura da deusa tão envolvida nos problemas desse mundo… a figura de “Astarte”.
◈◆◇◆◇◆◈
Acordou de súbito, inspirando e expirando com violência. Os lençóis brancos foram ao chão e Luminus sentia suor descendo pelo seu rosto.
A mão foi levada ao ombro por reflexo, a sensação do toque de Astarte ainda permanecia ali, por mais que o encontro anterior não fosse real.
Foi tudo um sonho. O cenário sem uma forma fixa, o espelho que refletia tudo, menos o seu reflexo real e a presença da deusa responsável por lhe dar a alcunha de “Reencarnação de Astarte”.
— Não devia se esforçar muito, mesmo com o seu corpo, você ainda não consegue se regenerar tão rápido — disse a beldade loira no canto da sala. A mulher estava acomodada em um banco de madeira.
O dedo da deusa apontava para as mãos da menina. Havia ataduras brancas que iam das pontas dos dedos ao ombro. Além disso, sentiu algo em volta do pescoço fino, provavelmente existia ali também esparadrapos estancando o sangramento.
As memórias de Luminus estavam um pouco nubladas, foram muitos saltos no tempo para ela assimilar.
Tudo começou com um passeio com Mirim. Lembrava de terem visitado algumas partes do vilarejo, conforme a memória avançava, as cenas ficavam turvas. Sabia que compraram um colar e, em algum momento, a pobre Mirim sugeriu uma visita à floresta… E ali as memórias eram cortadas.
O que seguiu a viagem à floresta foi a cena já conhecida do sangue espalhado pela clareira. A garotinha desejou morrer ao compreender o acontecimento, chorou muito, quis morrer e foi salva pelo abraço desajeitado de Cecily.
Teve o sonho estranho e, em seguida, acordou nesse quarto desconhecido, com a deusa sentada em um canto, esperando o seu despertar.
— Esse lugar… — sussurrou. A menina sentiu a garganta queimar ao tentar pronunciar algo.
— É um quarto da hospedaria do vilarejo.
Ainda estava no vilarejo. Era irracional, mas Luminus nutria uma efêmera esperança de todos os acontecimentos anteriores pertencerem a um pesadelo. Todo dia, rezava antes de abrir os olhos para acordar ao lado de Loright.
— Precisamos sair daqui — começou Cecily. — Não sei bem quais palavras usar, mas cumprimos a nossa missão aqui, não há mais nada a fazer nesse lugar, vamos arrumar problemas se continuarmos aqui…
Por que ela estava sendo formal?
A deusa Cecily era independente e fazia o que julgava certo, não levando em conta o sentimento dos outros. Não tinha motivos para maneirar com as palavras, ela podia dizer apenas “matamos e pegamos o Fragmento da pirralha, vamos embora”.
— Por quê?… — Luminus encarou a beldade loira. — Por que está tentando não me fazer sentir culpa? Você sabe bem o que aconteceu, eu sei também, não precisa falar de maneira implícita.
Não houve resposta por parte da deusa. Ela apenas abaixou a cabeça, nunca a imaginou fazendo isso. A atitude de Cecily a irritou, qual era o problema dessa deusa? Quais eram os objetivos dela? Nunca chegou a perguntar qual era a verdadeira relação dela com Astarte.
Luminus sempre suportou tudo calada, mas não conseguia mais fazer isso.
— Por que você fez aquilo?! — Ela se referia ao acontecimento na floresta. Cecily não precisava, então por que a abraçou?
— Pirralha… digo, Luminus, eu… eu não sei. — Uma expressão de amargura surgiu no rosto bonito, havia ali um medo de fazer contato visual com a menina. — Eu não sou nada — ela enunciou de repente. — Não tenho nada além de memórias vagas. Luminus… o que eu devo fazer? Eu não consigo entender essa dor no meu peito.
Ela não chorava, a deusa não sabia qual o objetivo das lágrimas.
— Eu não sei por qual motivo eu devo reunir os Fragmentos de Astarte, apenas me dei conta que precisava fazer isso um dia. Não sei quem sou, as poucas memórias que possuo em minha mente são vagas e podem nem ser a verdade. Você, você é a minha única esperança… eu sou uma casca vazia, Luminus. Mas… mas você está despertando coisas no meu ser que eu jamais senti antes.
Um silêncio instaurou-se no quarto. A deusa confusa e a garotinha chorosa apenas se encararam. O que era essa confusão de sentimentos?
Como Cecily ousou tirar Luminus do seu conforto, a forçar a passar por coisas tão terríveis apenas para vir com essa de “eu não sei o que estou fazendo”? Era cruel demais.
Se a deusa apenas a deixasse em paz, nada disso teria acontecido. Dessa vez, Luminus não analisou os sentimentos da outra parte. Que piada, Cecily não tinha sentimentos. Como ela mesmo disse, era apenas uma casca vazia.
— Eu odeio você, sua deusa vazia. — assim dizendo, a menina cerrou os punhos e avançou em Cecily. O movimento inesperado pegou a beldade desprevenida, levando-a ao chão.
Luminus montou sobre a mulher e, quando se deu conta, seus pequenos punhos cobertos por ataduras estavam tocando o rosto lindo da mulher. Deu um soco após o outro, mas Cecily não tentava resistir.
— Eu odeio você… odeio… odeio… odeio…
E enquanto era espancada, a deusa olhou maravilhada, como se tivesse inveja dos sentimentos de Luminus.
— É a primeira vez que alguém nutre um sentimento verdadeiro por mim. Por favor, Luminus, não me abandone, você é meu único norte nesse mundo.
Com o pedido da deusa, a garotinha parou, encarando o rosto com hematomas. E, ainda montada sobre ela, viu pela primeira vez a beldade loira derramando lágrimas.
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