Volume Único

Prólogo


SOU a Princesa. Meu Reino se foi. Meus pais estão mortos. Não vi seus corpos. Mas sei, porque o buraco gigante em meu peito diz isso. Ele sussurra: Você é a única que resta.

Tínhamos tantos cavaleiros, empregados e amigos, mas, agora, todos eles... todos — todo mundo — se foi. Restaram apenas dois. Um é o Capitão Rob. Seu nome verdadeiro é Robert, mas, para encurtar, usamos Rob, então o chamam de Capitão Rob. Todos o chamam assim. Até eu.

Todos... chamavam.

Ele esteve comigo desde que eu era um bebê. É gentil, forte e grande, e eu o amo.

O outro cavaleiro é.... hmm... qual era o nome dele mesmo?

— E então, Gideon? Onde está o inimigo?

— Nada bom. Estão muito próximos.

Isso mesmo — Gideon. Eles o chamam de Cavaleiro Aguilhão. É um velho rude e grosseiro, com olhos perversos e uma barba bagunçada. Ele estava usando botas, calças, camisa, túnica, chapéu e um manto. Tudo o que usava era preto. Seu cabelo e barba também eram desta cor. Se seus olhos também fossem...

Eu não gostava dos olhos dele. Parecia que não tinham cor alguma. Eram cinza? Azul-metálico? Se usar um pouco a minha imaginação e pensar neles como azul esverdeado, pode ser que eu acabe gostando um pouco mais deles.

— Ei, Princesa, pare com isso! Você não pode ficar andando por aí dessa forma!

As palavras que ele mais gostava eram: “não faça isso”, “não”, “pare” e alguma outra forma de me fazer parar. Sendo honesta, não o suporto. Estufei minhas bochechas e parei de fazer barulho de passos, amuada. Se o Capitão Rob não tivesse me afagado na cabeça, eu teria pisado no Gideon! Isso lhe serviria de exemplo!

Agora, seria a melhor chance de atacá-lo. Afinal, o Cavaleiro Aguilhão estava esticado no chão com sua orelha pressionada contra o solo e os olhos fechados por um tempo. Queria saber o que ele estava fazendo. Dei uma espiada e seus olhos se abriram!

“Vish, está olhando para mim.” 

Eu sabia, não consigo lidar com aqueles olhos acinzentados. Tenho quase certeza de que essa pessoa também não gosta de lidar comigo.

Viu! Ele desviou o olhar de mim com pressa! Agora está se levantando devagar e se batendo para tirar a terra de suas roupas. Ele fede à terra, quero dizer, é óbvio, mas ainda assim...

Ao contrário dos jardins do castelo, a terra daqui estava úmida. É muito pesada e cheira como se tivesse um monte de coisas misturada. Fede à água enlameada. E fede a mato. Cheiros ruins vinham da terra e invadiam meu nariz. É um aroma estranho, uma mistura de odores. Não consigo reconhecê-los.

Estamos no meio de uma terra desolada. Tudo é diferente, das paisagens até os cheiros, nada é familiar. Esta é a primeira vez que vim para tão longe do castelo.

— Acho que é isso, Rob. Não posso ir muito mais longe com vocês.

— Me diga o porquê.

Suspirei, “Mais um vai nos deixar. Assim como todos os outros cavaleiros.”

O terreno plano se estendia ao infinito. Não havia nada ao redor que eu conseguisse ver. Às vezes, via galhos emaranhados saindo de cascos de árvores. Além disso, via mato seco espalhado, terra, pedras e só. Tenho certeza que podemos ser vistos de longe nesse momento. Quero dizer, parecemos dedões fazendo positivo. Dois adultos, dois cavalos gigantes e uma eu. Podemos tentar nos agachar no chão o quanto quisermos, mas, mesmo assim, não vamos parecer ervas daninhas, galhos ou pedras. Sequer podemos nos esconder atrás de qualquer coisa.

Há apenas uma esperança.

Uma floresta obscura estendia-se onde a terra desolada encontrava o céu repleto de nuvens cinzas. “Você nunca, jamais, deve entrar naquele lugar. Lá é onde nosso mundo e o mundo espiritual se juntam”. A pessoa que me ensinou isso já não estava mais entre nós.

Fico feliz que o Capitão Rob tenha ficado comigo. Estou apenas um pouquinho aliviada. 

— Logo a chuva começará a cair — avisou Gideon.

— Deve ser algo certo, para te fazer dizer isso.

— Será um aguaceiro. A visibilidade será muito afetada. Use a oportunidade para tirar a Princesa daqui.

— E quanto a você? — questionou Rob.

— Você já deve saber. — Gideon sorriu, seus dentes brancos brilhavam atrás dos lábios que formavam uma lua crescente.

“Eu sabia! Ele é... assustador”.

— Vou emboscá-los primeiro.

O Capitão Rob encarou por um tempo e com frieza o rosto de Gideon. Ele faz isso o tempo todo. Talvez o Capitão Rob queira memorizar a aparência dele antes de ir embora. Seus olhos são tão suaves quanto os da minha mãe quando ela me observava.

— Não, Gideon. Este é o meu dever.

— Como? Espere. Rob, calma aí.

O Capitão Rob não disse nada.

— Robert! Capitão ROB! — Gideon gritava.

Ele ficou rígido. Eu também não conseguia me mover. Como? O que estava acontecendo? Não me diga que... o Capitão Rob... também está indo embora? É piada, né? Eu os entendi errado. Compreendo, Gideon também parece confuso. Ele piscava como se suas pálpebras estivessem quebradas. Encarava o chão enquanto pressionava sua mão contra a testa. Então, levantou a cabeça.

— O que... você acabou de dizer? 

— Ficarei para trás. Continue com a Princesa, Gideon Aguilhão.

SEM CHANCE!!

— Não seja ridículo. Hein? Veja nossa situação, aqui é onde quero ter uma morte gloriosa, entendeu? Coloque isso na sua cabeça, Robert!

O Capitão Rob ficou em silêncio, sorrindo. Seu sorriso era tão brilhante que acabava comigo.

Gideon gritou mais uma vez: 

— Você leva a Princesa!

Mas ele apenas balançou a cabeça.

“Não há saída”. Uma mão grande pousou no ombro de Gideon, “esta é a realidade”.

— Você é o que tem a maior força e habilidade com a espada. É por isso que precisa sobreviver. Ensine esta teimosia à nossa Princesa; é o meu último pedido.

— Isso não é justo!

— Sinto muito.

Tudo o que aconteceu após aquilo fez parecer que eu estava em um sonho. Um sonho triste, o qual jamais quis ter.

O Capitão Rob envolveu-me em um abraço.

— Princesa, Gideon é o meu cavaleiro mais confiável. Tenho certeza de que ele a protegerá até o fim.

— Não vá... — disse eu. — Não me deixe, C-Capitão... Rob!

— Este é um adeus, minha Princesa. Quero que cresça feliz e saudável.

Não. Não quero isso. Não quero dizer adeus. Não quero o deixar ir. Não quero perder mais ninguém! Não agora, nem nunca! Mas sou uma Princesa, sou da realeza. Então assenti e me despedi. Qual outra escolha eu tinha?

— Rezo para que tenha boa fortuna no campo de batalha, Sir Robert — disse eu, assim como minha mãe me ensinou.

— É uma honra, Princesa. — O Capitão Rob pegou minha mão e beijou as pontas de meus dedos. — Me despeço agora, Gideon. Se a sorte estiver ao meu lado, espero nos encontrarmos novamente.

— Robert, não morra.

O Capitão Rob e Gideon se bateram no ombro, e, então, o Capitão montou em seu cavalo e galopou para longe.

O que eu devia fazer? Quero chorar.

— Princesa, venha aqui.

— Ah!

Mãos ásperas, cobertas por luvas pretas, me arrastaram no ar. Não é legal ser levantada ou segurada! Então, ele me jogou na grande sela, como se eu fosse um saco de batatas! A sela era enorme e macia, mas não possuía decorações.

— Segure-se firme. Não se preocupe, este cavalo é bem-comportado. Muito mais do que eu serei algum dia.

Seu cavalo era isso mesmo. Ele não vacilou, apenas me aceitou repentinamente em suas costas.

Seu corpo era grande como um pedregulho. Quatro pernas espessas como troncos nos apoiavam. Sua crina amarela meio que me lembrava flores botão-de-ouro. Alguém lhe escovou o pelo com cuidado e tomou conta de seus cascos e arreio de couro. Se esse homem simplesmente cuidasse de si mesmo, pelo menos, um por cento do que cuidava de seu cavalo, talvez pudesse ser um pouco mais tolerável!

Um baque soou! Um corpo enorme montou no cavalo, ficando atrás de mim. Seu manto preto abriu-se como asas pretas e me cobriu. Odeio ter que admitir, mas era quente. 

— Vamos, Princesa.

— Quando estiver pronto, Gideon, Cavaleiro Aguilhão — disse eu educadamente.

O cavalo relinchava e o corpo abaixo de mim balançava de forma suave. Então, o animal amarelo disparou em galope. Rajadas de vento frio sopravam. Mas não ardiam e não deixavam a pele seca. 

Consigo ouvir o som de água ficando cada vez mais perto. Ou era o som de animaizinhos correndo em uma horda gigante? Uma única gota pingou em meu rosto. Na mesma hora, o som de um aguaceiro cercou-nos e fomos engolidos por uma cortina d’água.

— Chuva...

Ela veio mesmo.

— Pois é, chuva.

 

*   *   *

 

DIANTE deles estava uma floresta obscura. O cavalo galopou, com cada batida rítmica de seus cascos acertando o chão, uma verdade impiedosa foi gravada no jovem coração da Princesa. O Reino de Reverfeat caiu em uma única noite. Se olhassem para trás, tudo o que veriam era a bandeira inimiga agitando-se sobre o castelo. Preso a ela estaria o brasão do Lorde Ardiloso Siegfried, primo do Rei e um homem possuído por sua ambição. 

Corvos cobriam o céu, e alguns no chão bicavam a carne morta em abundância, espalhada sobre os gramados verdes.

Durante a perseguição frenética, a Princesa Lala e seu Cavaleiro Negro não tinham escolha a não ser avançar... avançar para a floresta, onde o mundo deles e o mundo espiritual se juntam; um local citado em lendas e mitologia, o qual apenas demônios e feras chamavam de lar.

Foi neste dia em que Gideon, o Cavaleiro Aguilhão, tornou-se o último cavaleiro da Princesa Lala Lilia.



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