Princesinha na Floresta Feérica Japonesa

Tradução: Taipan

Revisão: Taipan


Volume Único

Capítulo 13: Voando Pelo Céu do Amanhecer

UM tubarão apareceu do nada—um tubarão ridiculamente grande está deslizando pelas brechas das paredes.

Demorou um bom tempo para isso passar pelo buraco que fez. Ou ao menos foi o que pareceu. Nesse meio tempo, tive toda a coragem do mundo para pegar uma naginata que estava caída no chão.

TORCE! O resto da cauda da coisa passou pelo buraco, e agora o corpo inteiro do peixe gigantesco e carnívoro está dentro da sala do trono. Uma saliva amarga enche minha boca quando vejo todo o corpo da coisa com meus próprios olhos. Percebo a realidade revoltante a respeito de sua forma.

São pessoas. "É feito de corpos humanos!". Mãos, cabeças, torsos, rostos, pés, olhos, narizes, orelhas, bocas — todas as partes do corpo humano foram cortadas em pedaços desconexos e costuradas na forma de um tubarão. Pior que isso, cada parte ainda parece viva. "Estão se movendo!"

Cacete, cacete, cacete! Isso é ruim — muito ruim!

— Volte, parceiro. Leve a Princesa contigo e fuja!

— Afirmativo.

Este é um monstro absurdo, feito com corpos humanos, horrível, como se fosse uma massa sinuosa e moldada por alguns caprichos de algum gênio enlouquecido. Desgosto oprime meu medo de olhar para a coisa. Revolta, repulsão, espanto, grosseria — nenhuma dessas palavras serve para começar a definir a monstruosidade.

— Princesa, suba nas minhas costas.

— Certo!

A Princesa sobe na asa do dragão e corre para suas costas.

— Bom! — Expresso minha aprovação.

Agora com calma, esse é o lugar mais seguro aqui.

O monstro arreganha sua bocarra com um ar vingador. Dentes irregulares se chocam enquanto estalam suas mandíbulas de novo e de novo. Eles estão todos perto uns dos outros, crescendo em fileiras atrás de fileiras, inúmeras, sem quaisquer lacunas entre eles. Suas escamas deslizando umas sobre as outras também são assustadoramente longas. A única coisa que posso dizer é que parecem ter sido feitas grosseiramente ao acaso, colocadas como barbatanas pregadas ao corpo. Não há como uma criatura assim existir neste mundo. Uma espuma está constantemente vazando por toda a superfície de seu corpo, enquanto inúmeras pústulas estão inchadas, estourando a partir de sua carne. O corpo do tubarão é azul — um azul safira distintamente profundo. A vibração de sua cor incomum se sobressai anormalmente sobre todo o cenário. De suas pústulas, jorra um líquido da mesma cor azul safira. É linda, mesmo enquanto repulsiva. A parte mais perturbadora de tudo é que, mesmo sendo algo fresco e cru, não exala cheiro algum.

— UWAAAH! WAH! AAH! MONSTROOOOO!

— SALVEM-MEEE!

— BUGYAAAAH!

— NÃO OLHE PARA MIIIIM!

Soldados particulares vestidos de branco gritam, seus olhos saltando de suas órbitas... sim, eu entendo como estão se sentindo. Agora que seu empregador já era, não há nenhum trabalho a ser feito ou dinheiro para ser ganho. Eles rastejam para longe do monstro, de quatro mesmo, ou tropeçam e caem para a frente feito ratos fugindo. É cada um por si, entram em fuga em direção à saída enquanto agitam seus braços em loucura. Definitivamente entendo como estão se sentindo.

KIIYAAAAAAA! — O monstro abre sua enorme mandíbula e solta um grito estridente. Por mais estranho que possa parecer, soa como a voz inocente de uma criancinha. Parte da minha mente fica perturbada enquanto o barulho mexe com meus pensamentos, o grito perfura e rasga meu coração.

O monstro bate as patas traseiras no chão — não, isso não está certo. Estão no lugar das patas traseiras, mas parecem braços. É um enorme par de braços humanos, crescendo na parte de trás do corpo. Espere, isso só apareceu no corpo agora? De alguma forma, essa abominação está mudando sua forma diante de meus olhos. E, durante todo o tempo, fica gritando e se debatendo.

BAM! O chão treme.

— Whoa!

O chão está tremendo! Meus pés acabam deixando o piso. Fiz o meu melhor para me preparar para o impacto, mas não pude resistir à sua força. Assim que estou perigosamente perto de cair, algo me segura por trás.

— Você está bem? — A pata dianteira coberta de escamas vermelhas de meu amigo me agarrou.

— Obrigado...

O monstro azul deixa que a metade superior de seu corpo caia no chão e deslize. Sob sua pele, as partes corporais que formam seus músculos estão se contorcendo a um ritmo bem estranho.

"Ah sim, não existe um tipo de lagarta peluda que se move exatamente assim?"

A coisa é rápida. Apesar de seu tamanho colossal, a velocidade é enorme.

O bando de mercenários vestidos de branco é jogado para os lados feito milho de pipoca estourando. Eles voam pelo ar, girando e se chocando, contorcendo-se e lutando. São como um tipo de forragem que serve apenas para expandir a forma horrenda do monstro.

Antes que tenham tempo para gritar, são todos esmagados, arrastados e despedaçados, tornando-se nada mais que pedaços de carne. Bocas abertas no corpo do monstro engolem cada pedaço, mesmo enquanto ainda sangram. O número de soldados está diminuindo sem parar, num piscar de olhos, e os tremores estrondosos que sacodem o chão não param. Isso é literalmente o que querem dizer quando falam de eliminar todos os inimigos de uma só vez?

"Esta abominação é rápida pra caralho!"

Enquanto observo, dez braços, depois centenas deles, jorram pelo pescoço e barriga do monstro, seguindo em linha até seu peito. A coisa corre movendo todos os membros, assim como as pernas, parecendo uma centopeia humana.

— Eca, isso é nojento.

— Esses corpos parecem normais...?

Agora ele está falando em minha cabeça para poupar a Princesa? Quão cavalheiro este dragão é, agindo de forma atenciosa mesmo em uma situação ridiculamente caótica como a atual?

— Ver as vidas transformadas nessa monstruosidade leva as coisas a um nível completamente diferente de loucura!

— KISHA! KIISHAAA!

O monstro azul bate cada parte dos últimos membros dos soldados anteriormente de branco formando uma pasta enquanto grita. Pedaços de carne são rasgados enquanto devorados. Então, enquanto come, espuma cobre a superfície da coisa e rachaduras aparecem. Isso está crescendo em uma escala muito maior que a anterior.

— Essa coisa está juntando mais material!

A cabeça do tubarão não para de crescer. Sua carne começa a inchar, os fluídos corporais respingam e isso cresce conforme se contorce. Diante dos meus olhos, os ossos se juntam e a carne gira em torno de si, como se estivesse tentando criar uma corda. Conforme estou imaginando que tipo de coisa nojenta vai aparecer em seguida...

— Que diabos é isso?

Uma linda garota sai do meio de toda a nojeira. Seu corpo brota na cabeça do monstro, desde sua cintura até sua cabeça. Sua pele é lisa e macia, parecendo ter uma textura perfeita — e visivelmente azul. O azul de sua pele é muito mais vívido do que o corpo principal do monstro e é parcialmente transparente, revelando uma luz fraca que é emitida a partir de seu interior. A espuma respingando borbulha em seu couro cabeludo e gavinhas de luz brotam. As luzes apagam, deixando longos cabelos dourados perfeitamente soltos.

Que tipo de piada doentia é essa? É como se seu corpo tivesse sido esculpido por um mestre — ao menos é o que eu gostaria de dizer, mas essa parte do monstro também está deformada. Inúmeros fragmentos lisos e claros saem de suas pálpebras fechadas, onde deveriam estar os olhos. E cada fragmento é afiado em alguma parte. Tocá-los faria os dedos de qualquer um caírem. Além disso, seus braços são ilogicamente longos, embora o tamanho de suas palmas e o equilíbrio de seus dedos combinem com o de uma menininha. Dos ombros aos cotovelos, dos cotovelos aos pulsos, os braços seguem esticando cada vez mais. Isso deve ser bem doloroso. Há um limite para o quanto uma pessoa deve ir ao fazer experimentos em crianças, não importa o quanto estejam carentes de moralidade. Não cheira a nada, mas só assistir tal nascimento repugnante já me fez ter ânsia de vômito.

— Megan — disse a Princesa.

— Hã? Essa coisa?

A Princesa olha diretamente para mim do lugar onde está, nas costas do dragão, e balança a cabeça.

— Isso é... Megan.

Eu não quero acreditar, mas se a Princesa o diz, então deve ser verdade.

CREEEEEAAAAAK...

Contorcendo seu pescoço, a besta demoníaca e azulada nos encara. Será que respondeu ao nome? Mais espuma surge por toda a superfície de seu corpo, desta vez jorrando a partir de milhares de olhos fechados. Olhos, olhos e mais olhos brotam do corpo, todos como se fossem tumores. As pálpebras se abrem, todas ao mesmo tempo. Estão encarando a Princesa!

— UUUUUWAAAAAAHHHHHH!

— O que é isso agora?!

As bocas estão entre os espaços entre todos os olhos. Dentes e línguas estão aparecendo dentro de cada uma, e cada uma das bocas bizarras, ao mesmo tempo, grita:

— Então é aí que você estava, Lala Lilia!

Um braço se estende em nossa direção. Um gigantesco globo ocular está embutido na superfície da palma da mão. É tudo de uma cor azul tão profunda que sequer dá para distinguir o que é íris ou pupila. Os olhos brancos, no corpo, estão todos vermelhos e ardendo de ódio.

— Não venha até aqui! — grito enquanto levanto a naginata. Sem nenhum tipo de desvio diante de minha estocada, o globo ocular é perfurado e a ponta de minha arma sai pela parte de trás da mão.

— KIIIYAAAAAAAH! — O rosto da garota se contorce. O infinito número de bocas abertas pelo corpo bate os lábios, cada uma rogando uma praga diferente.

— Aah, mais uma vez. Você está sendo protegida de novo.

— É sempre assim com você. As pessoas te cercam. Muita gente acredita em você.

— Por quê? Por quê é assim? Você nem é fofa. Não é nada além de uma garota malcriada, teimosa e irritante.

— Esse cabelo vermelho está sempre feio e bagunçado. Esse seu rosto coberto de sardas, horrível.

— Sou muito mais bonita que você.

— Sou muito, muito mais inteligente que você.

— Mas, ainda assim, por quê? Por que é assim, Lala Lilia? Hein, hein? Deve haver algo de errado com o mundo.

— Por que é sempre você quem sai ganhando? Por que é sempre você quem alcança a felicidade?

— Por quê? Por quê? Por que é assim?

— Por que, mesmo quando estou tão infeliz? Por que sempre sou eu quem perde?

— Ugh, cale a boca! Feche essas matracas!

As vozes monótonas continuam resmungando declarações maliciosas. Tornam-se ainda mais insuportáveis graças ao encanto colocado no som. Entre cada palavra dita, o líquido azul jorra mais e mais. Uma fumaça desagradável sai do meu escudo e das escamas do dragão quando bloqueamos os respingos dos fluídos. Não deixaremos que isso toque a Princesa.

O dragão torce o nariz e rosna com a garganta.

— Gideon, isso é veneno.

— Blegh, eu sabia.

Então, não é interessante? São literalmente palavras venenosas.

— Nada bom.

Girando minha espada quebrada, bato na boca mais próxima de mim que está cuspindo veneno. Essas coisinhas são surpreendentemente fracas. Mas elas não param de aparecer, parece até que a espuma em algum momento poderá me esmagar, me dominando. Não consigo manter o mesmo ritmo!

— Eu também sou mais bonita.

— Por que isso? Por que só você é amada? Por que você é a única na Sucessão Real?

— Todo mundo te ama. Todos me odeiam. A culpa só pode ser tua. 

— Não vou te perdoar. Sou invejosa. Estou com ciúmes...

— Você me torna infeliz.

— Você roubou toda a felicidade de mim?

— Se você nunca tivesse existido... Quando eu te eliminar, eu...! EU! EU! EU! EU! EU! EU! EU! EU! EU!

— EU! EU! EU! EU! EU! EU!

Sua malícia se torna ainda maior e se transforma em pura intenção assassina.

— EU-EU-EU-EU-EU-EUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU! AAAaaaaahhh!

Pessoa ou monstro, seja lá o que for essa coisa, está planejando matar a Princesa!

— Gideon!

Pulo no dragão sem hesitar. Envolvo a Princesa em meus braços e pego as rédeas em torno do pescoço da fera.

— Vá, Escamas Bravias!

Quanto mais alto ele for na abóbada do castelo, menos terá que correr antes de saltar para o ar. O dragão salta de uma parede para outra, buscando criar impulso e espaço para abrir as asas.

— Aaaack!

— Segura, Princesa!

Uma pequena queda. Suspensão momentânea. Tudo que está em meu estômago se revira conforme nos elevamos no ar aos poucos. As asas do dragão batem com força e ele voa ainda mais alto. Conseguimos fugir. Suas asas de rubi cortam o ar frio enquanto voa. Ainda falta um pouco para o amanhecer, o sol continua abaixo das montanhas. Apenas pontinhas de luz tingem as nuvens do horizonte, onde elas beijam o solo. O índigo noturno desparece, tornando-se branco quando distante. O alto do céu ainda está envolto em escuridão. Isso é o palco de meia-luz que existe antes do amanhecer, onde a luz e a escuridão batalham pela supremacia. Normalmente, minha visão ficaria comprometida enquanto meus olhos não se adaptassem, mas agora a história é outra. A visão do dragão chega até a sala do trono, mesmo que distante. Posso ver tudo lá dentro.

— Aquela coisa está vindo atrás de nós!

— Aquilo não deve ser capaz de voar — respondeu o dragão.

— Os membros estão se deformando e criando asas!

Monstro azul. Uma besta demoníaca indefinida que muda de forma toda hora. Seu tremor constante e esporádico nas costas faz com que a coisa fique ainda mais deformada e inchada. Algo está se contorcendo por ali, como se fosse um balão inflando, esticando as membranas. Ventos furiosos passam pelos meus ouvidos, mas ainda posso ouvir tudo com clareza — um murmúrio monótono.

— Não vou deixar vocês escaparem.

Com um estalo viscoso, asas feitas de ossos azuis possuindo uma membrana fina e tensa, tendo a cor de sangue estendida sobre tudo, irrompem pelo corpo e se abrem. Convulsionando, a besta demoníaca corre e lança seu corpo pelo buraco da parede. Por um segundo, some.

— Está vindo!

A coisa dispara atrás de nós, quase que em vertical no ar, balançando um pouco para a esquerda e direita. Três pares de asas em suas costas cortam o céu imprudentemente, e um único chifre que se projeta a partir de sua testa parte o vento de frente. Embora eu chame isso de chifre, não é algo belo, como o que se encontra em cabras, touros ou carneiros. Há pontas estranhas e salientes por todas as partes, criando uma silhueta meio distorcida. Refletindo a luz das estrelas que somem, é capaz de me cegar.

— Isso tem muitas asas — resmungo.

— Mas não tem o costume de voar.

O dragão está certo. Asas que foram criadas às pressas não conseguem alcançar uma criatura que nasceu para voar pelos céus. Essa abominação pode ter quantas asas quiser, mas seus movimentos inúteis só fazem com que se atrapalhe pelo ar.  No entanto, sua persistência em nos perseguir é deveras aterrorizante.

— KISHAAAAAA! — uiva a besta demoníaca. Com todas as bocas abertas, por todo o corpo, a luz azul cintila de dentro de cada uma das aberturas.

— Está agindo como um dragão antes de cuspir fogo! — grito.

— Segure firme!

O dragão agilmente dobra suas asas. Perdendo seu poio, seu corpo cede sob o peso da gravidade. Porém, meu corpo é puxado para cima. O conteúdo dentro de meu estômago revira e os meus ouvidos estalam ruidosamente. POC! Meus tímpanos podem estourar! Segurando a Princesa, agarro-me ao torso do dragão com todas minhas forças.

Posso ouvir o som perturbador de uma criatura viva se movendo. No segundo seguinte, uma massa azul brilhante passa logo acima de minha cabeça, soltando um ataque baseado em uma nuvem de veneno azul.

— Princesa, feche os olhos! — No calor do momento, cubro a Princesa com meu escudo e meu corpo. — Caralho, isso arde!

Fazendo o mesmo barulho de algo derretendo, minha pele queima. Então é isso que os fluídos da besta demoníaca faz. Mas que diabos? Que loucura! A coisa está nos atacando com sua própria carne e sangue!

— Gideon!

Impeço a pequena mãozinha de me tocar.

— Este ataque só fez cócegas. Você está bem, Princesa?

— Estou bem!

— En… tendo…

Uma sensação ardente e quente inunda nossas asas. Esta não é a minha dor, mas sim a do dragão. Seu corpo é enorme, então ele está praticamente mergulhado dentro do ataque de sangue que foi cuspido. Não posso proteger todo seu corpo com meu escudo.

FERVE! FERVE! Posso ouvir o som de algo fervendo!

— Merda! Vai atacar de novo!

Estamos em uma altitude inferior à anterior. Não há mais espaço para escaparmos em um rasante.

— Espere!

WHOOSH! O mundo vira do avesso.

— WHOOOOOOOAAAAAAA!

— WOOHOO!

Eu grito; a Princesa grita. O chão agora está acima de minha cabeça. Uma luz azul atravessa o céu, entre nós e o chão. A ponta da cauda do dragão está queimando. Nós não tínhamos como evitar o ataque por completo? E essas chamas? Estão queimando muito? O chão vira novamente. É a primeira vez que faço um flip enquanto voando. Meu coração ainda está martelando em meus ouvidos.

— Desculpe. Em horas assim o melhor a se fazer é algo que o inimigo não imagina.

— Tanto faz. Você conseguiu o que queria! É isso que importa!

E quase me derrubou.

A velocidade da besta demoníaca está diminuindo com o passar do tempo. Faz sentido. A coisa está nos atacando, usando partes de seu próprio corpo, e não há “ingredientes” distribuídos para reabastecimento pelo céu.

— Vamos aproveitar a deixa e escapar! — grito tentando me sobrepor aos rugidos do vento. — Por mais que eu esteja puto, isso parece ser o melhor a ser feito…

— Não podemos — responde calmamente a Princesa.

— Princesa?

— Veja!

Na escuridão parcial prévia ao nascer do sol, posso ver que a besta demoníaca mudou de direção. Não está mais nos perseguindo. Sua visão está fixada na cidade ainda adormecida. Eu respiro fundo.

— Essa coisa planeja atacar a cidade!

— Não vamos deixar. Senhor Dragão, vá atrás daquilo!

— Como desejar.

Essa abominação não tem ninguém para proteger, mas o dragão tem duas pessoas em suas costas. Ele tem que nos proteger.

— Gideon, você cuida da defesa.

— Certo…! Conte comigo!

O dragão ruge. A besta demoníaca — ou o rosto da garota que brota em seu corpo — gira seu pescoço violentamente. Ela “olha” para a Princesa com fragmentos de vidro saindo de seus olhos ainda fechados.

— KIIIIYAAAAAAA!

Bom, nosso plano pode funcionar. Serviu para afastar a atenção da cidade adormecida logo mais adiante. O dragão também não fugiu desta vez. Ele está voando em linha reta.

— HAAAAAAAAAHHH!

Sou eu ou ele quem está gritando? Meu estômago está fervendo. Minha garganta está quente. Ondas de calor pulsam por todo meu corpo. Exatamente ao mesmo tempo, uma luz vermelha e ondulante brilha através do dragão. Nós nos tornamos um só em corpo e alma. Ele ataca, eu defendo. Eu balanço o escudo em nossa frente para proteger a Princesa.

— Princesa, não saia de trás do escudo.

— Não irei! — Ela se agarra às costas do dragão, ficando nos limites extremos da sombra de meu escudo. Tenho certeza de que está avaliando a situação muito bem.

Como adversários, nós nos aproximamos cada vez mais uns dos outros. Luzes azuis ainda brotando dentro dos olhos escuros da besta demoníaca queimam com um calor escaldante.

— VÁÁÁÁÁÁ!

As chamas vermelhas colidem contra a luz azul celeste. O dragão e a besta fecham o espaço entre eles enquanto sopram seus ataques. É uma batalha acirrada entre as chamas primordiais que nascem no coração do dragão e a ardente destruição da besta demoníaca mutante. Os ataques se chocam, lutando intensamente pela vitória.

— ROOOOOAAAAAAARRRRRRRR!

— KISHAAAAAAAAAAAAAAAAA!

A besta demoníaca sequer estremece quando as presas dentro de suas bocas são horrivelmente queimadas, a ponto de derreterem. Isso é péssimo. Um inimigo que não se importa com a própria ruína é formidável. Mesmo se vocês estiverem em equilíbrio, a parte que estiver lutando sem temer pela vida conquistará a vantagem.

Se, agora mesmo, estamos conectados… se minha vida está conectada à do dragão, então…

“A força vital do dragão fluiu para mim quando eu estava a ponto de morrer, exatamente como quando a barreira foi destruída. Eu deveria ser capaz de fazer o mesmo por ele.”

— Escamas Bravias, use meu poder.

— Não se precipite, Gideon! Você é… — sussurrou o dragão com sua mente, a preocupação inundando suas palavras, mesmo enquanto ele lutava em um impasse contra a besta demoníaca.

— Está tudo bem! Não se segure! Aceite a minha generosidade!

Seu pânico indica a possibilidade da ação. Concentro-me na escama encrustada no lado esquerdo de meu peito. Meu coração bate visivelmente mais forte que o normal. Acompanho o torpor que costumo associar à perda de sangue, sinto algo fluir de dentro de mim. E está indo para o corpo do dragão.

— Pegue!

Vermelho e azul — o impasse entre as duas forças combatentes se rompe. Só por um pouco mesmo, mas as chamas vermelhas empurram as azuis para trás!

— Isso!

Mas nossa alegria é fugaz. Inúmeras outras bocas abrem no corpo da coisa e começam a disparar mais da mesma luz azul! Ataques acanhados, mas inumeráveis, fluem para fora de seu corpo! São muitos! Não podemos nos esquivar de tudo!

— Guh!

Meu ombro é acertado por um impacto brutal e é assolado por dor. O corpo do dragão se inclina para a frente. Nós recebemos um golpe crítico! Um buraco apareceu na ponta de sua asa!

Enquanto isso, aquela besta demoníaca e monstruosa prepara sua mandíbula enorme, sugando toda a chama do dragão. Eu quase posso ver sua boca se torcendo em um sorriso escarnecedor.

— Droga! Essa coisa pode fazer isso?!

O flanco da besta demoníaca queima de vermelho por dentro e derrete feito melaço. No entanto, não mostra sinais de estar com dor. Que perturbador. Esta é uma batalha entre duas criaturas voadoras, mas apenas uma delas parece seguir as leis da vida. Nós sofremos danos maiores porque somos os únicos que sentem dor. Não temos chances de vencer se nos confrontarmos mais uma vez que seja. Apenas corremos direto para um precipício? Escapar é a única opção? Cerro meus dentes.

— Gideon, não desista. Você sempre foi um homem teimoso.

— Tomarei isso como elogio…

Dragão estúpido! Isso realmente é algo que você deveria dizer em tal situação? Mesmo sua escolha de palavras, que quase sempre é eloquente, ficou mais desleixada. Deve haver um limite para o quanto você pode pegar alguém desprevenido durante uma batalha. A tensão diminui enquanto minha mandíbula é pressionada.

— Você é a criatura mais teimosa que encontrei nos últimos cem anos — adicionou ele.

Os vincos de minha testa acabaram soltando. Agora estou rindo? Nesta situação extremamente desesperadora, sem possibilidade alguma de fuga?

— Mas que honra…

O dragão dá a volta e enfrenta a besta demoníaca de novo. Isso mesmo, eu sou um cavaleiro. Por meio da espada, meu corpo se torna um escudo. Minha espada já era, mas meu coração ainda prevalece.

Abandonar pessoas dormindo na cidade, que acreditam que a manhã virá enquanto não sabem de nada, essa jamais será uma opção. A Princesa está bem ciente disso. Suas intenções inclusive são as mesmas. E é exatamente por isso que…

— Vamos fazer isso, parceiro. Pela Princesa.

— Pela Princesa.

Olho para a besta demoníaca bloqueando o caminho à nossa frente. Iluminada pelo sol nascente da manhã, o chifre na testa brilha.

— Você viu isso, Escamas Bravias?

— Sim, eu vi, Gideon.

Através da visão do dragão, posso ver com clareza: o gigantesco e distorcido chifre afiado que se projeta para fora da testa da menina azulada é um espelho. É um aglomerado de cacos de espelho. A luz refletida salta do chifre, como se costurasse todos os cantos da coisa.

É isso: a fonte de luz azul sinistra que tem sido loucamente disparada contra nós como se tivesse uma energia inesgotável.

Esse é o cerne da coisa toda!

— Gideon, é o chifre. Quebre esse chifre!

— Fechou! Deixa comigo!

Disto isso, tudo o que tenho em minha mão é uma espada quebrada. Este pedaço de metal é ridiculamente inadequado para a tarefa. E eu não posso largar meu escudo; teria que continuar protegendo a Princesa com ele.

Há alguma coisa pesada por perto? Preciso de algo longo e pesado. Há alguma coisa? Qualquer uma que seja, nenhuma mesmo? Em nenhum lugar?

Posso ver a torre do castelo de onde voamos. Parecendo uma lança gigantesca, é uma espinha de metal excessivamente pontuda e afiada, fixada no topo do telhado. É um dos acréscimos das incessantes reformas do Lorde Ardiloso. Foi colocado ali para afastar espíritos malignos? Tipo um cata-vento? Para-raios? Ou é só uma demonstração de poder? Não sei qual é a utilidade, mas pode ser útil.

— Escamas Bravias, voe até aquela haste.

— Você está pedindo o impossível.

— Você pode fazer isso, não pode?

— Claro que sim.

Dirigindo seu corpo ferido com sua cauda oscilante, o dragão inclina-se na diagonal. A ponta chamuscada de sua asa lateja de dor. Segurando a correia do arreio, inclino-me para a frente.

Está chegando. Cada vez mais perto. Só mais um pouco. Só mais um pouquinho — agora!

De pé na ponta dos dedos, agarro o cata-vento. Canalizo a velocidade do dragão voando em meus braços. Reunindo toda a força de meu corpo, eu me curvo. Meus joelhos se dobram e meu corpo se eleva no ar. Suor frio permeia toda a minha pele. Quem cede primeiro: eu ou o cata-vento?

— Eu com certeza não vou… deixar!

SNAP!

Meu ombro está sobrecarregado com todo esse peso. Mas eu venci. O cata-vento parecido com uma lança quebrou e soltou a base. Louvados sejam os trabalhadores preguiçosos e desleixados!

— Sim! VÁÁÁÁÁÁ!

Nós voamos ao redor da haste e confrontamos a besta demoníaca mais uma vez. Agora, é chegada a hora da verdade!

— Princesa. — Pego sua mãozinha e a envolvo em torno da tira do escudo. — Proteja-se com isso, oh, Vossa Majestade.

Seu rosto coberto por sardas olha para mim e balança a cabeça expressando poder, seus cabelos ruivos voando.

— Eu vou, meu Cavaleiro.

Essa é a minha garota. Meu rosto inconscientemente fica mais suave e revela um sorriso. Eu, mais uma vez, noto, do fundo do meu coração, o quanto ela é preciosa. Lala Lilia de Reverfeat é uma daminha corajosa e com um espírito lutador.

— Então lá vou eu.

— É chegada a hora, Gideon!

— Certo! Depois que eu pular…

— Eu sei.

— Beleza!

No momento em que eles voam um atrás do outro é que a distância entre o dragão vermelho e a besta azul diminui, e chegamos o mais perto possível de fazer o tempo parar. Segurando firmemente a minha arma improvisada com as duas mãos, dou um pontapé nas costas do dragão e salto. A partir do local perfeito e do ângulo perfeito. A besta demoníaca vira para mim por vontade própria logo agora! Por um momento fico sem meu dragão e pareço flutuar no ar. O dragão se afasta e a coisa dispara em minha direção.

A luz azul me banha. Tenho sorte — parece que a coisa precisa se esforçar mais tendo um alvo menor.

Balançando o cata-vento no alto, a besta demoníaca bate em mim e eu enfio minha lâmina improvisada em seu chifre e corto da ponta até a base. O queixo da menina azul cai e ela grita. Não posso ouvir sua voz. De cima, o chifre se desintegra e se espalha em caquinhos bem pequenos. Uma bolota azul que estava enterrada na base aparece. É um crânio de safira que estava embutido na testa da garota. Pousando meus pés na besta, quebro o crânio com tudo o que tenho, sem aliviar na força. A sensação de esmagar isso vibra através de minha arma e chega até minha mão. Sem me importar ou pensar em parar, continuo batendo contra ele com o cata-vento.

— Aaah…

Os cacos saindo dos olhos da garota tremem e depois somem virando pó. Suas pálpebras feridas se abrem. A luz vital cintila por um momento em seus olhos azuis até que se extingue.

Estendo a mão para fechar seus olhos. Não consigo encontrar qualquer palavra para oferecer. Um rosto lindo e querubim com um corpo grotesco feito de cadáveres; tudo o que ela fez está gravado em seu corpo. Rachaduras finas e rangentes começam a se formar por todos os cantos…

— Hã?

O corpo começa a ceder. Pós brilhantes se espalham. A besta em que uma vez eu pisei some deixando apenas cinzas de um tronco para trás.

— WAAH!

Perdendo meu apoio, acabo caindo. Agito meus braços e pernas, mas não há nada a que eu possa me agarrar. O dragão está voando em alta velocidade na direção oposta, já que é exatamente o que decidimos que ele deveria fazer antes de eu pular nas costas do inimigo. Ele não vai conseguir a tempo, mesmo se perceber e dar meia volta agora mesmo. Aceitei o plano bem ciente de todos os riscos. O vento uiva em meus ouvidos. O chão está cada vez mais perto, já é inevitável. Então é isso que querem dizer quando mencionam que o tempo parece parar, que é algo tipo mastigar caramelo duro. A velocidade lenta é a coisa mais cruel de todas.

Ah, que droga. É assim que tudo acaba para mim? Que maneira mais idiota para se morrer… Bom, pelo menos consegui fazer o que precisava. Não vou me arrepender.

Se eu olhar para cima, posso ver que já está amanhecendo. As cores mudam de índigo para um roxo, depois vermelho-claro. Que lindo. Não é uma paisagem ruim para se ver nos momentos finais…

BAM! Minha queda parou. Fui empurrado para o lado por algum tipo de força invisível. Meu corpo balança pelo ar em direção do castelo.

— WAAAH! — grito em pânico.

— Oh? — disse uma voz calmamente, quase como se estivesse tentando conter o riso. — Parece que está na temporada de chuva de Cavaleiros Negros…

Uma aranha gigantesca está agarrada às muralhas do castelo. E a bruxa de cabelos prateados está nas costas do inseto. Uma mão cobre seus lábios, mas posso ouvir sua risada enquanto meu ímpeto diminui e eu balanço para frente e para trás na borda da muralha do castelo.

— E aqui vai você. — O fio de prata ligado aos seus dedos cor de ébano está firmemente preso ao meu redor. — Você precisa pensar melhor no que faz, velhote.

— Eu não tinha escolhas…

 

*   *   *

 

— GIDEON está bem, minha lady — sussurra o dragão.

— Estou tão feliz…

Trazendo o escudo para perto do rosto, a Princesa deixa um suspiro de alívio escapar.

Uma fita verde-brilhante tremula em seus cabelos. O pó cintilante misturado ao vento é tudo o que resta da besta demoníaca azul que se desfez. Desaparecidos, os restos sumiram no céu do amanhecer. A Princesa observa tudo sumindo, derramando uma única lágrima.

— Adeus, minha prima.

 

*   *   *

 

MOVENDO-SE pela muralha e banhado pela luz do sol da manhã, observei, distraído, os últimos fragmentos da besta demoníaca desaparecendo, até o final.

— Que sensação engraçada. Não sinto nada. Sem ressentimentos, raiva ou ódio.

— Talvez ela também sentia o mesmo, não acha? — questiona a bruxa.

— Então é assim que as coisas funcionam?

— Bom, esse é o caminho que ela escolheu.

— Estou interrompendo algo…? — Uma baforada quente acaricia meu rosto.

O dragão desce do céu bem diante dos meus olhos.

— Não, só estamos curtindo esta linda vista. Além disso, eu estava a sua espera, parceiro. — Eu empurro uma parede e viro para as costas do dragão com a ajuda do fio da bruxa. A Princesa logo pula em mim. Com suas bochechas estufadas, olha para a bruxa.

— Oh, querida. — A bruxa encolhe os ombros de uma forma bem exagerada, mas parece se divertir.

— Ele conseguiu — informa o dragão.

E a bruxa responde:

— Mas ele foi salvo por sua Princesa.

— E foi ele quem criou a Princesa.

— Então parece que…

Com os olhos pressionados contra meu braço, a Princesa pergunta:

— Do que vocês estão falando?

— Sobre como você tem o melhor cavaleiro do mundo ao seu lado, Princesa Lala.

— Sim, eu sei disso!

Agora, essa é outra boa resposta que essa garota encontrou.

— Oi, espera aí. Eu sou o único que não está entendendo nada aqui? O que está havendo?

O dragão não responde e, ao invés disso, solta uma baforada de ar quente pelas narinas. Esse par de chaminés velhas! Ele está rindo de mim, e eu sei disso!



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