Pôr do Sol Brasileira

Autor(a): Galimeu


Volume 1 – O Orfanato

Capítulo 4: Então não se esqueça

Olheiras mancharam a aparência do jovem de cabelo hipérbole. Sacudiu um pouco e deu leves tapas na cara para despertar rapidamente. Se arrumou devagar e sossegado, porém, ao chegar próximo à porta, Maria tinha a aberto antes de seus dedos encontrassem a maçaneta.  

— Fui mais rápido do que você, hihi — soltou, com um sorriso no rosto.  

Devolveu o sorriso como um comprimento. Como no dia anterior, se reuniu com seu irmão e se preparava para ir à ao colégio. Will, reclamava do porquê deveriam ir às aulas mesmo nos últimos dias:  

— Praticamente só vai à gente! A gente não faltou o ano inteiro justamente pra faltar agora! — insistiu.  

O ouvia enquanto escovava os dentes e assentiu. Apesar de serem os únicos não ser verdade, queriam acreditar, afinal, seria divertido perambular por uma escola quase deserta, também concordavam nisto.   

Com os dois perto do ônibus, entraram devagar ao cumprimentarem o motorista como sempre.  

— É... Vocês não faltam mesmo. — O motorista realçou o comentário ao apontar para todos os assentos vários.  

— Sempre foi assim, então hoje não seria diferente, né? Que saco. — respondeu Will, inconformado.  

Sentaram-se no mesmo banco de antes e prosseguiram para a viagem que nunca iam esquecer.  

 

 O trajeto foi confuso, transitava por várias casas e nunca recebia mais nenhum passageiro. O motorista fez sua última parada, decepção estava gravada no toque suave do volante. Suspirou e disse:  

Vish, pelo visto, fica só entre a gente mesmo. Não duvido de que tarde seja assim também. — Encarou os únicos no ônibus.  

Não era o tempo, acidente, feriado, greve ou nem vontade que definia os dois garotos como os únicos ali. Todas as escolas enfrentavam momentos parecidos perto das férias de julho ou durante o término do ano letivo, mas, mesmo assim, a expressão determinada dos dois persistentes mostrava a exceção viva.  

— Seu professor disse em qual dia vai entregar as provas? — perguntou Mark ao voltar-se para seu irmão.  

— Não… não disse. Ele já espera que quase ninguém vá nos próximos dias. — Mexia as mãos, nervoso.  

Will, preocupado, colocou as mãos no bolso, escondia sua falta de controle em manter os dedos quietos e continuou:  

— Quer saber? Não tem problema! Vou só esperar o boletim e encarar o meu fra…  

— Cara, eu já falei com você, vai dar tudo certo, ou melhor... já deu! Mesmo se você estiver mal, estarei aqui pra sempre tentar ajudar. — Deu peteleco na testa de seu irmão.  

— Um peteleco? Que clichê, há! 

As mãos inquietas se tornaram calmas. Somente o balanço do ônibus trazia a atenção dos dois à pista. Apenas tinham seus olhares inocentes, vidrados na paisagem. Sempre passavam por aquelas colinas. Tinham a visão de uma boa parte da cidade, aproveitaram para observar com clareza o ritmo calmo.   

Nada havia para se preocupar, pelo menos… nada perceptível.  

Numa das colinas mais altas, um observador, que estava envolvido em um manto azul tinha passos pesados e lentos sobre a grama. O seu braço tinha um pano amarrado e, com a ligeira mudança dos ventos, deixou vazar sua blusa de cor ciano com listras brancas. 

Por um misero picossegundo, foi como seu manto tivesse acendido em uma chama azul-escuro.  

No momento que a descida se tornou presente no trajeto, um chiado constante e singelo invadiu os tímpanos. O som irritante se converteu a uma explosão de pura surpresa.  

— MERDA!   

Os dois retiraram seus olhares com o ímpeto da paisagem. O desequilíbrio do veículo fez seus queijos atingirem os bancos sem qualquer aviso.  

O pneu dianteiro direito estourou com o vazamento de ar que apareceu. Viram o homem lutar contra o volante para manter o controle, mas, ao chegar perto da curva, o ônibus não virou o bastante; bateu sobre as muretas de proteção. 

Era tarde demais para parar o veículo, invés de parar na mureta, os freios não reduziram a velocidade o suficiente para parar ali. Alta velocidade, uma curva; o ônibus rolou sobre de lado.   

Um frio da barriga esfaqueou qualquer reação. Estava em queda livre, derivados pela variação da gravidade dos fatos.  

— APERTEM OS CINTOS! — gritou ao apertar um botão embaixo do painel.  

O coração dos dois dispararam. Mark estava novamente num turbilhão de pensamentos, quase rasgava o cinto com a pegada. O ônibus caiu de um dos morros mais altos da cidade. Para atentos de mais longe, o estilhaçar da carroceria coçava as orelhas.  

— Will! Segura esse treco…    

Bateram em uma árvore, causou um grande barulho com o impacto. O motorista teve sua a cabeça chocada contra o painel. As espinhas gelaram pelo absurdo, o líquido vermelho saia da cabeça do boneco de carne no volante.   

Ficaram presos na mesma árvore num estado inconstante. O veículo ia deslizar e continuar a queda, mas, num ato impulsivo, seu irmão não ligou. O cinto foi jogado de volta e o correr desesperado estalou as ferragens por cada metro.  

— Senhor João! 

— Não! Will! — Tentou agarrá-lo.  

A árvore continuou a deformar, a tensão era grande o suficiente para selar o destino dos passageiros. Seu irmão ficou parado no meio do veículo, em pé, enquanto se segurava nos assentos. A queda, enfim, se desencadeou de novo. Permaneceram no ar, até acertarem o chão com ainda mais força.   

Impacto. Vidros quebravam, e Mark não acreditou. O jovem de cabelos brancos escorregou e foi lançado pela janela da frente. Cacos espalharam no ar e pode ouvir o corpo atingir o lado de fora.  

Sangue esquentou. Olhos arregalaram. Estendeu o braço, viu o chão chegar para atingi-lo em cheio.   

UaaH.  

A nuca acertou o seu banco. No segundo impacto em sucessão, Mark perdeu a consciência. 

    

Vento gelado. Chão gelado. Roupas geladas. O ar fresco dava saudações e despertava o acidentado.  

— Will, ca-cadê? 

As roupas estavam completas por sujeira. “Neve... Neve?!” Sem entender como havia parado ali, no lado de fora, jogado nas terras do morro, olhou em volta. Estava de barriga pra baixo, apenas se levantou sem qualquer folego para processar.   

Aquele lugar. Sim, o mesmo de antes. “O... quê?” A cabeça provou existência. Dor aguda atingiu, sentia que seus olhos iam pular para fora. Nenhum ferimento grave, apenas a extrema e exagerada fadiga devido aos impactos.  

— Que diabos é... Ahrg!  

Membros tremiam, bastava aplicar um pouco de tensão para suportar seu corpo que falhava e mal se levantava. 

Caminhava devagar, com uma respiração tão funda e prolongada, piscava lento e... Um corpo. Tinha um corpo logo ali na frente. A percepção do ambiente se diluía mais e mais, entretanto, em um arrepiar de susto, suas mãos começaram a ficar geladas, e o branco se tornou tudo.  

Zumbido dos ventos invadiu o terreno. Em meio piscar de olhos, somente a neve era o que notava. Claridade anormal que se estendia e cobria o morro.   

— Meu Deus...  

A cabeça começou a dor. Era realmente isso o que estava vendo... “Ou eu morri... ou é um sonho”. 

Arrepiou-se ao olhar para cima. O céu estava dividido em dois, noite e dia disputavam a ideia do tempo, iluminavam um lado e deixava o escuro dominar o outro. Violavam o sentido que conhecia como sanidade. Estava enlouquecido de vez?  

Ainda assim, se voltou para o corpo, naquele corpo que tinha medo de reconhecer. Se aproximou. Os joelhos vacilaram e o lábios se apertavam. Queria que fosse... Não, precisava aguentar. Precisava...  

O branco por perto derreteu em cor vermelha, sangue. Encarava aquele que lutava pela vida com cacos de vidro adentrados pela pele. Uma ferida enorme e aberta na perna esquerda, onde deixava as partes internas à mostra sem delicadeza.  

Braço quase decepado, rosto marcado pela angústia e uma barriga que se movimentava para anunciar o fim tão sofrido.  

Travou a respiração, engoliu saliva e soluçou. As pernas não paravam de se mexer e perderam o equilíbrio. Acabou de joelhos, novamente. Aquela pessoa... congelava, pedaço por pedaço.  

A ligeira respiração cessou com o anunciar da identidade: 

— W-Will? Will? — chamava-o com a voz trêmula.    

Balançava o corpo com as mãos, mas só vinha sangue como resposta. As retirou, no mesmo instante, e as pôs sobre sua cabeça com força.   

"Reverta", comentou a voz gutural nos confins de seu pensar quase despedaçado.  

Onde? A ordem o fez saltar, mas não impediu as lágrimas que escorriam. Arbustos, árvores, o ônibus, o sol e lua no mesmo horizonte, e aquilo.  

A assombração, a sua própria assombração, espiava ao longe.  

— Quem é? Foi quem fez isso?! 

Uma cortina de neve pairou e aterrissou perto, ficou presa no cabelo que pertencia ao seu irmão, selou o corpo que se disfarçava para ser um com a paisagem.  

Pegou um pouco de neve com as mãos e a aproximou do seu rosto confuso.  

— C-como? COMO! Aqui não neva! — questionava com desespero.  

Um paraíso gelado o cercava, o sol foi engolido por nuvens escuras que traziam tudo menos esperança. Algo mudou ali, Mark começou a notar isso com um ódio sem igual. Ver o sol desaparecer o trouxe um ódio sem explicação.  

Se atentava a tudo ao redor; o ônibus não estava mais ali, sua mente disparou. Não sabia o que aconteceu. Já bastou. Sues lamentos chorosos ecoaram, e aquilo só observava.  

— Tô louco, louco, louco, louco... UaaaAH! 

Seus pensamentos ferveram. Gritou mais uma vez. O juízo foi incinerado. Não era mais a mesma pessoa, sua personalidade foi carbonizada. Mark foi esquecido.  

— ERA ISSO? ERA ISSO QUE EU TINHA SENTIDO ONTEM?! Argh! Drogaaa! Levanta, Will!  

Se lembrava do que o fez perder o sono, perdia o fôlego ao ter lembrado dos sinos.  

Acabou por arrancar alguns fios de cabelo ao tentar se acalmar e raciocinar mais uma vez, mas, em um choro, fechou os olhos.   

Tentar sempre, tentar sempre. Sempre tentar, sempre tentar.  

Sinos... Sinos tocaram ao seu redor. Levantou um rosto surpreso. Havia lágrimas escorridas, e a pele estava suja pela neve. Ainda não conseguia enxergar os sinos.  

Procurou ao redor, girou com rapidez e angústia até que, enfim, olhou para o seu irmão de novo. O som produzido aumentou com clareza. Seus olhos arregalaram e perdeu o equilíbrio por um instante.   

Os sinos estavam quase a deixá-lo surdo. Tampou os ouvidos com as mãos com brutalidade sob a dor intensa, que o fez vacilar em deixar seu corpo livre para a queda.  

Tudo girava junto na visão, a cabeça ainda parecia que estava para explodir, jundo do cérebro, junto dos braços, junto das pernas, junto das orelhas, junto das... coisas todas. Sua barriga tentou capturar o ar e quase falhava.

Seu irmão estava lá, os sinos, o zumbido, o frio, a solidão, o medo e os... Sim, os passarinhos.  

Antes de tocar no chão durante a queda, um soar incomum veio dos barulhos que ensurdeciam, finalizaram a melodia de tortura em um tom alto.  

Tentar nunca, tentar nunca. Nunca tentar, nunca tentar. Nunca. Tentar.  

Teve a sensação de que ia desmaiar em pânico e ansiedade — e se firmou como uma mera sensação. 

Por reflexo abismal, os braços foram ao chão, e ele não caiu, se apoiou e fez a neve voar com a agilidade momentânea. O reverberar de seus gritos foram reduzidos a ecos que destacam fraqueza e nada mais. O paraíso gelado riu dele.   

Retomou o equilíbrio ao se levantar sem mais nenhum alarme, então... Os sinos pararam. Ficou ali ao olhar para cima, observando o céu nublado e... Seu semblante mudou de repente.  

Olhava para tudo, árvores, arbustos, plantas e, novamente, para o seu irmão.   

Refez os passos desesperados, o detalhe é que a parte do desespero foi completamente esquecida. Estava calmo, seu rosto ficou estático.  

Ergueu suas mãos para a frente do corpo do irmão e esboçou uma reação tão fria quanto o gelo em volta. Uma eletricidade veio de seus olhos e fluiu até suas mãos, onde se intensificaram.  

Ferva — sussurrou.  

Chamas de cor ciano surgiram em seus braços e trocaram de lugar com as descargas de eletricidade azul. Tocou Will com o fogo sem hesitar, mas não o queimaram, invés disso, começaram a curá-lo.   

Os ferimentos fecharam, seu sangramento parou e os cacos de vidro foram expulsos. Ele... ainda não tinha nenhuma reação. A mudança brusca de agir tomou lugar. E a alma bisbilhoteira não estava lá.  

Depois de um minuto, as gravuras eternas do acidente foram reduzidas a nem cicatrizes, apenas apagadas da existência como se nada houvesse acontecido.  

— Então não se esqueça, meu puro — sussurrou ao voltar-se novamente para o céu.  

Suas pupilas dilataram de forma inimaginável. Num instante de um quarto de piscada, a visão escureceu e o sono perfurou o pensar.  

 

O céu foi limpo como sabão em gordura, e o observador do manto, no topo do morro e perto da pista, pode contemplar atentamente o evento que apreciava pela sombra do capuz.  

— Obrigado, mãe.    

 

 

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