Volume 1

Capítulo 21: O que realmente aconteceu àquele dia – Parte 1

José Elias não tinha nada, mas pelo menos se orgulhava do nome. Considerava-o mais bonito do que alguém como ele merecia: o cabelo desgrenhado, as roupas esfarrapadas e os pés sujos enfiados para dentro da chinela gasta.

José reconhecia as dificuldades da própria vida, mas se recusava a não sorrir, refém da sensação de que, cedo ou tarde, as coisas melhorariam.

Olhou para o teto metálico, benzeu-se com o sinal da cruz e se levantou do bolo de tecidos que improvisava como cama. Um gato rajado miou para ele.

— Vem, Basílio — disse ele, abrindo o pote de sorvete cortado que transformou em vasilhame.

O gato saltou do lugar, enfiando o focinho com voracidade para dentro do último punhado de ração. José suspirou. Tinha de fazer uns trocados para comprar mais.

Acendeu uma vela e deu dois passos, tropeçando bruscamente num saco cheio de latas vazias de bebida. Havia se esquecido que o deixara pelas proximidades. José estava juntando para vender numa casa de recicláveis como prova da própria sobriedade, pois não botava uma gota de álcool nos lábios há quase duas semanas, o que já era mais caro a José que qualquer dinheiro. O álcool, entre outros percalços da vida, arruinara muita coisa importante para ele.

Era mais um dia como os outros, o que, para José, significava mais frio que escuro. Observou a chama bruxulear ao redor do pavio da meia vela.

Ali dentro não havia energia, mas José não se atrevia a reclamar. Em verdade quase se considerava um ganhador de loteria quando encontrou no galpão industrial, um abrigo na medida do aceitável, ainda que solitário. Não conseguia imaginar quais motivos haviam levado o antigo proprietário a abandoná-lo num estado tão bom.

O lugar era espaçoso, enfileirado de armários metálicos com prateleiras atulhadas de peças de maquinários, caixas de ferramentas e tralhas esquecidas por Deus e pelo mundo, fazendo o próprio José se recordar de seu passado há muito distante. Era agora outra vida, mas chegou a trabalhar na metalurgia. Entrementes, após uma faxina vigorosa, o galpão se encontrava bem mais aconchegante que um mês atrás.

Basílio veio no pacote, pois, quando achou o galpão, o gato já morava ali. A pilha de esqueletos de ratos e passarinhos não deixava dúvidas.

Entrementes, sentiu o estômago roncar com intensidade, comunicando-lhe a proximidade do horário do almoço, embora chovesse pelo lado de fora, escondendo a claridade que devia estar a pino àquela hora, penetrando através das janelas altas e quebradas.

José soltou um muxoxo de frustração.

Já tinha apanhado as bolas de malabares, cogitando a possibilidade de tentar um truque novo no semáforo, porém, com aquele aguaceiro, teria que suportar de barriga vazia até que a chuva desse trégua. Não tinha sobrado mais nada para comer.

Então um barulho ecoou abrupto, perturbando a atmosfera silenciosa do galpão. Com um leve sobressalto, José reconheceu um trançado por entre as pernas, observando Basílio esfregar o corpo felpudo contra as canelas em solicitação de carinho.

Mas José não o afagou, ainda perturbado com o ruído, preferindo correr as vistas pela penumbra. A quietude retornara, suficientemente rápido para divagar entre a possibilidade de ter imaginado alguma coisa ou à possibilidade infeliz de um fiscal da prefeitura ter descoberto o esconderijo.

Outra vez o som se reverberou metálico, como se algo pesado tivesse se chocado contra uma porção de barras de ferro, fazendo-as rolarem pelo piso. Basílio resmungou no lugar, arrepiando a pelagem rajada, como se não gostasse de algo que escapasse a José.

Temeroso, apanhou o primeiro vergalhão que encontrou pela frente, pequeno e leve, mas suficientemente perigosa para causar estrago. Descalçou os chinelos e, passo após passo, acompanhou Basílio em sua cautela felina.

José arrastou a barra de ferro contra algumas prateleiras — uma tosca tentativa de que o barulho fosse ameaçador o suficiente para afugentar o invasor.

Jogado nas trevas, de repente entrecortadas pelo clarão relampejante — a chuva despencava com força —, José estremeceu, embora se esforçasse para fingir coragem. Fazendo de conta que o coração não martelava no peito e quase lhe escapava pela boca, inspirou fundo, receoso. Temia pela vida, mas continuava a seguir Basílio.

Os anos haviam ensinado José a reconhecer um padrão em situações que provavelmente não acabariam muito bem, mas tinha que defender seu galpão, embora estivesse mais inclinado a dar no pé à primeira complicação.

Em tempo, Basílio prosseguia num passo desconfiado, caminhando com aquela agilidade típica dos gatos, como se fosse sumir à menor ameaça.

Então os avistou à distância, logo que dobrou a extremidade ao fim de uma prateleira. De alguma forma, duas pessoas haviam adentrado no galpão, deduzindo que através da porta emperrada que fechava o local.

José estreitou os olhos. A dupla usava uniformes de polícia, mas uma discussão acalorada acontecia entre eles…

Arregalou os olhos quando percebeu o que de fato se passava.

Era um casal, mas o homem não só enforcava a mulher como a arrastava pelo pescoço, colando-a contra o próprio peito. Ela tentava se agarrar a qualquer objeto próximo.

Devido ao barulho, Basílio havia sumido na escuridão, largando José escondido nas sombras, encarando a situação com uma revolta indignada. Ocultava-se por detrás de alguns tambores vazios, enquanto testemunhava a cena no impulso de separar a briga.

Com assomo de horror, distinguiu o homem com uma pistola brilhando na mão livre enquanto a apontava diretamente para a cabeça da mulher. A policial não carregava nada além do desespero.

A chuva prosseguia fustigando o telhado do galpão, abafando o som dos gritos sufocados da vítima. Angustiado, José conseguiu distinguir algumas palavras:

— Para com isso, Tobias! — A voz de Lúcia escapava rascante sob a força do mata-leão.

— Era isso que você queria, não era? — retrucou o homem, sem afrouxar o aperto. De onde estava escondido, José conseguia enxergar o sujeito com bastante clareza. Tobias expunha o típico olhar de alguém que sabia estar há pouco de cruzar uma linha intransponível, mas com a inquietação febril de quem decidiu não voltar mais atrás; o tipo de decisão que estava a menos de um passo de transformá-lo em outro ser, relegá-lo a alguma coisa vil e pouco mais humana que uma besta-fera. — Veio toda oferecida pra cima de mim.

— Me solta, seu maldito! — Lúcia tossiu. — Você entendeu tudo errado. Achava que era um cara inteligente, o melhor atirador da corporação. Pensei que seria útil do nosso lado, mas não passa de um pecador da pior espécie!

— Ainda com esse papinho religioso? — rebateu Tobias, cheirando os cabelos de Lúcia enquanto afundava o cano da pistola por entre as madeixas escuras. Irrefletidamente, acariciou a virilha da mulher, fazendo-a estremecer com aversão. — Foi uma sorte encontrarmos esse lugar, não acha? Sabe, Lúcia, sempre achei você gostosa. Quem pode me culpar pelo que vai acontecer? Sem energia, sem câmeras, sem telefones, sem internet. Ninguém vai encontrar a gente aqui, entende o que quero dizer?

— Porque… já terminou — respondeu Lúcia, os olhos revirando morbidamente nas órbitas. — Tobias, eu tô sem ar!

O policial a chutou nas costas. Lúcia rolou de qualquer jeito contra o chão de concreto, mas se virou no mesmo segundo, tossindo enquanto acariciava a garganta. Tobias apontou a pistola em direção a ela.

— Vamos, Lúcia. Tira a roupa — ordenou com uma secura assustadora.

Lúcia continuava sentada em pose defensiva, olhando para Tobias como se o desprezo se misturasse à decepção.



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