Volume 2

Capítulo 1: O Corpo no Caramanchão

A madeira velha do piso rangia a cada passada que Maysoon dava. Estava um breu; não dava para enxergar um palmo além da luz vacilante da sua vela. Chovia bastante e os relâmpagos não davam trégua, iluminando os degraus da sinistra escadaria em forma de “L”. As frestas das janelas murmuravam sons fantasmagóricos, e os ratos conversavam dentro das paredes.

Maysoon subia os degraus sem pressa, levando consigo uma folha de papel na mão; já estava acostumada àquele cenário assustador. Ao chegar no segundo andar, percorreu um longo corredor e parou diante de uma porta desgastada, na qual bateu com a aldrava.

Uma voz conhecida mandou que entrasse. Era uma voz grave e rabugenta, que aquecia o seu coração e a fazia se sentir bem. Pertencia a ninguém mais, ninguém menos que o seu mestre, um loiro de meia-idade e cavanhaque estiloso. Ele vestia roupas aristocráticas; não vivas e coloridas como os nobres gostavam, mas frias e monocromáticas.

Estava sentado numa bela, mas decadente cadeira de balanço quando desviou a atenção do livro e virou-se para Maysoon. Fixou-a com os seus olhos azuis e cansados e perguntou:

— O que foi, Maysoon? — O modo seco e arrastado como pronunciara a frase já revelava muito sobre o humor do homem. — Espero que seja importante…

— Perdão, mestre — cabisbaixa, Maysoon respondeu em voz baixa —, mas creio que o senhor não ficará desapontado com o que tenho a lhe contar.

— Pois ande logo, deixe de enrolação… Do que se trata a sua visita?

— Babylonia, senhor. — Dessa vez, Maysoon recuperou a confiança e o encarou de volta. — Eu consegui identificá-la.

Com a menção desse nome, o homem largou o livro na mesa de cabeceira ao lado e deu um salto da cadeira, aproximando-se de Maysoon num piscar de olhos. Não era grande em altura, embora o mesmo não pudesse ser dito da sua circunferência. Maysoon ergueu a folha de papel e exibiu um desenho feito à mão.

O desenho representava o busto de uma jovem de cabelos longos e ondulados, olhos selvagens e feições elegantes.

— Quer dizer que essa menina é a tal Babylonia? Tem certeza?

— Demorei quase dois meses para completar a análise das memórias de todas as estudantes da Academia, mestre. — Maysoon sorriu e entregou o desenho na sua mão. — É improvável que eu tenha cometido um erro depois de um trabalho tão minucioso.

— Entendo… Oh, finalmente… — de repente, o homem colocou um sorriso ardiloso nos lábios e olhou de soslaio na direção do canto mais obscuro daquele quarto sombrio. — É hora de iniciarmos a segunda fase da operação, Layla. Apareça.

Como num passe de mágica, uma jovem com aparência de adolescente surgiu e parou bem no ponto em que a luz da lua penetrava as cortinas esfarrapadas. Tinha a pele parda e trajava um colete revelador, um top sem alças e uma calça harém. Balançou os seus cabelos castanhos e se curvou diante do homem, que era apenas um pouco maior do que ela.

— Como quiser, mestre — Layla declarou com uma voz quase imperceptível. — Não o decepcionarei.

— Tome muito cuidado, Lala. Babylonia, ou melhor, Ágnes de Los Rosales, é amiga de um sujeito perigoso. — Maysoon franziu a testa ao se lembrar da face de Henry. A ferida deixada por ele no seu ombro virou uma questão pessoal. — Ele e os seus amigos nos atacaram durante a coleta de dados e nos causaram alguns problemas.

— Refere-se ao tal “servo”, Maysoon? — indagou o homem sem dar muita bola.

— Com todo respeito, mestre, sou uma maga experiente e sei diferenciar uma magia mundana de uma magia espiritual. Até mesmo Kenshi conseguiu perceber…

— Mas ora essa… Já passei dos cinquenta, Maysoon, e estou careca de saber que o segredo para a criação dos servos se perdeu há séculos. Sugiro que arranjem uma desculpa melhor para o vexame que passaram.

Maysoon não retrucou. Curvou-se numa reverência, indignada com a maneira como o seu mestre a tratou, e se retirou. O homem, por sua vez, entregou o desenho a Layla e voltou a se sentar na cadeira de balanço. Antes da menina ir embora, entretanto, decidiu acrescentar um detalhe à sua ordem:

— Por precaução, Layla, não se envolva em conflitos diretos. O garoto mencionado por Maysoon pode não ser um servo, mas é um excelente guerreiro. — Ele pausou por um instante, como se pensasse em algo, e continuou: — Restrinja as suas atividades ao reconhecimento e à espionagem. Quando tiver as informações em mãos, pensarei numa forma de eliminá-lo.

Layla concordou com a cabeça e se despediu com uma reverência. Em seguida, tal como uma gota de água no deserto, desapareceu na penumbra.

Os pingos de chuva pareciam cair do céu em câmera lenta. Na verdade, aos olhos de Noémie, o mundo inteiro parecia ter parado. Sentiu uma sensação esquisita, semelhante ao que seria ter uma carruagem de guerra esmagando as suas costas. Depois, uma forte náusea tomou conta do seu corpo e rodopiou a sua vista, fazendo-a cair de joelhos na grama lamacenta.

Brotava mais suor frio da sua pele do que despencava água das nuvens. A ansiedade abalou os seus nervos; tremia-se e hiperventilava cada vez mais. Não conseguia processar o que os seus olhos viam bem na sua frente, encostado na parede o caramanchão.

Não entendia por que Marianne precisou passar por tamanho sofrimento antes de ter a vida arrancada de si. Seria o fruto de um castigo divino? Ou talvez a retribuição pelos seus atos malignos enquanto viva? Não… Noémie logo descartou essas ideias. Conhecia Marianne muito bem e sabia que ela nunca tinha feito mal a alguém.

Então por quê? Por que, antes de assassiná-la, tanto a torturaram? Ao observar, da entrada do caramanchão, o corpo pálido e violentado da sua melhor amiga, assassinada com requinte de crueldade, Noémie não pôde se conter e desabou em lágrimas.

Marianne estava nua, e a sua pele, que fora trabalhada com algum tipo de lâmina, estava repleta de arabescos bizarros. Suas unhas foram removidas, assim como a parte superior do seu cabelo e o seu nariz, deixando-a com uma aparência inumana e grotesca. Além disso, as pontas dos seus dedos estavam carbonizadas, e os seus lábios, cheios de agulhas.

Duas noites atrás, Marianne fora se encontrar com o garoto que gostava e passara no seu quarto para lhe contar a boa notícia. Contudo, mesmo no dia seguinte, ela não retornou ao seu quarto.

No outro dia, preocupada, Noémie saiu à sua procura. Imaginava que pudesse ter dado um jeito de passar a noite e o dia com o moço ou, quem sabe, talvez estivesse passeando com ele pelo campus. Não encontrou o que procurava. Na verdade, desejava, do fundo do seu coração, nunca ter visto aquilo.

Noémie nem conseguia cogitar o que poderia tê-la deixado naquele estado. Parecia muito bem calculado para ter sido um ataque de uma criatura, já desconsiderando o contingente noturno de guardas provincianos e a muralha da Academia. Ao mesmo tempo, parecia selvagem demais para ter sido o trabalho de um ser humano.

Quanto mais encarava o cadáver de Marianne, mais sentia que algo dentro de si se fragmentava e se aproximava do ponto de ruptura. A chuva não mais a incomodava, nem o frio e nem a lama. E, à medida que o seu corpo adormecia, o mundo ao seu redor desaparecia.

Não demorou para que fosse encontrada inconsciente por um jardineiro e para que a história se espalhasse pela Academia Mágica como fogo no palheiro.

— É com imenso pesar, turma — começou a conselheira da turma enquanto limpava as lágrimas dos olhos —, que comunico o falecimento da simpática srta. Marianne, da turma “A”. Meus mais sinceros sentimentos àqueles que a conheciam ou eram seus amigos…

Apesar de não ter se apresentado nos primeiros dias de aula por motivos pessoais, Hecate não demorou a assumir a sua função e logo se tornou querida pelos alunos. Cheiinha, porém curvada nas partes certas e bem cuidada, Hecate parecia ser dez anos mais nova do que a sua idade verdadeira e ganhava em popularidade até das mais atraentes estudantes.

As meninas admiravam o seu exuberante cabelo preto e cacheado, colorido com mechas magentas e com uma franja sobre o olho esquerdo, ao passo que os meninos babavam o seu busto bem-dotado e as suas pernas esculturais. No entanto, apenas uma coisa unificava as opiniões de ambos os lados; a definição mais usada para descrevê-la: uma deusa encarnada.

Era por essa mulher que o coração de Henry disparava. Não só o dele; dezenas, ou mesmo centenas de alunos tiveram os seus corações roubados pela Bruxa do Amor, como ficara conhecida entre as garotas invejosas por causa do seu chapéu.

Perturbando o silêncio da sala, Hecate assoou o nariz num lencinho e continuou o seu discurso:

— Por respeito ao falecimento da srta. Marianne, não haverá aula hoje, e o Le Marigot também não abrirá… Porém, antes de voltarem aos seus quartos, gostaria de pedir que dessem as mãos e fizessem uma oração pela sua pobre alma.

Assim fizeram os estudantes. Muitos eram amigos de Marianne, enquanto outros só a conheciam por vista. Em todo caso, todos estavam chocados e abalados com o seu suicídio. Ninguém conseguia entender a sua motivação.

Alguns especulavam que ela teria discutido feio com o namorado e que, por causa do rumo que a situação tomou, seu namorado decidiu terminar tudo e fugir. Dessa forma, incapaz de suportar a dor da separação, Marianne acabou com a própria vida e se livrou do seu sofrimento. Contudo, era apenas um boato dramático e não possuía evidências que o apoiasse.

De qualquer forma, não faltavam teorias e supostas explicações para o incidente. Noémie, a garota que a encontrou, ainda estava desmaiada. E mesmo quando acordasse, os alunos pensavam, provavelmente não forneceria informações relevantes.

Depois da oração, os alunos se dispersaram e seguiram os seus rumos. Henry e os seus amigos, tal como alguns estudantes e funcionários, visitaram o Santuário do Jardim de Eratuna, onde meditaram e oraram pelo espírito da colega.

Desde a Operação Pesadelo, os cinco se aproximaram bastante. No começo, o progresso foi lento, mas quando se deram conta, Leonard já treinava e se exercitava diariamente com Henry e as meninas compartilhavam as suas fofocas nas aulas. Inclusive, durante a semana de provas, na semana anterior, o quinteto se encontrou todos os dias no Le Marigot para estudar em grupo.

Todavia, sempre que estavam juntos, as coisas tendiam a ser leves ou engraçadas. Não era o caso daquela manhã. Era a primeira vez que os cinco estavam sombrios e desanimados. Em meio a eles, Henry estava perplexo. Não consigo compreender; por que uma estudante tão alto-astral cometeria suicídio assim, do nada, sem razão aparente? Será que tinha depressão ou algum outro distúrbio mental?

Aquela situação como um todo lhe parecia bastante estranha. Ele não conseguia identificar o que, mas sabia que havia algo a mais naquela história. Não conseguia descartar a possibilidade de um assassinato. No entanto, quem? Os terroristas do outro dia? E por quê? O que poderia levar um grupo terrorista a querer matá-la? Se quisesse enviar uma mensagem, teriam realizado um atentado. E, se aprofundando nessa primeira suposição, por que a Academia teria forjado a causa mortis da garota?

Eram muitas perguntas, poucas informações e as peças não se encaixavam. Depois de um tempo, Henry resolveu não pensar mais naquilo. A própria Guarda Provinciana fizera a perícia e declarara ter encontrado evidências de intoxicação por reagentes alquímicos, possivelmente preparados pela própria falecida. Se houvesse algo mais a ser descoberto, não seria ele a fazê-lo.

Quando terminaram, os cinco se despediram e voltaram aos seus quartos. Henry, que passara a morar com Ágnes desde o mês passado, acompanhou-a sem puxar assunto. Por incrível que pareça, ela também não tomou a iniciativa.

Mal entraram no quarto e um violento temporal começou. A escassez de luz, o barulho da chuva e a atmosfera melancólica eram sufocantes até para Henry. Para completar, Ágnes, que morria de medo de tempestades, não desgrudava do seu pé. Mas não reclamou. As notícias daquela manhã o afetaram de tal forma que nem se esforçou para afastá-la.

Durante o dia inteiro, a chuva não deu trégua. Eles quase não conversaram, e as poucas palavras que trocaram foram de consolo. Henry já estava cansado de servir de babá a Ágnes, que o abraçava e fazia um escândalo a cada raio ou trovão. Entretanto, não foram tais atitudes que o incomodaram, e sim o fenômeno sobrenatural que presenciou.

Mais de uma vez, teve a impressão de ter visto uma pequena sombra sem dono nas extremidades do quarto. Contou pelo menos cinco avistamentos, cada um num ponto diferente. O último foi ao lado da porta de entrada, bem próximo da cama. Porém, julgou que as sombras deveriam ser alucinações causadas pelo cansaço mental e as ignorou.

No mais, nada aconteceu. Para a sua nova vida escolar, que até agora ia muito bem, aquilo era um mau agouro. Para a sua missão, talvez fosse o prenúncio de uma nova ameaça, um perigo invisível… Mas Henry não tinha certeza. E preferia continuar na ignorância.

E foi assim que eles passaram o primeiro dia do mês de Atticus. Um dia macabro e soturno, no qual mesmo o céu chorou pela tragédia ocorrida, e os corvos e almas penadas cantaram à exaustão. Um começo de mês deveras atípico.



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