O Retorno da Gula Coreana

Tradução: Gambetti

Revisão: Melão


Volume 1

Capítulo 2: Um Filho da Puta (1)

Quando ele era uma criança, acreditava que o verde era a única cor em todo o mundo. As pessoas eram verdes, o céu era esmeralda, as ruas eram tão verdes quanto a grama. Tudo ao seu redor tinha a mesma cor, apenas o tom variava.

Uma das suas primeiras memórias foi uma visita ao zoológico que fez com a mãe e os irmãos. Ao invés de andar pelo local olhando as jaulas, foi para um ônibus dar uma volta no safari artificial com sua família. Havia bolsas cheias de carne balançando nos lados do veículo.

O assento ao lado da janela foi ocupado pelo seu irmão mais velho, a caçula, que tinha apenas 2 anos, estava no colo da sua mãe. Lembrava que estava um pouco triste naquele dia, por não conseguir sentar perto deles — ser o filho do meio tinha as suas desvantagens.

À medida em que o veículo aproximava-se, os animais, que estavam relaxando, começaram a se aproximar, até que, de repente, o ônibus parou. As feras, que tinham um brilho esverdeado, competiam pela comida. Vê-las pulando o lembrava do jogo “Bater Na Toupeira”, fazendo o rir um pouco.

Nesse momento, havia apenas um animal, sentado sozinho no topo de uma pedra, como se fosse um orgulhoso rei, com a luz radiante do sol refletindo em seus pelos.

Ao ver isso, o sorriso na sua boca se dispersou.

Diferente de todas as outras formas de vida, aquele ser não era “verde” e, talvez, ao sentir o olhar do garoto, o animal focou os seus olhos nele.

O menino continuou observando, como se estivesse hipnotizado, até que sentiu uma estranha sensação de terror. O seu instinto o fez desviar o olhar,  a respiração se tornou rápida e instável, tremia da cabeça aos pés, o coração parecia querer pular do peito. Porém, mesmo com esse sentimento, que nenhuma criança tão nova suportaria, então uma pergunta veio a sua mente:

“Por que ele é diferente dos outros? Não é possível, eu devo estar imaginando coisas.”

O garoto respirou fundo e virou a cabeça para o lado de novo,quando algo, de repente, aconteceu. O animal que antes estava tão longe, agora estava atacando de forma violenta a janela, ignorando por completo a carne ao redor. 

A besta mostrava as suas presas e tentava arrancar o suporte da janela ao lado do menino.

A criança não conseguia entender o que aconteceu naquele pequeno intervalo de tempo, no entanto, conseguiu se esconder por conta do susto.

“Preciso fugir... Por que o ônibus continua parado?! Socorro... Mamãe, socorro... Cadê você!? Mamãe! Mamãe!”

No momento em que as suas lágrimas iam começar a cair, uma mão quente e gentil protegeu os seus olhos.

Shhh… Deve ter sido assustador, não é?

A voz dela era suave e acolhedora, como uma brisa no final da primavera. Essas poucas palavras foram o suficiente para o fazer se sentir seguro. Ele a abraçou com todas as forças, sem ver quem era.

— Está tudo bem agora. Está tudo bem. Eles já foram embora... Ah, o ônibus voltou a andar — falou, enquanto acariciava gentilmente a cabeça dele, com as suas delicadas e macias mãos.

 Aos poucos a respiração da criança se tornou mais lenta e então, pela primeira vez, ele olhou para o rosto da desconhecida.

Uh?

De súbito, as mãos dela pararam. O seu rosto se aproximou ao do garoto, prestando atenção em cada detalhe.

— Minha nossa… sério, logo agora… — disse, surpresa.

O garoto, confuso, balançou a cabeça, e um sorriso gentil apareceu no rosto da mulher.

— Seus olhos… eles são muito bonitos.

— Meus olhos? — O garoto perguntou.

— Sim, eles são lindos. Em qualquer tom do arco-íris. —  O menino ainda tinha um olhar confuso, mas a mulher apenas continuou com o seu sorriso gentil no rosto. Até que um suspiro melancólico saiu da boca dela. — Se você fosse um pouco mais velho… Não, talvez seja melhor você crescer sem estar ciente disso.

Depois de um longo período, a visita ao safari acabou. Os passageiros começaram a sair, um por um, mas a criança não mostrava sinais de que soltaria a mulher, que também não se movia, como se algo no garoto estivesse a fazendo hesitar. 

— Qual é o seu nome? — perguntou, sussurrando no ouvido dele. 

— É… é Seol… — respondeu.

— Seol, não é? Você tem um nome bem bonito. — Os seus olhares se encontraram, o garoto estava envergonhado, com as bochechas completamente vermelhas. — Eu quero te pedir um favor… quando você for um pouco mais velho… se nos encontrarmos de novo, você viria comigo?

— Ir com você, noona¹?

— Sim, eu com certeza vou ajudar se você tiver problemas no futuro.

Mesmo não entendendo o contexto da promessa, ele ainda balançou a cabeça, que estava nos braços da mulher, concordando.

Logo foi possível ouvir a voz da sua mãe e irmã o procurando.

— Tudo bem, eu prometo.

— Vamos nos encontrar de novo, principezinho — disse, após beijar delicadamente a testa dele.

 

***

 

Quando saiu do ônibus, acompanhado pela mãe, o garoto continuava olhando para trás, vendo a mulher sorrindo e balançando a mão, despedindo-se, até ela sair da sua visão.

O tempo passou e a criança cresceu. As memórias daquele dia foram se tornando cada vez mais fracas. O medo de animais foi perdido ao envelhecer, talvez por conta de um pouco de sabedoria e imprudência que entraram na sua cabeça. Também foi nesse momento que ele começou a pesquisar sobre a sua condição única.

O que era isso?

Por que nele existe algo que ninguém mais parece ter?

No final, nunca houve uma resposta, mesmo assim, ele aprendeu a controlar essa habilidade de ver o mundo verde, ela podia ser ligada e desligada de acordo com a sua vontade.

Os ventos da mudança chegaram quando Seol começou a aplicar os efeitos dela no seu cotidiano. Porém, sem qualquer aviso, a sua habilidade desapareceu do nada e a sua vida perdeu o controle de uma só vez.

 

***

 

O Seol-ark Land era um cassino localizado na cidade de Sokcho, na província coreana de Gangwon.

Não importava se venciam ou perdiam, as pessoas continuavam apertando os botões e mostrando as suas cartas como se fossem robôs, os raros sons de alegria se misturavam aos de tristeza que ali existiam.

Havia uma pessoa sentada com uma expressão tensa na mesa de Blackjack, ele olhou para o crupiê, o qual o mostrou um rosto sem expressão. Esse jovem observava a mesa como um predador esperando o momento para atacar, até que abriu a boca com dificuldade.

Sta… não, espere! Double down!

O crupiê viu essa chamada como a salvação da sua longa e entediante espera, ele colocou as mãos sobre as cartas. O jogador engoliu seco, havia suor em todas as partes do seu corpo. Mesmo assim, ignorando o nervosismo dele, o homem virou a carta.

O resultado foi… o jovem, desesperado, colocou as suas mãos em volta da cabeça. E, mais uma vez, a tristeza substituiu a alegria.

 

***

 

— Teve sorte hoje, Park-hyung².

Oh, Olá, Sr. Choi. — Um homem de óculos, que tremia por conta do frio fora do cassino, com um cigarro preso entre os lábios, balançava a cabeça em negação para a pergunta da pessoa musculosa que o cumprimentou. — Sorte? Faz um tempo que não a vejo. Só consegui recuperar o que perdi, você conseguiu se dar bem?

— Nenhum pouco. Evitei sair perdendo, assim como você. Parece que hoje não é meu dia.

— Estou dando uma pausa por enquanto. Depois de passar horas olhando para a mesa, a minha cabeça começou a doer. Acho que o vento frio desta manhã me ajudará um pouco.

Quando ouviu o Park fingindo estar doente, o homem atlético deixou uma risada escapar.

— Sim, eu também te entendo… Hm?

Quando o Sr. Choi colocou a mão no bolso para pegar os seus cigarros, um grito repentino quebrou o silêncio daquela manhã. Os olhos surpresos dos dois foram em direção à fonte daquele barulho, eles encontraram um jovem, que não estava longe deles, com um smartphone no ouvido. O homem musculoso franziu a testa antes de falar: — Ele me parece familiar.

— Quem?

— Aquele cara falando no telefone. Você o conhece?

Ah, sim, o conheço. Acho que ele vem aqui há mais tempo que você. Se não me falha a memória, a primeira vez que o vi foi há três ou quatro anos atrás.

Choi lembrou que Park hyung vinha aqui há muito mais tempo que ele. Então olhou para o jovem um pouco confuso.

— Três ou quatro anos? Mesmo sendo tão novo?

— Sim… não tenho certeza se ele está no meio dos seus vinte agora. Essa criança era muito famosa nesta região.

Era possível ver um pouco de tristeza no rosto do Park, umedecendo os lábios. Enquanto isso, o homem musculoso encolhia os ombros.

— Sério? Eu o vi jogar algumas vezes e não era nada de mais. — Choi duvidou.

— Só é assim agora, mas o seu primeiro ano aqui foi incrível.

— Não seria sorte de principiante?

— Não, não era sorte… Parecia que ele sabia de tudo o que estava acontecendo. Como se soubesse o momento exato para fazer a sua jogada, tá entendendo o que eu quero dizer? Ele também seguia uma regra rígida: “não exagerar”. Sempre levando embora pequenas quantidades quando vinha... Aquele sentimento que temos quando olhamos para um viciado, eu nunca tinha sentido isso emanando dele. De qualquer forma, é um cara estranho.

— Como que uma pessoa tão incrível acabou dessa forma?

— Não faço ideia... Ah, lembro-me dele ter falado alguma coisa sobre não conseguir mais ver ou alguma outra desculpa de merda…

Park estalou a língua e continuou fumando. O jovem continuava falando no telefone, desesperado, como se a vida dele dependesse disso. Choi bufou de maneira irônica.

— De qualquer forma, não estou gostando do que estou vendo agora. Tão novo, mesmo assim fica aqui apostando ao invés de fazer dinheiro da maneira correta.

— Bem, todos que conseguem andar são bem-vindos aqui, não é? E vamos ser honestos aqui, você não é tão velho assim.

— Como assim? Já passei dos quarenta há muito tempo.

— A idade é tão importante assim? Esse cassino é só um ninho de apostas com um nome meio extravagante. No momento que seus pés entram, toda a sua sanidade restante fica aqui fora.

— Disso eu não posso discordar.

Os dois, cansados de olhar para a cena lamentável na frente deles, começaram a fazer piadas sem sentido e continuaram a conversar.

 

***

 

— Pai! Por favor! Não faço mais isso, eu juro, me ajuda só mais uma vez!

— Eu estou desligando. Não ligue de novo, seu desgraçado!

— Mas, pai!

A ligação terminou logo após isso, palavrões começaram a sair da boca do jovem quase que automaticamente.

Haah… eu vou ficar louco desse jeito.

Havia perdido todo o dinheiro que guardou. Tudo que sobrou no seu bolso eram fichas do cassino e alguns trocados para pagar táxi. “Devo voltar e tentar recuperar um pouco nos caça-níqueis?” Esse pensamento tentador passou pela sua cabeça, mas caso perca, teria que voltar para casa andando.

Os seus olhos examinavam a lista de contatos do telefone. Quando o nome “Yoo Seonhwa” apareceu, não hesitou e fez uma ligação. Infelizmente ainda era madrugada — na verdade, o sol acabara de nascer — o tempo passava, no entanto ninguém atendia.

Ele acessou o aplicativo do banco para ver o seu saldo, porém isso só serviu para mostrar a triste realidade.

— Droga. Porque você não atende logo essa porra… — suspirou, quando viu um número negativo na conta.

O jovem ficou resmungando por um bom tempo, até que levantou a cabeça para olhar para o céu, o qual ainda estava escuro. Esse jovem era Seol.

Ele soltou outro suspiro, levantou a mão e gritou: — Ei, táxi!

O carro parou na frente dele e o motorista perguntou: — Para onde?

— Estação Gangnam… não, espera um minuto. Me leve para a Estação Nonhyeon!

— Pode entrar.

Após isso, o táxi começou a andar pelas ruas escuras da madrugada.


Notas:

1 – Maneira amigável de se dirigir a uma mulher mais velha — mas não muito mais velha — do que você, se você for um homem. Pode ser usado para se referir a uma irmã, namorada ou amiga/conhecida se vocês forem próximos.

2 – Maneira amigável de se dirigir a um homem mais velho — mas não muito mais velho — do que você, se você for um homem.



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