O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 48: Pequeno santuário

Diante dos meus olhos jazia uma montanha que seria melhor descrita por... verde. Tudo nela era verde. Desde as árvores coloridas e vivas até às lianas que, junto da grama alta, criavam uma crosta verde ao longo do aclive rochoso. 

Perto do chão, notei que as trepadeiras cobriam uma passagem de forma bastante suspeita, da altura de uma porta. Talvez o intuito fosse ser ocultar um esconderijo, embora, do jeito que estava visível, seria mais plausível ser uma barreira de insetos e animais.

Curioso, andei até lá, meus pés descalços se afundando na grama a cada passo. Arredei as lianas com o antebraço e vi que a entrada dava para um lugarzinho aconchegante, um verdadeiro cantinho especial no meio da natureza.

A extensão do local era parecida com a de uma sala de estar. Estava surpreendentemente arrumado e arejado. O teto era em formato de abóbada, o chão era de azulejo xadrez branco e preto, e, do outro lado, jazia a estátua de um homem meditando com um sorriso sereno, os pés nas coxas. Parecia ser a representação de Buda ou de um monge.

Aos pés da estátua, estava sentado sobre os calcanhares uma robusta figura preta e metálica. Cada peça da armadura era uma obra de arte por si só, com formatos exatos e com encaixes estrategicamente posicionados para cobrir o máximo possível do corpo sem perder mobilidade. A magnificência era tal que o cavaleiro mais parecia uma estátua minuciosamente produzida que a própria estátua. 

A espada lunar, característica do cavaleiro, repousava encorada na parede ao lado, ainda maior que a escultura de mármore.

— Encontramo-nos novamente, jovem Michael — falou ele com uma voz que soava como um berrante. Uma voz acostumada a gritos de guerra, mas que agora era conduzida a uma serena conversa. — Era hora.

— É sempre um prazer, Omnix Beytran.

Curvei-me, tal qual a coluna dele estava diante da estátua.

— Pois bem. Aproximas-te.

O modo como falava, sem pressa e pronunciando sílaba por sílaba, era relaxante. Caminhei até o guerreiro e me coloquei de joelhos junto dele, um pouco do lado e ao mesmo tempo atrás, tentando ser respeitoso e não ficar de igual para igual. Inclinei-me um pouco para frente, pensando que fosse um costume de respeito à estátua.

— Devo-te muitas respostas, suponho.  

Então ele foi direto ao ponto... Apesar disso, era relaxante o lugar. A ordem e a simplicidade me faziam me sentir acolhido.

Também achei estranho que, enquanto ele falava, o elmo não se mexia de forma alguma. Parecia realmente uma estátua conversando comigo. Uma estátua que reencarnasse nela algum herói antigo, uma pessoa de muita admiração.

— Não mentirei. Tenho sim minhas dúvidas. — Cocei a parte de trás da cabeça e sorri, meio sem jeito.

— Infelizmente, não poderei satisfazer tua curiosidade plenamente. A busca pela resposta é mais grandiosa que a resposta em si, independente do que seja. Pois, enquanto procuramos por um porquê específico, acabamos encontrando respostas para outros problemas e dúvidas. A busca nos leva a procurar o que queremos, mas, no caminho, encontramos o que precisamos.

Poderia ser por causa da autoridade sobrenatural e mágica do Omnix, mas a maneira com que articulava suas ideias, como se refletisse consigo mesmo enquanto conversava, me fazia querer absorver cada palavra que proferia.

Afinal, também foi ele que escolhi como mestre, ao menos para magia da alma.

— Pois — continuou ele —, vejo em teu peito uma primeira inquietação. Como sei de tanto sobre vida na Terra, perguntas-te?

Engoli em seco. Se ele quisesse usar essa informação para me prejudicar, ele...

— Não te preocupes. Considera-me apenas um espectro da tua mente. Não existo na materialidade e, enquanto fores o dono do meu livro espiritual, estarei preso na tua órbita. Além de mim, apenas Lyla possui este conhecimento, malgrado não tenha visto tuas memórias.

— Lyla, a guardiã da Biblioteca das Almas?

— Sim. Pois eu já te acompanhava, Michael, antes do livro, e foi eu quem te conectou a ela, para que soubesse que és confiável. Não me é permitido dar-te mais detalhes.

— Nem sobre me acompanhar antes do livro?

— Não.

Respirei fundo. Não me restava mais dúvidas de que minha vida tem sido, ao menos em parte, manipulada ou influenciada por forças externas desde que vim parar aqui.

Encarei minhas mãos. Eram elas que construíam meu caminho, ou as de outra pessoa? Observei as linhas delas. Dizem que é possível ler o destino de alguém com base nelas. Será que sou tão livre assim para criar minha própria vida, ou já estava tudo escrito?

— Tu és livre. Veja, pois. Todos os seres humanos recebem intuições como tu, contudo menos diretas. Ideias “surgem” em suas cabeças. Por vezes, indubitavelmente é a mente processando, em níveis sub ou inconscientes, o que recebe do ambiente. Entretanto, há também espíritos que sopram ideias, felizes ou não. Tentam provocar em ti algum sentimento com essas ideias, ao serem ligadas a um significado ou memória do seu coração. Ainda, no fim, és tu quem decides o que fazer ou não. Esse direito ninguém tira.

— Então... Há espíritos à nossa volta?

— Sim. A quase todo instante. Na última luta tua, por exemplo, recebeste a graça de uma antiga companheira do Flamel, Maria. Não achaste estranho conseguires invocar uma runa de gelo, quando pouco praticaste o subelemento?

— Não... Espera... Aquilo foi ela? — Lembrei-me do evento na biblioteca, no qual ouvi um sussurro suave e tive a visão do relógio ensanguentado na cama. Aquela garota ainda me acompanhava?... — E como ela fez isso? Nunca vi ninguém recebendo ajuda dos mortos. E eu posso conseguir habilidades de espíritos de forma tão fácil?!

O cavaleiro gargalhou, a risada mais parecendo um violoncelo repetindo a mesma nota retumbante.  

— Sim e não. Consegues, mas há um custo. Consomes muita mana tua. Em verdade, deveria ser impossível tal intercurso. Deveria ser, se não fosse teu dom.

— Você diz meu segundo dom?

— Sim, embora o primeiro do Flamel auxilie consideravelmente, já que sem ele não terias conseguido conjurar mais de um feitiço daquele. Aliás, está ficando difícil proteger teus neurônios de serem dizimados. Se não fosse por mim, já terias perdido capacidade cognitiva. Tomes cuidado.

Acenei que sim com a cabeça e senti o sangue subindo à minha cabeça, deixando-a pesada. Se não fosse pelo Omnix, eu teria me matado assim, queimando meus próprios neurônios? Não pude deixar de ficar com vergonha da minha imprudência.

No silêncio constrangedor em que me pus, balancei a cabeça e tentei continuar a conversa:

— Poderia me dar alguma informação sobre meu segundo dom?

— A busca te engrandece mais que uma resposta direta, meu caro Michael.

— Certo...

Suspirei, e o movimento dos músculos torácicos fez minhas costas doerem atipicamente. Eu já estava por muito tempo curvado... Espreguicei a coluna, algumas vértebras estalando e produzindo um barulho alto.

O cavaleiro riu um pouco.

— Já estamos acabando, não te preocupes. Só há duas mais mensagens que gostaria de passar-te. A primeira — ele levantou o dedo indicador — é que te vejo ficando frustrado com a falta de evolução na magia da alma, embora ainda não tenha percebido esse sentimento crescendo. Durante a batalha, tiveste a impressão que o que aprendeu pouco ajudou, e logo essa insatisfação se tornará mais consciente. No começo, tu acreditavas que o Livro te daria tudo que precisavas para ter a ascensão que desejas.

“Contudo, queria sobre isso dizer que nosso objetivo é trabalhar magia da alma, e não feitiçaria. Sendo assim, teu objetivo é descobrir a magia viva, em sua riqueza, infinitude, na liberdade de seu uso criativo e irrestrito, mesmo que difícil. Ela é como um animal selvagem tentando ser domesticado. Fórmulas de feitiçaria são demasiado simples em comparação, exigem apenas concentração e memorização.”

Isso...

Fitei o cavaleiro, e um pequeno sorriso cresceu nos lábios. Poderia ser algo infantil, mas palavras como criativo e irrestrito me faziam imaginar que estavam trilhando um poder incomparável, embora lento e de longo percurso, mas irreparavelmente poderoso e misterioso.

— Isso mesmo. É algo que exigirá tempo, mas te fará irremediavelmente forte e reconhecido. Feitiços são apenas conjurações específicas que te ofereço para que contemples a vastidão das aplicações da magia da alma. Jamais deves limitar-te a eles. És capaz de muito mais.

— Tá certo!

Seria um caminho longo. Mas um caminho longo e recompensador. Só que...

Quando tentei imaginar quais magias de alma conseguiria aprender nesse caminho longo, não consegui pensar em nenhuma. Quais eram as aplicações dela, afinal? Até o momento, só sabia que conseguia compartilhar sentidos e sentir um pouco das emoções das pessoas. Nada mais...

— Falando nisso, Michael, não notaste algo estranho nas suas interações com a Violette? Não sobre os olhos dela, mas sobre ti.

Abanei a cabeça afirmativamente. A forma como sentimentos intensos me invadiam de forma exagerada, as visões que tinha com ela, como no quarto...

— Sem que tivesses percebido, tens treinado magia da alma com ela. Com outras pessoas também, em menor quantidade, o que até influencia um pouco nas emoções delas, sem que nem tu nem elas percebam.

“Lembra-te que o uso da magia é criativo e irrestrito, embora parcial e difícil? No caso da Violette, primeiro, teu desejo intenso de saber o que se passa no coração dela te faz teres intuições fortes sobre as dificuldades do íntimo dela. Tu viste, de lampejo, um vulto das impressões fortes que a marcaram do passado, embora tenhas visto apenas uma gota do oceano.

Ouvi uma pequena risada do cavaleiro, sutil como o silêncio.

— Quando ela te pegou praticando o feitiço de compartilhamento dos sentidos, por exemplo — continuou ele. — Os sentimentos confusos que experimentaste provém, em parte, daquilo que nem tu sabes sobre ela, mas que tua alma sentiu. Quando registrou essas emoções, teu cérebro lembrou momentos como o vosso duelo, pois nesse evento transpareceu-se um pouco dos sentimentos complexos e nebulosos da jovem.

Pensando bem, isso fazia todo sentido... Um sorriso desabrochou em mim, me sentindo como uma criança que descobre um conhecimento fascinante. Esses sentimentos, as intuições, tudo eu vivia, mas não conseguia explicar. E agora finalmente conseguia. Era como se uma venda tivesse sido retirada dos meus olhos, me permitindo enxergar o que já estava debaixo do nariz.

Só que... Tem um grande problema. Se o medo que senti da Violette tem a ver com algo profundo dela, então...

— A decisão se aceitarás ela ou não serás tua — afirmou o homem. — Conhecerás melhor o que aflige o coração dela. Se permitires, a conhecerás por completo, como também serás conhecido. Ela também vê muitos problemas teus que nem imaginas.

— Muitos problemas?

Cocei a cabeça, descontente.

— Conversa para outra hora. Relaxas, és um grande homem. Teu coração possui sementes extraordinárias, mas que tuas escolhas as sufocaram de crescer. Agora que tens feito esforços para serdes melhor, verás crescer em ti o reflexo de alguém imenso.

“Em verdade, embora a preguiça e o medo tenham sido problemas teus que me deram dor de cabeça, está sendo mui gratificante acompanhar teus passos e testemunhar como coloca teu coração sempre à frente de cada escolha. Preocupas-te muito com os outros quando vais tomar escolhas, por vezes indo até contra as próprias pessoas para fazeres-lhes bem.

“Na verdade... Nem sei se deveria te contar isso, mas...” O cavaleiro coçou o queixo, que com certeza não sentia os dedos através das camadas de metal. “Encantaste algumas pessoas ao teu redor pelas tuas escolhas, pela maneira como tentas construir um mundo melhor. Não foi assim com a Aithne, para a qual concedeu o privilégio de saber da verdade, mesmo que pudesse custar tua vida? Não tem sido assim com a Violette?”

Com a Violette? — perguntei, assombrado. Tenho feito com ela algo similar ao que fiz com a Aithne? Desde quando tenho feito qualquer coisa parecida?

O cavaleiro gargalhou profundamente.

— Sim, mas não penses que essa é a única razão pela qual ela tem simpatia por ti. Menina complicada aquela... Disse e repito: a conhecerás melhor. Enfim, há uma última mensagem que queria te passar antes que acordes. Michael... — A voz dele ficou séria, como se a próxima fala fosse questão de vida ou morte. — Michael, brinquei mais cedo sobre seus neurônios queimarem, porém esse seria o menor dos problemas durante a luta.

Engoli em seco, aguardando que ele continuasse.

— Lembras-te de quando a cauda da fera te atingiu de raspão? Não foi o suficiente nem para sangrar direito, mas foi o suficiente para injetar um veneno letal em ti. Se tivesses três vidas, perderia as três.

— E-eu... — Encarei o vazio da parede, tentando absorver aquela informação, pequena à mente mas gigantesca ao coração. À medida que os segundos passaram, a ficha de que eu iria morrer começou a cair. Minhas mãos começaram a tremer. — Eu vou morrer?...

— Não. Vais te recuperar bem. Todavia, para isso, gastei toda minha reserva de mana. Consigo regenerá-la, mas precisarei de hibernar por volta de duas semanas. Ficarás sem minha proteção e guia durante todo este tempo.

As palavras dele me atingiram com a brutalidade de um martelo. Apertei as mãos trêmulas...

Sem notar, acostumei-me com a proteção e companhia dele. Acostumei-me com a segurança de saber que alguém estava me assistindo o tempo inteiro, me intuindo em cada dificuldade. E, afinal...

Num mundo de tantas incertezas, essa era a única certeza que tinha. Sem ela, me sentia como se houvesse um abismo no meu caminho, intransponível. E se encontrasse outro monstro? E se me metesse numa enrascada? Havia tantos perigos daquele mundo que nem conseguiria imaginar e me prevenir...

Além disso, era ele que me acompanhava desde o início, não? Ou será que há mais alguém, como a Maria?

— Há coisas que não posso te responder, mesmo que veja tua curiosidade. No entanto, Michael, gostaria de te pedir para evitares problemas e desafios perigosos enquanto eu estiver ausente. Concentres-te em crescer, de forma segura, igual como todos deveriam fazer. E, afinal, mesmo se encontrares problemas, terás quem te socorrer.

— Terei?! — saiu minha voz mais alta que pretendia, meus olhos brilhando.

— Sim. Descobrirás isso em minutos. Mas, agora, Michael, está na hora de ires.

— A-antes! — exclamei. Encarei o elmo dele, a face que talvez nunca veria. Sem pensar duas vezes, desci minha testa até ao chão, me curvando inteiro. — Muito obrigado por toda proteção, ajuda, guia, assistência, conforto e aprendizado que tem me dado. De verdade! De verdade. Espero que possa descansar bem. É o mínimo depois de me salvar tanto.

Não podia ver sua face, mas tive a certeza de que sorriu.

— Cresças e te desenvolvas, Michael. Muitas coisas lhe aguardam. Muitas... Boas, mas também desafios dos quais não consegues imaginar. Acompanharei teus passos. E, de presente, deixarei um novo feitiço no livro, para que... talvez te ajude a vislumbrar melhor o potencial da magia da alma. E tente usar a Violette como cobaia para te iniciar na magia.

Sorri. Aquilo era um absurdo, mas... Será que se eu lhe pedisse abertamente ela rejeitaria?

— Ah, me esqueci de mais uma coisa. — Ele levantou o dedo indicador. — Deixei mais uma coisa especial para ti. 

Aguardei que ele proclamasse do que se tratava, mas tão revelação não veio.

— Um outro presente?

— Sim. Descobrirás em breve. Agora, está na hora de retornares. Cuida-te e cresças, sempre.

O local começou a ficar mais escuro. A minha visão também, como se me distanciasse do próprio corpo.

— Estarei aguardando pelo seu retorno — disse-lhe uma última vez.

— O teu destino descansa em tuas mãos. Faças dele instrumento para concretizar o que queres ver no mundo. 

Então me acobertou uma imensidão escura silenciosamente ensurdecedora. Sentia-me preso no vazio, afogado em um oceano repleto de nada.

“O teu destino descansa em tuas mãos. Faças dele instrumento para concretizar o que queres ver no mundo”, repetia para mim mesmo as palavras dele. Como sempre, era uma mensagem inspiradora, e que eu prontamente aplicaria na minha vida.

Quanto mais minha consciência navegava por aquela infinitude vazia, mais me sentia relaxado e em paz, na mais absoluta falta de problemas e estresse. Até que...



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