O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 46: Cor de magenta

Aquele corpo da fera, que parecia pesar toneladas, se colocou no ar em um instante, voando em minha direção como um míssil calibrado milimetricamente para me explodir em pedaços.

Mas aconteceu algo estranho. Ela ficou lenta. Anormalmente lenta. A forma como subiu no ar foi ridiculamente esquisito de se assistir. Demorou dez segundos até chegar no topo do salto, antes de começar a cair na minha direção, tão lenta quanto um vídeo em velocidade 0.25x. À medida que chegava perto de mim, o vento no meu rosto se tornou intenso, empurrando meu cabelo e roupas para trás. Porém...

Por que tudo acontecia de modo tão devagar?

Após meio minuto, o monstro finalmente estava a um metro de mim, sua boca gigantesca aberta com dentes do tamanho de espadas e exalando um bafo pútrido de entranhas de lobo. Naquela boca maciça caberia uns cinco... não, dez Michaels, mastigados e desmembrados, mordida por mordida por aquele desfiladeiro de espadas, desfigurado como uma simples massinha de carne.

— Flamel! — berrou Violette.

Virei meus olhos para o lado e a vi com o rosto fechado num misto de preocupação e raiva. Seus cabelos eram lindos, dançando devagar à valsa do vento podre. Mesmo com a raiva marcando as linhas da face, ela estava maravilhosa, seus olhos ametistas cintilantes. Ela se aproximou de mim e, como se fosse me abraçar, colocou as mãos no meu peito. Então ela...

Empurrou-me. Minha visão se afastou dela enquanto ela saltava para trás. No instante seguinte, o vão entre nós foi preenchido de uma só vez pela criatura, que pareceu se teletransportar de tão rápida. A fera se chocou contra as árvores, que foram arrebentadas como se fossem frágeis igual palitos de dente, pouco mudando a velocidade da derrapagem do monstro.

— FLAMEL, ACORDA!

Caído no chão, encarei a origem daquela voz desesperada. Para quê tanta agitação? Céus... Essa garota é uma montanha russa-emocional, não é? Estava tão agitada que nem percebeu que o rosto se sujou de terra, que os botões da manga da camisa se abriram. Ela não tem jeito mesmo... Vou ter que-

— FLAMEL!!! NA SUA DIREITA!

Sem pensar muito, virei o rosto na direção, apenas para ver a criatura numa nova investida em cima de mim. Seus olhos carmesins, vermelhos como o sangue e afiados como uma navalha, complementavam a escuridão da floresta da qual vinha. As escamas afiadas e brilhantes igual metal eram admiráveis, o tipo de coisa que somente se veria em um anime. Ela se aproximava de mim. O que...

— FLAMEL!

Quando notei, Violette já estava em mim de novo. Ela me segurou meus braços, me rodou e jogou para longe. Novamente a vi se distanciando de mim, conforme eu voava. Entretanto, dessa vez, antes que ela conseguisse se distanciar de onde estava...

A fera, como um trem-bala, chegou até ela em uma fração de segundo. A boca dela estava a centímetros da Violette, quando esta conseguiu pular para cima e se chocar violentamente contra a testa da criatura, seu ombro sendo amassado no impacto. A colisão foi tamanha que a jovem foi arremessada a mais de dez metros no ar, rodando descontroladamente, e...

Minhas costas se chocaram contra o chão, bati a cabeça e saí rolando e me esfolando. O mundo se tornou preto, um zumbido infernal consumiu meus ouvidos. Não sentia dor alguma, mas ficava mais difícil pensar. Estava fraco. Eu...

Abri os olhos e vi Violette se esquivando bote após bote do monstro. Seu braço direito estava imóvel, rígido, embora o restante do corpo deslizasse em cada desvio com a perfeição de uma dança: rodando, saltando, levantando as pernas para desviar milimetricamente do monstro incrivelmente veloz. Até quando a criatura usava as garras ou a cauda de escorpião rápida como chicote, Violette permanecia fluindo, impossível de ser atingida.

Ela estava bem, mas não podia deixa-la sozinha... Precisava lutar. Cambaleei até me levantar, dando tudo de mim, tão tonto que quase caí. Precisava lutar...

Meus olhos captaram o fluxo da luta. A Violette era magnífica... Com um só braço, evitava todos os ataques e, empunhando uma adaga negra, conseguia penetrá-la justo na divisa entre as escamas, como se a arma fosse fina tal qual uma agulha, mas fazendo jorrar sangue como se fosse uma claymore. Era impressionante vê-la, mas...

O que diabos estou fazendo?

Encarei minhas mãos. Elas... tremiam. Tremiam violentamente. Esse sou eu? Esse...

Andei para frente. Não sentia meu corpo. Estava completamente dormente, mas sabia que tremia por causa de como minha visão chacoalhava. Passo por passo, me aproximei das duas, cuja luta fazia as árvores saírem voando. 

Não conseguia entender por que eu tremia tanto. Não sentia dor, nem medo, desespero ou terror. Não sentia nada. Era como se não estivesse em mim, como se...

Um pingo de água caiu na minha mão, limpando a sujeira da terra. Mais outro pingo caiu. Chovia? Encarei o céu. Não havia nuvens. Como estava chovendo? Espera...

Toquei meu rosto e vi meus dedos ficarem ainda mais molhados. Eu estava chorando? Eu...

A criatura, com garras tão longas e curvas quanto a lâmina de uma foice, desferiu um rápido ataque contra Violette, a qual desviou pulando com uma acrobacia. No ar, a fera aproveitou da falta de mobilidade para tentar atingir o abdômen da Violette com o ferrão da cauda. O movimento foi silencioso e rápido, instantâneo como um tiro, mas habilmente a garota se defendeu com a adaga, provocando um som ensurdecedor que doeu meus tímpanos.

Violette foi arremessada com a colisão e aterrissou mais perto de mim. A fera rugiu, fazendo as árvores tremerem e os passarinhos voarem gritando. Ela se encolheu sobre as pernas traseiras. Como uma mola, se esticaram de repente num salto estrondoso e mortal. Violette pulou para cima e desviou com perfeição. O problema era que...

O monstro não parou na Violette e seguiu diretamente até onde eu estava. Em segundos, eu estava diante daquele mesmo bafo podre, o qual nem a dormência dos meus sentidos conseguia ignorar. Eu seria atropelado, devorado por aquele trem em forma de monstro. Nem vendo o mundo em câmera lenta seria capaz de desviar de um ataque ridículo como esse.

Grande espinho de gelo — sussurrou uma garota no meu ouvido, os dentes espinhentos do monstro a meio metro da minha face. 

Uma runa meio complexa, do atributo água e subelemento gelo, se desenhou na minha mente, junto de uma sensação gélida se apoderando do meu corpo, como se eu estivesse em meio à neve.

Conjurei o feitiço da minha mente no chão embaixo da criatura. Enquanto o criava, achei a execução daquele feitiço tão fácil em comparação ao de magia da alma que criei duas dele unidas e sincronizadas, que dispararam imediatamente. 

O monstro de repente grunhiu, um som horrível e grotesco saindo de sua garganta e aquecendo meu rosto com aquele bafo nojento. Seus dentes chegaram centímetros do meu rosto e pararam, quase perto o suficiente para me decapitar.  

Embaixo dele, uma verdadeira coluna de gelo se ergueu, quebrando as escamas e perfurando o abdômen como uma estaca colossal. O sangue preto viscoso desceu pelo azul do gelo, manchando-o até a base.

A besta se fez furiosa e tentou me abocanhar diversas vezes, seus dentes se chocando com tanta violência que uma rajada de vento se fez contra minha face. Não importava quanto esticasse o pescoço e tentasse fugir, não conseguia quebrar os centímetros que impediam seus dentes de me alcançarem.  

O monstro rugiu outra vez, se debatendo feito louco e fazendo os espinhos estremecerem. Seus olhos brilhavam num vermelho tão vibrante e assustador, da mesma cor que meu coração queria mais esquecer. Da mesma cor que...

Meus braços tremeram, chacoalhando tanto quanto o coração. Eu estava com medo. Com muito medo. Fitando aqueles olhos medonhos, minhas panturrilhas arderam como se cortes profundos as aleijassem. Minhas costelas começaram a doer, arder, se quebrar. Meu pescoço pareceu começar a se desfragmentar, meu crânio a rachar. Os olhos vermelhos, aqueles olhos vermelhos...

Esses malditos olhos vermelhos desgraçados. Roubaram tanta coisa da minha vida, me fizeram sofrer tanto. Eu não tinha culpa de ter vindo parar nesse mundo, de ter andado naquele maldito corredor e segurado a mão da falsa Guinevere. Não tinha, e mesmo assim...

Você. — Minha voz saiu como se rasgasse a garganta, num tom rouco e profundo.

O monstro começou a se soltar do gelo com suas tentativas desesperadas. Esse desgraçado...

Logo antes de os dois feitiços de gelo serem destruídos, invoquei um terceiro que acertou e penetrou seu queixo desprovido de escamas como uma estaca, parando em algum lugar dentro da cabeça. A boca da criatura ficou fechada e não conseguia mais se abrir, embora lutasse com fervor para fugir.

Tentei andar para frente dela, mas meu corpo se fez duro como uma estátua. Eu dava a ordem, mas ele se rebelava contra mim.

Contudo, não importava o quanto meu corpo lutasse contra isso, nada, nada nessa vida conseguiria me impedir, nem mesmo ele. Andei para frente, o corpo imóvel como se fosse feito de metal enferrujado. Encarei o fundo dos olhos do monstro e coloquei a minha mão na porra daquele focinho horroroso, que ainda sangrava com um corte profundo da Violette. A textura daquele líquido negro espesso encharcou minha mão.

— Você é minha presa — disse eu.

A besta rugiu ainda mais potente. Em vez de recuar, apertei o focinho com ainda mais fervor e decidi usar um feitiço de raio que aprendi recentemente. Descarga elétrica. Usado somente quando a mão está em contato com algo. Potente, mas quase impossível de ser usado em combate, por o usuário não poder se movimentar e por ser demorado de canalizar. Talvez eu não tivesse tempo para conjurá-lo, porém...

— Descarga elétrica dupla.

Duas runas surgiram e gravitaram nos lados das minhas mãos, preparando-o. Só que...

Mesmo se eu morresse com isso, não era o bastante. Invoquei uma terceira runa, canalizando as três simultaneamente. Senti minha cabeça ficar dormente e doer para caralho. Dentro do meu crânio, meus neurônios pareciam fritar como se estivessem dentro de uma panela de gordura ao fogo.

Essa porra doía, doía demais. Sangue escorreu do meu nariz e contaminou minha boca com o gosto metálico misturado com suor salgado. Mas, ainda assim, não era nada comparado ao que enfrentei no dia em que fiz o feitiço de compartilhamento de sentidos. Foi muito pior. Achei que morreria. Isso era brincadeira de criança. E, mesmo se doesse tanto...

Eu dizimaria essa praga. Foda-se o que custasse.

O monstro rosnou e não esperou escapar do gelo. Em um instante, sua cauda de escorpião voou em mim, rápida como uma bala, em um ataque que me partiria no meio sem dúvidas.

Não tinha o que fazer. Não conseguiria desviar daquilo. Mas, mesmo se morresse...

Agarrei aquele focinho ainda mais forte, espremendo-o entre os dedos. Mesmo se morresse, iria levar esse vagabundo comigo.

Quando a cauda estava próxima de mim...

— FLAMEL! — exclamou Violette, e logo o monstro berrou. Foi um choro agudo e nojento, como se alguém o torturasse vivo.

Só então vi a Violette montada no olho da besta, sua adaga rasgando-o em dois. A cauda do monstro me pegou de raspão, fazendo meu abdômen sangrar, mas meu corpo permaneceu inteiro. 

— VAI!

Entendi a mensagem. Com o feitiço de descarga elétrica, não poderia me mover. Mas, naquela distância...

Sorri, o sorriso mais sádico que já fiz na vida. Os três feitiços explodiram na minha mão, canalizados com tanta força que senti o mundo tremer. Os raios estouraram em um clarão amarelo que me cegou. O calor foi tamanho que minha mão começou a torrar, sendo cozida viva.

Os gritos do monstro foram tão suplicantes e desolados que me ensurdeceram. Meus tímpanos arderam profundamente, num choque que parecia chegar ao cérebro. Cada gota de mana evaporando de mim, meus músculos tão inchados que um choque mecânico os dilacerava. Estava destruído, minha mana acabando.

Mas nada, nada me fez soltar aquela praga, e coloquei cada partícula de mana no choque daquele filho da puta.

Quando o clarão se apagou, a primeira coisa que me recebeu foi o cheiro de carne queimada. Havia fumaça para todo lado e, à medida que ia embora com o vento, era revelada uma face de dar nojo.

Na pele escura do ser, uma camada de cinzas e pó havia se feito, como se fosse um carvão queimado. O olho fatiado havia parado de sangrar e se tornou escuro e rígido igual uma pedra, cauterizado pelo choque, enquanto o outro olho, vermelho e vivo, me encarava com um ódio brutal.

Ver aquela face em sofrimento me fez rir igual um desgraçado, quase gargalhando.

— É isso, sua merda do caralho. Vai vendo o que-

Num instante, algo me atingiu e fui arremessado a dezenas de metros de distância. Minha coluna se chocou contra uma árvore do outro lado da planície. Bati a cabeça e caí no chão praticamente sem consciência. Sem força alguma, o máximo que consegui foi rotacionar um pouco meu pescoço, tirando meu nariz do sufoco da terra.

Eu estava ofegando, encharcado de suor. Não sentia nada doendo, mas meus pulmões não conseguiam fazer força para encher ar. Talvez minhas costelas tivessem quebrado. Até perfurado meus pulmões...

Tentei assistir ao que acontecia entre a fera e a Violette, mas minha visão estava se escurecendo. Uma tempestade de vômito queimou minha garganta e me fez soltar tudo na grama. Só que o cheiro...

O cheiro não era de um bolo alimentar. Era de sangue. Sangue puro.

Conseguiste, hein? Ouvi a voz de Omnix Beytran na minha cabeça. Apesar do conteúdo irônico, sua voz parecia orgulhosa, como um pai que comemora a vitória do filho. Isso não tinha nada a ver com o quão patético acabei de ser arremessado.

“C-consegui?!... Consegui só se for me foder todo, e fazer a Violette machucar o braço por minha causa. Eu...”

Meus olhos se encheram de água. Foram a única coisa que conseguia sentir. Nenhum dos meus órgãos fodidos doíam. Eu... Eu treinei tanto, dei cada gota de mim, mas...

Tu conseguiste, Michael. Estás aqui mal há um mês, enquanto todos treinam há mais de década. Foras jogado aqui, sem guia e ajuda por longo tempo. Foras humilhado e feito de idiota. Tiveras que correr atrás de conteúdos de dois períodos inteiros para entender os feitiços atuais, sem teres qualquer treinamento prévio.

Quanto mais ele falava, mais eu queria chorar. Não merecia essas palavras. Não...

Michael, todos querem ter resultados, mas fogem das experiências. Não entendem que os resultados só podem provir da vivência, da dor e do risco de descobrirem que são muito piores do que acreditavam. Mas tu...

O que diabos eu fiz de bom, caralho?! Essa luta mesmo, só fiz merda!

Veja, Michael. Coragem não é a ausência de medo. É o domínio dele, mesmo quando parece se apoderar do nosso ser. É agir mesmo quando o corpo se torna tão rígido que se recusa a se movimentar.

Mas... Se eu me movi, foi por causa da raiva, e não por uma força de vontade sobrenatural...

Por que tinhas tanta raiva?

Não sei... Foram... Foram aqueles olhos malditos. Tinham a mesma cor daquela mulher que me perseguiu. Eu... Eu odeio o quão inútil sempre tenho sido, como nunca consegui lutar de frente com nada... Odeio isso. Odeio demais. Quero ser forte. Eu quero...

Mas antes dessa raiva, tiveste medo. Teu corpo tentou te fazeres aceitar teu fim, não foi?

Sim...

Sabes por quê?

Por que sou um fraco?

Não emocionalmente. Lembras dos últimos eventos de tensão que vivenciaste? Foram o episódio do armário e a surra do Cyle. Em ambas, tudo que pudeste fazer foi observar e rezar para acabar logo.

Sem notares, esse sentimento de impotência ficou gravado em tua mente e fez paralisar teu corpo hoje. Entraste na luta com o coração machucado, Michael, e mesmo assim encontraste força na raiva de ser inútil. Tiveste raiva da própria impotência, e isso te fizeste crescer e superar a ti mesmo. A raiva é teu mérito.

A raiva é meu mérito?

Sim. Se tens raiva de como és, é porque ainda permaneces nutrindo a vontade de ser melhor. Nem todas raivas são ruins. Elas queimam como brasas o que existe. Normalmente fazem obras milagrosas se tornarem cinzas, mas também podem fazer angústias se tornarem combustível de feitos maiores. 

Não obstante, depois conversaremos mais. Agora, abra teus olhos e vejas onde teus esforços poderão levar-te no futuro, se te esforçares mais.

Não consigo abrir os olhos... Já tentei. Estou à beira da morte.

Abra-os. Acredites em mim.

Certo...

Abri-os, e surpreendentemente um mundo repleto de cores se desenhou na minha frente. Vi a Violette lutando lindamente contra o monstro, dançando. Seu braço direito estava amarrado ao corpo com uma parte do tecido da calça, e, mesmo com o centro de gravidade modificado por isso, e sem poder equilibrar o corpo usando de ambos os braços, ainda nenhum ataque contra ela conseguia conectar. 

Era como se a criatura, tão inteligente e astuta, não fosse mais que um touro enfurecido e burro nas mãos dela. Mesmo quando tentava usar o ferrão da cauda, Violette majestosamente conseguia defender-se com uma lâmina tão fina quanto a de uma adaga.

Parecia impossível ela perder. Ainda assim...

“Ela é destra, não é? Será que vai conseguir?”

Apenas assistas. Prestas atenção nas runas.

“Runas? Que...”

Somente então notei que, a cada vez que ela desviava, uma pequena runa, quase invisível, se criava atrás de sua mão. Também notei que, embora a criatura a perseguisse em todas as direções, ao longo do tempo elas pareciam correr em volta de um círculo.

Cada vez que o monstro se mostrava incapaz de alcançar a Violette, rugia ferozmente, embora aos poucos perdesse a potência magistral. A grama começava a ficar coberta do sangue escuro, além de seus ataques estarem mais lentos. Pela forma como balançava a cabeça, parecia que meu feitiço o fazia estar atordoado até agora.

— Caladinho~ — disse ela em um tom divertido, como se estivesse em perfeito estado de saúde. Seus cabelos desgrenhados e sujos eram o completo oposto de seu rosto, que sorria com tudo. O que será que ela tinha em men...

De repente, o monstro parou, no centro do que parecia ser o círculo do combate. Ele grunhiu tão forte que o chão tremeu e me fez chacoalhar. Rugiu e rugiu, mas, não importava o quanto tentasse, não conseguia se mover.

— Ora ora~. — Violette se aproximou dele, os quadris se movendo a cada passo.

Durante um instante, ela fitou meus olhos, e seu sorriso travesso típico ressurgiu, como se se deliciasse com a situação.

— Parece que alguém ficou preso, não é mesmo? Seria uma pena se uma criatura tão forte e imponente como você se tornasse picadinhos...

Ela estalou os dedos, e de repente dezenas... não, centenas de linhas de arame finíssimas brilharam no ar. Elas estavam emaranhadas ao longo de todo o círculo em diferentes ângulos e posições, prendendo o monstro como uma camisa de força.

Não conseguia acreditar no que via. Cada centímetro da área estava repleto de fios. Do caos deles, percebi que formavam padrões de símbolos geométricos, parecendo o desenho de uma runa gigante. Era uma runa feita de fios colocados durante a luta. A Violette não apenas desviava, como manipulava a criatura para ir nos lugares certos, sem perceber a armadilha.

— Tenho pena de criaturas como você. Que só sabem sair destruindo o que veem pela frente. Que mexem com o meu Melzinho...

Violette saiu pulando por entre pequenos buracos dos fios até sair do círculo. Com um sorrisinho, ela espreguiçou com o braço para cima, tentando exibir os seios como sempre fazia para me impressionar. Porém, assim que esticou o corpo, um vômito de sangue irrompeu da garganta e a fez se virar ao chão.

— Bosta, vou ter que deixar isso para depois...

Ela reergueu a coluna e jogou o cabelo para trás, que ficou um pouco manchado de sangue. Encarou o monstro, uma expressão de desgosto reluzindo no rosto.

— Adeus.

Violette levantou a mão, com as centenas de fios enroladas no dedo indicador. Puxou o dedo, e...

Cada uma das linhas, que estavam em alturas diferentes, se atirou no corpo do monstro como um elástico. As escamas e a carne dele foram cortadas em pedacinhos por cada fio. Sangue, órgãos e tripas fatiadas jorraram na grama. O resultado final virou um bolo de carne escura com pedacinhos tão pequenos que mais pareciam sushis estragados.

Tsk... — Ela encarou os restos da criatura com o nariz enrugado em nojo e frustração. Seu olhar era frio, ainda mais frio que o gelo que invoquei, mais cortante que os frios que despedaçaram o monstro.

A cena me fez ter um calafrio no corpo inteiro. A Violette dizimou o monstro como se não fosse nada, e ainda estava nervosa com ele. Eu realmente... estou com alguém assim? Uma mulher dessas é aquela garota tão calorosa, carinhosa, amedrontada e insegura comigo?

Sem conseguir processar direito, vi seus passos aproximando-se de mim. Seu rosto continuava sério e frio. Engoli em seco e tentei o máximo possível me levantar para não ficar tão indefeso, mas não era capaz de me mexer. Ela andou até mim, e...

Tum.

Ela pisou na minha frente, o pé afundando na grama com força, numa imponência que me fez começar a suar.  

Ahhhh... — respirou fundo ela, num misto de estresse e alívio, e se sentou do meu lado.

No instante seguinte, Violette pôs as mãos na minha cabeça e costas e, com toda gentileza do mundo, me colocou em seu colo, em um movimento tão suave que meu medo desapareceu como o vento.  

Ainda assim, tentei impedir ela de fazer isso. Estava sujo de sangue... Não queria sujá-la ainda mais. Resisti às mãos dela e lutei para ficar na grama.

— Tá tudo bem, Mel. — Ela inclinou sobre mim e beijou minha testa, seus dedos afagando minha cabeça. — Tá tudo bem... Você não tá sujo não — disse ela, como se fosse capaz de ler meus pensamentos. Era assustador...

Mas não sentia resquício de mana nessa adivinhação dela. O fato de isso provavelmente só ser o quanto ela se preocupou comigo e se esforçou para aprender como sou me fez sorrir, o coração quente.

Finalmente fiquei relaxado e aceitei o gesto dela. Em menos de cinco segundos, eu já estava afundando em seu colo, sentindo as pernas mais deliciosas do mundo cobrindo minha cabeça. Ela riu, uma risada bem fofa e alegre, e voltou a acariciar meu couro cabeludo.

— Você... — Apesar da risadinha, a voz dela se tornou séria subitamente. Tão pesada que não conseguiu sair da garganta, hesitando.

— Eu...? — sussurrei, vendo a face de uma deusa daquelas. Tão linda... Nem parecia ser capaz de me matar de mil e duas maneiras.

— ... — ficou ela um tempo em silêncio. Silêncio o bastante para ouvir sua respiração profunda e irregular, como se algo a assolasse. — ...Como você consegue?

— Hm?

Ela continuou me fitando e, descaradamente, fez seus olhos brilharem com magia. Encarou-me por longos minutos, estudando cada traço do meu rosto e peito. O que me reconfortava no meio de sua inspeção era o carinho que me dava, com dedos tão gentis que era impossível me desejar mal.

O que ela queria dizer que consigo fazer? Ser tão inútil?

— Não... Não. Não pense ruim de você, Mel. Quis dizer outra coisa...

Encarei-a, tentando com isso perguntá-la como diabos ela sabe o que estou pensando. Ficava estranho já.

— Você olha para baixo e tira o ar dos pulmões quando se sente inferior. Suas sobrancelhas murcham tanto quanto seus lábios. Suas expressões são muito singulares, mas lindas. Quando fica cheio de desejo, luta para tirar seus olhos do meu corpo, mas sempre acabam voltando, principalmente nos seios e na cintura. Seus olhos ficam relaxados e brilhosos, como se visse uma obra de arte, e o seu sorrisinho cresce um pouco, imaginando como que você iria me-

— Tá, tá. Já entendi...

Minha face ficou um pouco quente, envergonhado de ela prestar tanta atenção em cada detalhe meu. Ela riu e continuou me acariciando, e eu cumpri meu dificílimo papel de afundar naqueles coxões e suspirar como o homem mais feliz do mundo. Ela...

Uma memória me invadiu de repente. “Olha o tsunami!”, eu gritava enquanto jogava água nela no rio. Tão bobos nós somos... Essa lembrança me deixou com ainda mais vergonha, mas também...

Era bom demais poder ser tão livre e solto com alguém.

Segurei a mão dela e beijei as costas dela. Não a larguei, e comecei a acariciá-la. Ela respondeu meu gesto coçando a porção de cabelo atrás da minha orelha, onde era simplesmente divino. Ela realmente me conhecia, talvez ainda mais que eu mesmo...

Palavras proibidas, que nos conectariam talvez para sempre, quiserem sair da minha garganta. Olhei para o rosto dela, e...

O que vi me surpreendeu. Ela encarava o horizonte com um rosto preocupado, silencioso. Havia uma pequena tristeza em seus olhos. Uma tristeza muda e secreta.

Apertei a mão dela com carinho, e ela me olhou com um pequeno sorriso, que ainda não quebrava o tom melancólico. Não foi o suciente...

Virei-me o máximo que pude para a barriga dela, lutando contra minhas costas rígidas como um tronco de árvore. Então beijei embaixo de seu umbigo, onde havia um rasgo sem corte. Não satisfeito, beijei-a uma, duas, três vezes, até começar a rir. Ela riu um pouquinho também.

Encarei-a de novo, e...

O pôr-do-sol começava a iluminar o mundo com seus raios laranjas, fazendo a face dela ficar mais vermelha e viva. Seus olhos, reluzindo o brilho, faziam-se cor de magenta, cintilando naturalmente, sem mais o brilho artificial, como se fossem uma safira arroxeada. Esse par de safiras...

Estiquei meu braço e toquei suas bochechas, abaixo dos olhos. Era tão lindos...

Seu sorriso cresceu, sereno e carregado. Permanecia agridoce, mas mais doce que azedo, o tipo de felicidade linda que só se consegue quando se encontra algo de valioso após muito sofrer. Ela se abaixou, deixando seu cabelo cair em volta do meu rosto, e...

Nossos lábios se conectaram, se entrelaçando como um nó. Nossos corações se conectaram pela nossa boca, junto da mana, num carinho que reafirmava a promessa de estarmos juntos sem necessidade de qualquer palavra. Apenas eu e ela, juntos.

Claro que, de uma forma não tão bonita, trocávamos um pouco do sangue um do outro nos lábios, mas...

Quem se apega aos detalhes materiais perde a magnitude dos significados do coração.

Depois do beijo, ela olhou fundo nos meus olhos.

— Mel... — Apesar de toda a bravura dela, ainda era uma garotinha quando se tratava de confessar seus sentimentos.

Sorri com aquilo e apertei a bochecha dela.

— Hm?

— Eu...

Aguardei pelas suas palavras. Aguardei, mas a única coisa que ouvi foi uma brisa suave de vento que nos abraçava.

No fundo, sabia o que ela queria falar. Aguardaria até que estivesse pronta. Até lá...

Minha mão viajou pelo pescoço dela e parou na nuca, antes de cair de volta ao colo. Ela podia nunca falar isso, mas...

Beijei-lhe outra vez a barriga e esfreguei a bochecha nela. Essa era a minha forma de dizer “eu também”. Essa era a forma que...

Ela riu e nos encaramos meio sem jeito, enquanto o Sol começava a nos deixar. Queria que ele nunca parasse de trazer tanta vida àquele rosto feliz, àqueles lábios que jamais deveriam murchar sem o seu calor. Sem o meu calor...

— Eu sou sua — finalmente disse ela, pela primeira vez fugindo do meu olhar. Que fofa...

Meus pensamentos intrusivos falaram mais alto, e, ao invés de respondê-la com palavras, o fiz mordendo a barriga. Ela deu um pulinho de susto e começou a rir.

— Só minha.

— Só sua. E você...

— Também só seu.

— Mmmmm...

Rimos juntos, e me deixei mergulhar no melhor colo que um homem poderia sentir em Viskhen. Era tão macio e quente... Meus olhos ficaram pesados. Queria dormir, mas queria ainda mais aproveitar aquele tempo com ela...

Minutos se passaram num silêncio extremamente confortável e íntimo. Eram minutos da mais completa paz, uma que achei que nunca viveria. Só que ela, coitada, estava tão cansada que os olhos fecharam e ela acabou dormindo sentada, o rosto virado para mim.

Ri, vendo que não era só eu que estava em paz...

Só então, vendo aquele rostinho lindo descansando pacificamente, quase como um anjo, que me entreguei ao sono, que me embalou em segundos. Mesmo de olhos fechados, ainda via perfeitamente aquele rosto angelical, que me acompanhou até dormir...

 

***

 

Assim que Michael adormeceu, Violette abriu os olhos dela, silenciosamente. Sua face fez-se neutra, embora, se alguém observasse de perto, notaria um pequeno sorrisinho nas pontas dos lábios. 

— Você é assustadoramente resistente — sussurrou ela com tom carinhoso, colocando Michael na grama e se levantando.

A verdade era que ela não conseguia entender como ele não havia desmaiado mais cedo. As roupas dele estavam dobradas para dentro de forma que não deveriam conseguir, indicando que havia verdadeiras depressões no corpo do rapaz. Ele estava destruído. Ainda assim, agia como se não sentisse dor alguma.

E talvez não sentisse mesmo... Michael escondia muitos segredos. Os olhos de Violette já haviam captado duas manas distintas circundando seus passos, mas havia uma terceira, e até o resquício de uma quarta, a qual só começou a perceber durante seus beijos e trocas de mana mais íntimas.

Sem escolha, ela teve que fingir dormir para que ele finalmente permitisse se desligar. Pelo modo como ele adormeceu tão rápido, era evidente que o que o mantinha acordado era a força de espírito. Uma força avassaladora, que parecia conseguir ir contra a natureza do próprio corpo para cumprir o que deseja.

...Um pequeno sorriso floresceu nos lábios dela, repleto de admiração. Ela agachou, pôs o jovem entre os braços e saiu da floresta carregando-o, não antes de contemplar uma última vez os restos da criatura que os atacou. Os minúsculos pedaços de sua carne evaporavam com a luz do Sol, o cheio podre contaminando toda a floresta. Era uma visão que, dentro da Academia, deveria ser impossível de ser presenciada.

Não importava o quanto ela se esforçasse, Violette não conseguia entender o que acontecia com Michael. Se ela carregava segredos, ele parecia guardá-los três vezes mais. Às vezes ele era tão fácil de ler, de se conectar. Mas... ao mesmo tempo, por que ele parecia tão inacessível a ela?

— Assim fica difícil te revelar mais sobre mim, seu idiota... — cochichou ela, encarando o rosto dele.

Apesar de tudo, ela expirou relaxada. Os problemas deles haviam terminado por enquanto. Violette não denunciaria o ocorrido. Era óbvio que a Academia estava por trás disso. Se um mísero lobo deveria constar na runa de detecção, o que dizer de um horror desses?

Seus olhos retornaram ao Michael, que respirava com dificuldade em seus braços.

— Fica bem, Mel... Você vai melhorar.

Era óbvio que iria. Ela mesma já presenciou como o corpo dele se regenera milagrosamente. É claro que ele iria se curar dessa vez. Não é?... Com certeza vai... Ele tem que se recuperar...

Antes que percebesse, os olhos dela se encheram de lágrimas. Lágrimas essas que, por tantos anos, tentou forçar de seus olhos para expulsar o tormento dilacerante preso no peito, mas nunca foi capaz. Lágrimas essas que, de alguma forma, vinham tão naturalmente com ele...

Ela queria chorar, ser uma garotinha com o Michael. Uma garotinha...

Violette riu de si mesma. Ela, logo ela ser uma garotinha? Seu sorriso de escárnio cresceu ainda mais. Talvez pudesse ser em outra vida. Mas nessa...

Esses pensamentos se proliferaram como uma praga e começaram a comê-la viva, por cada parte do corpo. A ansiedade se multiplicou e fez pinicar cada pedacinho de seus braços. Respirar se tornava mais difícil...

Ela estava um caos. Odiava isso, do fundo do coração. Odiava tanto que ardia, tanto quanto a ansiedade a consumia.

— Eu te odeio... — sussurrou ela, os lábios talvez cortando mais o silêncio que sua voz. — Eu te odeio. Mas... Mas também eu... Eu te... Eu te... Am...

Não importava quantas vezes tentasse, pronunciar essas palavras lhe eram impossíveis. Não seria capaz de pronunciar tão cedo. Talvez nem se lhe fosse dada a eternidade conseguiria...

Mordeu os lábios, frustrada. Seria mais fácil ela abrir o peito com uma adaga e extrair o próprio coração que dizer aquelas malditas três palavras.

Aquelas malditas três palavras...

Apesar disso, ela decidiu pensar mais sobre isso depois. O importante era que já atravessava o rio e levava Michael de volta para o dormitório, do modo mais sigiloso e secreto possível. Seria mais uma noite em branco estudando exaustivamente como curá-lo, mas...

Também significava mais uma manhã dando em cima dele e o vendo todo tímido. Ele era uma gracinha.

— Hehehe...

Sorrindo igual uma maníaca envergonhada, ela seguiu seu caminho.



Comentários