O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 40: Movendo as engrenagens do Destino

Enquanto dormia, de repente tudo começou a vibrar violentamente. Acordei assustado com meu corpo sacudindo de um lado para o outro e pulei para fora da cama, pousando em um chão surpreendentemente estável e sem tremores. 

Na frente dos meus olhos, a cama sacolejava como se fosse um peixe tentando sair de um balde. O meu coração, assustado, se encheu de ainda mais pavor quando me lembrei da porta do banheiro do meu antigo quarto batendo sozinha. Encarei todos os lados do quarto, por cada canto, por debaixo dos móveis... mas não havia nada de incomum. Só a cama que se debatia ferozmente. 

Fitando-a, meus olhos perceberam algo de estranho. Embaixo dela, havia uma grande runa relativamente complexa, de cor azul tão clara quanto um céu ensolarado. Alguma coisa naquela mana me era familiar... Tinha sentido aquela energia antes.

Aproximei-me dela e a toquei. Até minha mão sentiu uma estranha nostalgia. Isso...

Fechei os olhos e me conectei com a mana da runa, impelido a fazer isso por algum motivo. No instante seguinte, vi uma imagem embaçada, como se observasse uma cena através das águas de um lago. Nela, a professora Hayek, com um rabo de cavalo e suor escorrendo, terminava de preparar a runa embaixo da cama. Tinha um sorriso animado e inocente que, apesar de distante de seu jeito sério, se encaixava perfeitamente no rosto, com um brilho que nunca vi.

Nessa visão, em cima da cama havia uma folha que era nítida, em contraste ao ambiente ao seu redor. Li o seguinte:

Teste da minha primeira runa com função “se”:

Primeiro, às 6 horas da manhã, me acordará com um leve vibrar na cabeça;

Se eu não a desativar, em cinco minutos ela começará a vibrar.

Se ainda assim não acordar, ou seja, se não a desativar, em mais cinco minutos ela começará a sacudir até se quebrar.

Como uma cientista maluca, Hayek saiu pulando pelo quarto. Vê-la assim tão jovial e alegre foi uma experiência bem singular...

Uma risada escapou dos meus lábios. Depois, explodindo como um vulcão, tornei a gargalhar. Começava a ter certeza de que ninguém naquele mundo vai parar de me surpreender...

Depois de enxugar uma lágrima da risada, cessei o efeito da runa, de alguma forma sabendo perfeitamente como fazê-lo.

A julgar pela função “se” dela, se a cama vibrou tanto, então era por volta de 6h10 da manhã...

Estiquei meus membros, observando que meu corpo não doía mais. Minhas costelas pareciam estar inteiras e firmes, além de estar com uma disposição e energia sem igual.

Agora já mais acordado, olhei para o Livro, que havia caído no chão com a bagunça. Uma memória amarga envolveu minha mente, relembrando toda a dor e humilhação do dia anterior... Pela segunda vez, minha vida não foi mais que mero brinquedo, cuja diversão na mão deles era quebrá-la de pouco em pouco. Quase fui morto, sem nada ter feito para isso. Tudo porque eu era fraco...

Segurei o Livro com força e o coloquei sobre a estante, encarando-o em silêncio. O silêncio, porém, era apenas externo; por dentro, meu peito ardia com chamas mais barulhentas que qualquer som do mundo.

No fundo, eu sabia que precisava treinar mais pesado. Só que, quando tive oportunidade de fazê-lo, decidi correr em vez de malhar. Foi uma escolha racional e bem-embasada na época, mas tinha me esquecido do principal: esse é um mundo que quer ver meu fim a qualquer momento, e, se quando a morte bater na minha porta eu não estiver preparado, terei minha garganta cortada.

A despeito dessa verdade atroz, uma parte de mim não queria lutar. Na verdade, minhas pernas estavam tremendo. Não queria sair do quarto e arriscar encontrar Cyle de novo. Não queria ir treinar. Depois de passar por tanta coisa, todo ser humano precisa de um descanso... Meus olhos se voltaram para a cama tão convidativa. Eu a merecia. Não se pede que uma vítima que quase foi morta tenha um dia de esforços produtivos...

Sentindo em mim os dois impulsos, o da sobrevivência que clama a resistir contra a opressão e o da aflição que implora por uma pausa, sorri de ironia ao perceber que isso se encaixava justamente em um dos temas que li no Livro.

Nele, discorria-se que o ser-humano, em diversos momentos de sua existência, é chamado a escolher seu futuro com incontáveis decisões pequenas que, pouco a pouco, tornam-no quem é. Há escolhas grandes, que impõem óbvios limites, como a escolha de um curso ou profissão; mas nenhuma se sustenta sem pequenas escolhas diárias, que são como tijolos que constroem o castelo.

Pode-se, afinal, escolher o curso mais glorioso, que mais tem a ver com a pessoa, e ainda suas ações diárias podem levá-la à mais brutal das infelicidades. E o que seria o “curso que mais tem a ver com a pessoa”? Afinal, se cada experiência nos enche de sentimentos e pensamentos novos, se eu escolhesse o melhor curso para mim, no ano seguinte eu poderei ter mudado e já não me encontrar naquele sonho inicial.

Se, então, uma pessoa quisesse se encaixar na própria vida, a solução não seria encontrar caminhos que magicamente lhe sejam maravilhosos, mas se construir naquilo que ela escolher para si.

Na verdade, para minha mais delirante e angustiante surpresa, o Livro terminou com um grande questionamento. E se, na verdade, as influências que temos, sejam internas ou externas, por vezes não são tão limitantes quanto imaginamos, e é quando escolhemos segui-las que passamos a acreditar que o são?

Por exemplo, um jovem que, nascido numa família de advogados, se vê pressionado por eles para ir ao Direito. Essa pressão externa faz com que ele, se for para outro caminho, veja a decepção e traição no olhar dos progenitores, que outrora tanto lhe deram amor. Isso lhe trará dor. Ainda assim, cabe a ele decidir ou não seguir esse caminho, e como o fará.

Nesse caso, se ele escolher ir para o Direito por causa dos pais, quão provável seria ele atribuir sua escolha à pressão deles, como se fosse impossível fazer outra coisa, e nem se lembrar que, mesmo que influenciado, ainda escolheu isso para si? Ou que, mesmo se fosse impossível recusar os pais, como caso o ameaçassem de expulsá-lo de casa, ainda teriam muitos modos diferentes de fazer a escolha do Direito, desde sua trajetória na área até a forma como comunica os pais?

Se isso for verdade... Se for mesmo verdade...

Meus olhos encheram-se de lágrimas. Se isso for verdade, então o fato de eu ter ficado tão mal por tantos anos não é mera culpa do Lucas, mas também culpa minha, por dia após dia ter escolhido repetidamente me deixar cair, mesmo depois de anos. Sem perceber, construía minha própria cova, e até preparava meu próprio caixão.

Não queria isso para mim. Não queria. Se o motivo de eu ser espancado e tratado como um nada for também culpa de minhas escolhas... Então... Então...

Apertei os punhos, minha cabeça fervendo. Eu falhei com tantos anos da minha vida, sentia como se tudo fosse em vão. Como se, mesmo treinando, já era tarde para tentar me tornar alguém melhor. Ainda assim, se existe uma mínima chance... Se existe uma mísera chance de conseguir vencer, então eu vou agarrá-la com toda minha alma...

Virei-me para trás e pisei com firmeza. Iria sair daquele quarto e voltar a treinar. Iria dar meu melhor e, dessa vez, me esforçar dia após dia, sem nunca mais fraquejar. Eu vou, eu...

Leia o livro, Michael — disse o cavaleiro na minha mente, interrompendo meus pensamentos com um tom suave.

Um arrepio percorreu minhas costas, não por medo, mas por sentir na voz dele uma energia forte como se viesse das raízes do centro do mundo.

Como se aquela ordem fosse superior, fui de volta à estante e abri o livro. Nele, encontrei uma nova página escrita, contendo o seguinte:

Se não vires beleza em ti, faz como o escultor de uma estátua que tem de ser tornada bela. Ele talha aqui, lixa ali, lustra acolá, torna um traço mais fino, outro mais definido, até dar à sua estátua uma bela face. Como ele, tira o excesso, remodela o que é oblíquo, clareia o que é sombrio e não para de trabalhar a tua própria estátua, até que se recubra com a beleza de uma alma que nunca se rendeu, que permaneceu se lapidando até chegar ao seu potencial belo e divino.

Nisso não cabe reclamações. Lembre-se sempre que ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas sempre podemos começar de novo e fazer um novo fim.

Nem que seja pela centésima vez, recomece. Reconstrua-se. Esculpe-se a si próprio. Enquanto o coração bater, ainda o sangue pode ferver.” Era o conteúdo do livro.

Essas palavras...

Não consegui não pensar nas trinta páginas que li ontem. Nelas, Omnix Beytran escreveu que as influências que recaem sobre nós, sejam internas ou externas, possuem uma característica em comum: ir contra elas causa dor, tão mais forte e ardente quanto mais intensa for a influência. Ir contra meus traumas e fracassos me encheria de dor, mas não importa o quão árduo e lento o processo poderia ser, eu não sou limitado por eles e nem pelo meu passado. Tenho a escolha de começar a mudar, de esculpir a mim mesmo...

Coloquei o livro de volta à mesa e encarei uma última vez minha cama. Era tentador me esconder debaixo dos lençóis igual quando vim parar aqui. Era tentador chorar mais pelos meus pais...

Mas não era mais o mesmo Michael. E, mesmo se fosse, não mais o seria.

Andei até a porta. Abri-a, passei por ela e olhei uma última vez para meu quarto. Lá era meu mundo de conforto, meu lugar de descanso... Mas fechei a porta para aquele mundo. Tudo que me encarava agora era a madeira fria e rígida dela.

Resoluto, caminhei para fora da caverna e, sob o sol nascente, me pus a treinar. Não mais corridinhas, mas flexões, abdominais e tentativas de fazer barra com galhos de árvore. Meu corpo tremia, suava, exasperava. Mas não pararia. Não mais.

 

 

Depois das aulas da manhã, no lotado e barulhento restaurante da Academia Real de Bauchir, com risadas jogadas ao ar e fofocas abafadas, um pequeno grupo reunia-se numa curta mesa no canto do salão, longe de toda cor. Na verdade, quem olhasse para a cena não veria aquele grupo de imediato; somente se alguém apontasse o dedo o observador notaria o quão diferente ele era, como um rubi infiltrado num mar de esmeraldas.

Em volta daquela mesa, Dolgan, Melissa, Tannivh e Benkei conversavam e almoçavam, com um jeito tímido mas exaltado. Entre Dolgan e Melissa estava Michael, de olhos fechados enquanto terminava sua refeição garfada por garfada, longe do diálogo de seus amigos. Parecia ele ser mera parte da paisagem, como se não fizesse parte do grupo.

Dolgan hora ou outra batia em suas costas e lhe dirigia um elogio repentino, dizendo coisas como “o Flamel sabe tudo de matemática!” ou “vocês já viram ele tocando piano?!”. Michael reagia com uma risada surpresa e envergonhada; respondia, meio sem jeito, mas logo o assunto se tornava outro, e o foco do jovem voltava ao macarrão.

Quando terminou a refeição, começou a se levantar, até que Dolgan agarrou-lhe a manga da camisa. O anão o encarou com um toque de hesitação e incerteza.

Oi? — Michael o fitou com olhos curiosos e sobrancelhas caídas, como se estivesse preocupado com a reação repentina do amigo.

— Já vai? — disse ele. — Você nem almoçou direito.  

Todo o grupo os observava, mudo.

— Já. — Michael sorriu, tão sem jeito quanto sempre. — Preciso ir estudar.

— Estudar? — Dolgan coçou a cabeça. — Você acabou de comer, cara. Não tá com sono?

— Então... — Michael os encarou com um olhar vacilante e meio triste. Hesitou por alguns segundos, quieto. Sentiu seu coração fraquejar e palpitar. Estava treinando desde o começo do dia, mas...

“Nem que seja pela centésima vez, recomece. Reconstrua-se. Esculpe-se a si próprio.

“Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas sempre podemos começar de novo e fazer um novo fim.

“As influências, internas ou externas, lhe fazem sentir dor quando for contra elas; mas isso não impede de escolher a si próprio o que farás do seu destino”, relembrou-se de cada uma das lições que aprendeu.

Queria muito, muito mesmo passar mais tempo com eles. Benkei transmitia-lhe uma paz sem igual, Melissa parecia digna e nobre como uma deusa, Dolgan era tão amigável... Mas sua maior responsabilidade era consigo próprio.

Doeu-lhe se pôr a falar isso, mas se determinou:

— Desculpa, realmente preciso ir estudar. 

Viu os olhos tristes de Dolgan e Melissa, o silêncio grave de Benkei e os lábios de Tannivh murchando. Não tendo mais o que dizer, apressou os passos e saiu. Sem ele, logo o grupo retornou a conversar.

No interior do restaurante, porém, sua saída também atraiu outros olhares. Sobretudo Violette, que conversava com Guinevere, Anna e Sara, não conseguiu parar de encarar a saída desde que Michael passou por lá...

 

 

Debaixo do luar, ao ar-livre no pátio gramado perto do dormitório, sentia meu peito explodindo enquanto meus braços trêmulos me empurravam para cima numa flexão de braço. Meu abdômen estava igualmente sem forças, quase cedendo ao meu peso. Meus braços ardiam como se meus músculos tivessem sido trocados por lava do mais ardente vulcão.

— Só mais um pouco... — Meus braços tremiam ainda mais, minha cabeça doendo. — Só mais um pouco...

Dei tudo de mim, e finalmente consegui subir e terminar a flexão. Só então caí de lado, com o corpo mole e sem-vida, ofegando freneticamente como se fosse minha primeira vez tendo oxigênio em anos.

Não sabia o porquê, mas, no meio de todo cansaço, comecei a rir. Simplesmente ria por entre as arfadas de ar, exausto demais para tentar entender o porquê.

Depois de uns bons minutos, me levantei e peguei um novo livro de capa de couro marrom que tinha deixado ao chão. Embora ele fosse menos de meio quilo, agora parecia tão pesado quanto uma bigorna de ferro. Falando em bigorna de ferro...

Algumas memórias carinhosas de Minecraft me consolaram enquanto andava quase caindo até meu quarto. O mais difícil, sem dúvidas, foi descer os degraus, com uma perna tão fraca que não conseguia movê-la direito. Não era nem dor, mas apenas a ausência do movimento que queria fazer. Mesmo se tentasse, não conseguiria levantá-la muito acima do que alguns centímetros...

Entrei dentro do quarto, tranquei a porta e me atirei na cama. O sono sorrateiro e infiel me invadiu contra minha vontade, como uma tentativa exausta de meu corpo se recuperar da carga pesadíssima que lhe fiz passar durante o dia todo.

Meio aturdido, encarei os três livros novos na minha estante. Todos eu havia lido, sendo um deles o que a maldita professora Zanyt mandou fichar de capa a capa. Aquela bruxa velha...

Mesmo que fosse chato ser obrigado a fazer algo assim, eu estava bem. Estava orgulhoso de mim mesmo, e fiz um progresso sem igual. Ainda demoraria para alcançar o conhecimento que meus colegas tinham, mesmo com minha capacidade surreal de leitura. Mas era progresso, e uma hora eu chegaria lá...

Por entre cochilos, descansei por mais meia-hora, até me sentar na cama determinado, pegar o novo livro e começar a ler. Era uma obra que peguei na biblioteca, procurando, por sugestão da voz da minha mente, por alguma runa que pudesse ser colocada na cama para fazer o sono restaurar mais meu corpo.

Contudo, como era previsível, depois da página dez já não conseguia ler, exausto. Mesmo assim não parei. Peguei uma pena tinteiro que encontrei na gaveta e a usei para ajudar meus olhos a acompanharem a leitura, num ritmo bem mais lento do que o usual.

Ainda assim, não foi o suficiente. Depois de ler uma página, não me lembrava o que tinha visto. Tive que voltar um passo atrás e começar a sublinhar palavras-chave e frases. Assim, mesmo que não me lembrasse de imediato, vê-las me fazia relembrar do raciocínio.

Naquele ritmo lento, foram cem páginas lidas, numa mistura de cansaço e foco que me fez nem ver o tempo passando. Quando finalmente fechei o livro com meu objetivo concluído, um sorriso traquina invadiu em minha face esgotada.

Tendo agora o conhecimento necessário, tirei um giz do bolso da calça, que peguei com a Hayek, e desenhei no colchão um pentagrama repleto de incontáveis símbolos, na casa dos milhares. Conseguir transcrever todo aquele desenho foi tão difícil e minucioso para mim quanto seria recriar uma pintura pixel por pixel.

Além de tudo, não bastava só desenhar: essa era a parte material. Era necessário também conseguir traçar fios de mana que conectavam cuidadosamente cada figura com todas as demais, como se estruturasse uma complexa máquina cheia de engrenagens que estão simultaneamente se interinfluenciando. Um simples deslize quebraria toda a engenharia.

Quando estava na metade da runa, talvez duas horas já teriam se passado. Não aguentava mais. Sentei-me e pensei em desistir. Peguei o Livro e reli as frases; não importava quantas vezes as lia, sempre me soavam belas e esperançosas. Era como se Deus me dissesse que ainda posso mais, que ainda posso me reconstruir. Que posso ser melhor.

Encarei o pentagrama pela metade, por segundos que se estenderam a minutos. Um sorriso opaco cobriu meus lábios, no limiar entre desistir e continuar. Depois de mais alguns minutos, pus-me de joelhos e recomecei a desenhar traço por traço, a conectar fio de mana com fio de mana, numa delicadeza e complexidade que qualquer aranha teria inveja.

Mais uma hora se passou, e começava a pegar o jeito de manipular a mana e ir desenhando. O cansaço deu lugar a um estado de espírito focado. Tudo que existia para mim era a runa, até traçar sua última figura.

Quando o fiz e vi aquele desenho extenso e complexo pronto, meu coração se acelerou. Será que fiz certo? Será que vou conseguir?...

Receoso, mas com uma esperança recobrindo o coração, injetei um pouco de mana. Como uma máquina com suas engrenagens começando a rodar uma por uma, a mana se espalhou por milhares de fios invisíveis, fazendo progressivamente cada símbolo se iluminar num brilho roxo. Minha mana continuou a ser sugada, e diante dos meus olhos um rico desenho cintilante tomou vida. Era...

Era simplesmente majestoso. Palavras não conseguiriam descrever como cada coisinha minúscula se conectava de forma tão delicada mas essencial com outras dezenas de coisinhas minúsculas. Tudo estava em ordem. O brilho subia e descia com leveza, como se a runa respirasse, tranquila.

Acariciei gentilmente a runa, e uma lágrima minha pingou do nariz e caiu nela. A água lentamente se espalhou pelo colchão, como se ele a abraçasse e a acolhesse para dentro de si. Diante da minha primeira criação, me senti como um pai diante do filho...

Com um sorriso satisfeito, fui ao banheiro, tomei banho, coloquei novamente o uniforme que nunca se sujava nem se amarrotava, coloquei o lençol de volta na cama e... não pude mais resistir. Deitei nela, e fui abraçado pelo sono tão rápido que era como uma canção irresistível da sereia.

Abri os olhos quando a cama começou a vibrar para me acordar. Naquela manhã, logo descobri que estava mais revigorado do que jamais me senti. Espreguicei os braços e senti como se fosse capaz de conquistar o mundo, com músculos energizados e prontos para o combate.

Antes de sair do quarto, olhei outra vez para a cama. A tentação de dormir e me esconder era muito, muito menor que no dia anterior. Realmente queria ir treinar. Sentir-me assim me fez me sentir recompensado por todo esforço que fiz, pela mudança que comecei em mim mesmo. Talvez já estivesse me esculpindo, “moldando o que é oblíquo, clareando o sombrio”...

Fechei a porta, bloqueando minha visão àquele mundo confortável, perigosamente confortável. Andei de volta ao pátio, onde recomecei minha rotina de treino, prosseguida por mais estudo, banho e o começo das aulas matinais...

 

 

Segui a rotina dia após dia, até chegar no final da sexta-feira. Não houve uma hora dos dias que não tenha me dedicado ao esforço, a não ser por raros momentos em que o cansaço me fez parar um pouco.

Naquele dia, enquanto ia me recolher no quarto para continuar estudando os infindáveis tópicos de feitiçaria que eu precisava de saber para ser visto sequer como um aluno medíocre do primeiro período — eu estava no terceiro —, ouvi a voz do cavaleiro na minha mente me pedindo para que checasse o livro.

Fi-lo e meus olhos se arregalaram quando vi uma runa transcrita nele, junto de mais texto. A euforia tomou conta de mim de tal modo que, quando percebi, já havia terminado de devorar as cinquentas páginas novas que surgiram nele. Meu sorriso, porém, cresceu com ainda mais vigor.

Agora a lição era focada em um feitiço chamado “Feitiço em área: interconexão dos sentidos”. Sim, bem direto ao ponto: consistia em criar uma área na qual as pessoas teriam acesso simultâneo aos sentidos de todas elas. Por exemplo, se eu estivesse com Guinevere e Violette e ativasse o feitiço, eu enxergaria simultaneamente pelos olhos meus, da Violette e da Guinevere, e elas também teriam esse efeito.

No entanto, três imagens mentais se produzirem no cérebro também significava exaustão mental e até falta de concentração. Era algo delicado e que exigia treinamento prévio, inclusive com os companheiros.

Também notei que o feitiço que estava disposto era uma versão simplificada dele, e que serviria somente para a visão. Nas versões mais aprimoradas, sentidos da audição, tato, paladar e olfato também poderiam ser compartilhados. Omnix escreveu que, num alto grau de maestria, até emoções poderiam ser sentidas em grupo.

O problema era que mexer com a alma das pessoas poderia trazer danos irreversíveis. Assim, o cavaleiro decidiu me ensinar somente o básico, com baixos riscos de gerar sequelas.

O pensamento de eu acidentalmente fazendo algo de ruim com a Violette ou a Guinevere... Começava a entender a responsabilidade que era praticar magia da alma.

Reli a runa do livro mais algumas dezenas de vezes, até estar seguro de poder reproduzi-la fidedignamente na minha mente para conjurá-la. Agora só precisava praticá-la. Porém, havia um grande empecilho: precisava de alguém para testá-la. Afinal, se eu conseguisse gerar a área e não tivesse ninguém por perto para compartilhar o sentido da visão, como saberia que deu certo?

Comecei a pensar em quem pediria para praticar isso... O mais difícil era que não deveria contar para ninguém sobre o Livro, ou sobre magia da alma — que nunca ouvi falar em nenhum livro ou aula. Poderia ser uma magia proibida... Além disso, e se eu errasse o feitiço e fizesse algo horrível com a alma de alguém? Não poderia correr esse risco...

Inquieto, saí andando pela Academia com isso na mente. Meus passos me levaram para meu lugarzinho atrás do dormitório, onde a grama e a terra eram fofas o bastante para suportar meu peso quando caía. Era engraçado, mas aos poucos via aquele lugar como meu. Ninguém mais lá ia, e tinha espaço suficiente para treinar e árvore o bastante para respirar um ar puro e refrescante quando estivesse exausto.

Ali, meus olhos viram um pequeno coelho branco saltitando perto da base de uma árvore. Foi então que meus olhos brilharam: e se eu o usasse para treinar?

Os olhinhos pretos dele, que mais pareciam com bolinhas de gude, me encararam com a inocência que só os filhotes de coelho poderiam ter. Vendo-o assim, me senti culpado por planejar usá-lo dessa forma. Se algo desse errado, seria ele quem sofreria...

Fiquei o encarando, sem saber o que fazer. Realmente não queria machucá-lo. Mas, contra todas minhas expectativas, ele andou em minha direção e parou ao lado dos meus pés, como se tivesse mais curiosidade de mim que medo. Ajoelhei-me ao chão e o peguei. Ele era macio e até pesado para seu tamanho...

Suas orelhas altas e pontudas mexiam para os lados enquanto ele encarava meus olhos. Ele tombou sua cabeça para o lado, como se estivesse se perguntando alguma coisa sobre o ser humano que via.

Aquilo...

Engoli seco, secretamente pedindo desculpas a Deus e à natureza pelo que estava prestes a fazer. Com gentileza, o abracei e comecei a focar minha mente em imaginar a runa embaixo de nós, com cada mínimo detalhe, com cada figura, com cada palavra em idiomas que pouco conhecia...

Mentalmente, desenhei cada traço, cada contorno, e também esquematizei todo o fluxo de mana entre cada símbolo.  

O coelho permaneceu nos meus braços, sem se mover ou protestar. Como minha mente podia focar em duas coisas ao mesmo tempo, como se fossem dois cérebros interconectados, consegui afagar a cabeça dele sem perder a concentração.

— Obrigado. Você é um bom garoto.

Após meia-hora invocando o símbolo, finalmente estava completo. Minha memória se certificava de que tudo estava certo, precisamente desenhado. Um sorriso abraçou meu rosto, sentindo o gosto doce dos esforços sendo colhidos. Apesar do “super-cérebro”, só conseguia fazer isso porque nos últimos dias treinei tal habilidade por várias horas.

Seguro do que fiz, coloquei mana no circuito. Ele lentamente acordou, e as figuras desenhadas... Elas, que deveriam apenas brilhar, começaram a rodar e a voar. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, um dos símbolos puxou o fluxo de mana violentamente, criando uma distorção na runa tão forte que senti meu corpo sendo partido junto do tecido de mana, uma dor insuportável tomando conta do meu abdômen como se ele fosse rasgado ao meio.

— ARGGHHHH!!!

Caí de bruços no chão, o rosto contra a terra, e gemi de dor. Minhas mãos tatearam meu torso, verificando se eu estava inteiro; apesar de confirmar que sim, meu corpo ainda ardia, como se fosse um elástico esticado até quase rasgar.

Encharcado de suor, fiquei lá deitado, ofegante, até sentir alguma coisa suave cheirando minha bochecha. Abri os olhos e vi o coelhinho, ainda ali, me encarando, quase que me perguntando se estava tudo bem.

Não pude deixar de rir e acariciar suas costas, feliz que ele parecia estar intacto.

— Bom garoto... Obrigado.

Fiquei mais alguns minutos me recuperando. Assim que a dor passou, me sentei de novo no chão e me pus a tentar o feitiço mais uma vez, abraçado ao pequeno animal.

A cada traço mental que fazia, mais minha expressão se fechava em dúvida e ansiedade. O que havia errado? Enquanto refazia a runa, nada parecia de diferente de antes. Será que memorizei errado algum símbolo? Não... Lembrava-me de tudo perfeitamente. Eram então as conexões de mana?

Terminei de canalizar o formato da runa e me concentrei em traçar cada fio de mana. No momento em que terminei, engoli em seco e tentei conjurar o feitiço.

A runa brilhou ainda mais intensamente. Cada uma de suas partes começavam a vibrar harmoniosamente; o norte como o sul, o leste como o oeste. De ponta a ponta, todas as partes pareciam se conectar para se tornar uma só coisa, um só ser. Aquilo era lindo... E...

De repente, algo aconteceu. As figuras ao norte começaram a vibrar mais intensamente que as restantes, em um claro desequilíbrio. Minha mana começou a ser puxada e sugada ferozmente em quantidades absurdas.

Em poucos segundos eu estava coberto de suor, rangendo os dentes enquanto dava tudo de mim para impedir que aquela parte da runa se desequilibrasse ainda mais. Quando começava a acalmá-la, diversas outras explodiram, resultando em um curto-circuito que consumiu meu corpo em um choque tão brutal que meu corpo se enrijeceu, incapaz de escapar da runa, gemer ou sequer respirar.

Em poucos instantes, perdi a consciência. Acordei poucos segundos após, o corpo dolorido e pesado como se tivesse sido atropelado por um caminhão. Respirar era difícil e acabei tossindo, engasgado. Um vômito irrompeu do meu estômago e me fez lançar uma mistura ácida e fedorenta no chão.

— Puta merda...

Meu coração estava aceleradíssimo, rápido o bastante para ter um ataque cardíaco a qualquer momento. Depois de expelir toda minha janta, usei o restante da minha força para me jogar ao lado e não cair em cima da poça amarela borbulhante.

Não conseguia pensar em mais nada. Todo meu corpo simplesmente gritava para parar, para dar um fim a tudo isso. Normalmente, quando meu físico protestava, minha mente retrucava com ainda mais vigor e força; nesse caso... não.

Encarei o céu sombrio, já sem uma estrela sequer, coberto de nuvens pesadas. Talvez choveria em breve. A única iluminação que possuía agora era um poste de luz fraco um pouco longe. Estava escurecendo depressa...

Tentei me levantar, mas tudo que consegui foi vomitar outra vez, caindo sobre meus cotovelos e regurgitando apenas saliva.

Ali, sozinho, a runa que fiz passou pela minha mente por centenas de vezes, examinando incessantemente o que eu poderia ter feito de errado. Não havia nada, absolutamente nada de errado. Cada símbolo estava certo. Especialmente porque, a julgar pela facilidade com que me lembrava da estrutura do feitiço, certamente era uma memória posta na minha mente pelo cavaleiro. Não havia dúvidas.

Então por quê? Por que eu não conseguia? Será que era tão inútil assim? Eu...

Levantei-me lentamente, tremendo. Meu corpo não tinha mais força alguma. Era como um pano que, de tanto ser torcido, havia esgotado toda água. Não havia o que fazer...

Um relâmpago cortou a noite sem estrelas, prenunciando uma chuva que logo começou a cair sobre mim. No começo era leve e morta, mas rapidamente se avolumou, até se tornar tão tempestuosa que curvava até a maior das árvores.

Antes que o tempo piorasse, era minha última chance. Tinha que tentar mais uma vez. Só mais uma vez...

O coelho ainda estava obedientemente perto de mim. Abracei-o e tentei tudo outra vez. O resultado foi...

— ARGHHHH!!!

Um choque se espalhou por todo meu cérebro, aquecendo minha cabeça como se fritasse meus neurônios. Era como se meu cérebro se sobrecarregasse e os neurônios começassem a entrar em curto-circuito, com os impulsos elétricos correndo generalizadamente até não sobrar nada mais que neurônio queimado.

Desfaleci no chão outra vez. Mordi meus dentes, enraivecido, e, mesmo atordoado pela dor de cabeça, tentei mais outra vez. Refiz cada figura, cada fio de mana, e...

— ARGHGHHHGHGH!!!

O resultado foi uma dor ainda pior tomando minha cabeça.

Bati no chão com uma frustração explodindo de todo meu ser. Arranhei o solo e finquei minha mão nela, agarrando um pedaço de terra e a apertando com toda minha fúria.

— Por quê...

Suspirei fundo. O que estava fazendo era idiotice. Estava me matando agindo assim... Merda. Por mais que não quisesse aceitar, não tinha mais o que fazer. Não iria conseguir...

Comecei a me dirigir para fora dali, quando o coelho de repente se enfiou na frente dos meus pés, me encarando com aqueles olhinhos pretos e brilhantes. No meio da fadiga e da derrota, um pequeno sorriso se abriu nos meus lábios.

Com um aperto no coração, falei:

— Desculpa, cara. Não é hoje.

E passei por ele, parando na entrada do dormitório, onde a chuva já não me atingia. De lá, o observei mais uma vez. Ele estava parado embaixo da tempestade, me olhando como se me clamasse a tentar mais uma vez, a me arriscar e mostrar que sou capaz.

— Mas que diabos...

Infelizmente, essas ideias pertenciam ao reino da fantasia. No reino do mundo real, não havia milagres, nem sortes que fariam com que alguém tão fatigado como eu tivesse mais sucesso no feitiço que antes.

Virei-me e comecei a andar adentro do corredor. Ou melhor, tentei começar, porque meus pés se negaram a continuar.

— ...

Sem que percebesse, meus pés me levaram de volta ao coelho, debaixo da chuva. Segurei-o e, pela última vez, tentei.

Soltei o ar dos meus pulmões, meus pensamentos indo embora junto dele. Naquele momento, eu era a runa, meu cérebro inteiro imaginava cada detalhe dela, cada ligação de mana, cada mínimo detalhe, não importava o quão sutil fosse.

Quando ela ficou pronta, não tinha mais energia para revisar o que fiz. Simplesmente coloquei minha mana nela, e me mantive concentrado para que, no menor sinal de desordem, eu rapidamente consertasse o feitiço.

A cada segundo que passava, mais a runa brilhava, todas as figuras cintilando em conjunto. Era algo belo, belíssimo, todo aquele caos de milhares de coisas se interligando e formando uma só unidade, uma só coisa...

O brilho subitamente cessou, e uma densa energia roxa no chão me circundou no entorno de três metros de distância. Aquilo...

Antes de abrir os olhos, comecei a enxergar. Era uma visão vinda um pouco mais abaixo que a minha cabeça. Nessa vista, meus braços haviam se tornado gigantes e assustadores. Era a visão do coelho, sem dúvidas.

Abri minhas pálpebras e comecei a ver o mundo através de duas visões paralelas, ocorrendo simultaneamente. Isso era lindo, maravilhoso. Algo que seria impossível de se ver ou mesmo de descrever. Era como se a mente do coelho e a minha fossem uma só, vendo as mesmas coisas, mas de ângulos e perspectivas diferentes.

Um sorriso do tamanho do mundo tomou meus lábios e comecei a rir igual bobo. Eu consegui. Eu consegui! Eu...

Uma dor de cabeça gritante me assaltou de solavanco, recobrindo meu cérebro de outro choque que fez arder cada centímetro de dentro do crânio.

Descontrolado e desorientado pela dor excruciante, perdi o equilíbrio e comecei a cair para trás. Numa tentativa de impedir isso, fui andando para trás caoticamente, até bater contra o muro do dormitório. Nesse momento, uma terceira visão repentina invadiu minha mente, me mostrando...

Eu mesmo, visto de cima. Engoli em seco e um arrepio se alastrou pelas minhas costas. Alguém me observava do alto...

Olhei para cima e o que vi me fez estremecer. Contra o vento, longos cabelos ruivos balançavam para fora da janela do quarto. Contra a escuridão da noite, seus olhos violetas ardiam num brilho frio, ainda mais gélido que a brisa molhada que chicoteava meu corpo. Contra todas as possibilidades, Violette me observava, tendo nossas visões compartilhadas por um feitiço que ninguém da Academia deveria saber que existe.

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