Volume 1
Capítulo 35: Construindo dias melhores
Cheguei exausto ao quarto subterrâneo, cambaleando com a pilha de livros.
Era a primeira vez em um longo tempo que passava a manhã e tarde estudando. Com os olhos fechando de sono contra minha vontade, chegaria a trocar alguns meses de vida por um bom descanso...
Há pouco tempo jantei com o grupinho do Dolgan. Foi mais agradável que antes: Tannivh estava amigável; Benkei se manteve em um silêncio que minha mente cansada agradeceu, sensível a qualquer estímulo forte; Melissa contou de diversas aventuras dela enquanto vinha para a Academia, saindo das terras élficas ao Norte.
Ainda não conseguia acreditar que ela batalhou com ladrões, orcs e até um hipogrifo na viagem. Na verdade, nem conseguia imaginar esse monstro; era muito distante de quase tudo que vivi, exceto no último mês. Minhas duas décadas de vida pouco haviam me preparado para esse mundo..
Enquanto os ouvia falar, cheguei à conclusão de que todos eles eram estranhos. A elfa tinha trinta e seis anos, embora tivesse aparência de dezoito... Tannivh tinha vinte e nove, orgulhoso e juvenil daquele jeito... Benkei tinha dezenove, bem próximo de mim, mas nossas formas de ver o mundo eram tão diferentes quanto o Sol e a Lua.
Quando ele falava, era sempre sobre virtudes e necessidade de equilíbrio. No começo, achei isso superficial e generalizador, mas logo percebi que cada “vício” ou “qualidade” que ele enunciava condizia bem com o comportamento das pessoas e com os frutos que colhiam deles. Quanto mais refletia sobre, mais notava que muitos sofrimentos individuais eram ocasionados por esses vícios gerais...
Isso me fez refletir sobre a individualidade humana, formada a cada experiência, escolha, hábito e memória, ainda somada a fatores biológicos, em contraposição com uma filosofia ética que foca em categorias mais generalizadoras de virtudes e vícios... Quão único ou generalizável cada ser humano seria, afinal? Somos diferentes, mas tão diferentes assim?
Não pude refletir tanto sobre isso, porque, assim que começava a me distanciar do grupo, imerso nos próprios pensamentos, Melissa me fazia uma pergunta que me levava de volta à conversa, como uma professora tentando instigar o aluno a prestar mais atenção na aula.
Pensando em retrospectiva.. Melissa e Benkei... Mesmo que fossem simpáticos, a forma como agiam pareciam não transparecer o coração. Era como se colocassem uma armadura que esconde a alma num cantinho recluso. As palavras gentis eram entoadas com certo distanciamento.
Aithne também escondia o coração, mas de modo diferente. Ela era impessoal e distante, mas porque queria ser assim. Era fria e com uma expressão impenetrável para evitar que as pessoas se aproximassem, escondendo e protegendo um coração machucado e atormentado.
Em contrapartida, Dolgan e Tannivh eram o oposto a Melissa e Benkei. Embora fossem muito distintos entre si, cada um deles, a seu próprio modo, vibravam o coração em cada palavra. Falavam aquilo que sentiam.
Tudo me fez pensar também na Violette... Não havia dúvidas de que ela tinha máscaras, mas era diferente de todos... Era como se ela não soubesse quem era, e ficava meio perdida? Como mestra do próprio teatro, decidia pôr uma atriz em cena, mas sempre porque queria, não porque deveria. Tendo contato com o teatro que ela conduzia, eu tinha um vislumbre dos valores e princípios da autora por detrás dele.
Ou talvez fosse outra coisa. Não sei ao certo...
Porém, todos esses pensamentos se cessaram assim que deitei na cama. Meu corpo exausto parecia criar raízes debaixo do colchão, puxando-me para um sono inevitável.
O problema era como eu acordaria, sem ter um despertador. No quarto de Flamel tinha uma runa do tipo, mas pouco conhecia seus padrões para replicá-la aqui. O que...
Uma súbita onda de calmaria e de esquecimento sublinhou minha mente. Como uma onda do mar, ela veio e me puxou para o oceano infinito e refrescante do sono sem hesitação alguma.
Acordei com a cabeça latejando. Cocei o couro cabeludo e me sentei, mas estava tão entorpecido que nem pude manter os olhos abertos. Cochilava e acordava incessantemente a cada minuto. As ondas do sono queriam me tragar para o fundo do mar, mas eu lutava contra isso. Precisava de me esforçar mais se quisesse vencer e construir algo de útil nessa vida...
Algo em torno de meia hora se passou até que conseguisse ficar acordado sem vacilar. Peguei o livro que Zanyt mandou que eu lesse, sentei na cama e comecei a folheá-lo. As palavras estavam borradas, mesmo que as tochas iluminassem bem o quarto. Tentei ler rápido, depois lento, mas não conseguia captar as palavras não importava o que fizesse.
Fiquei me forçando a estudar sem sucesso, até apelar. Com raiva dentro do peito, levantei-me e comecei a pular, fazer agachamentos... tudo que pudesse acordar o corpo.
Parei apenas quando estava suado e com o coração cavalgando, pronto para disparar em corrida. Agora sim. Sorri e me recobri de volta ao meu cantinho na cama para tentar ler outra vez. As palavras estavam mais nítidas, as frases mais compreensíveis, mas, assim que terminava de ler uma página, pouco me lembrava do conteúdo dela.
— Ahhh... Que saco...
Para alguém que se acostumava a ler seis vezes mais rápido do que o fez a vida inteira, sentir na pele a limitação do cérebro deu um gosto amargo. Não importava o quanto forçasse, minha mente estava sobrecarregada.
Nas aulas, enquanto muitas coisas eram revisões para meus colegas, tudo era novo para mim, embora os professores explicassem de volta rápida e desconexa, esperando que eu e os outros alunos já soubessem da matéria. Isso trouxe um custo cognitivo enorme para conseguir encaixar todas as informações em um conhecimento coerente...
Respirei fundo e chequei o relógio. Eram quatro horas da manhã.
Não conseguiria estudar direito e, com o cérebro já despertado, teria dificuldade para dormir.
Tentei ler o livro uma última vez. Não consegui.
A raiva com que encarava minha limitação se desfez junto de suspiros carregados, como se jogasse para fora a frustração do peito. E, apesar de tudo, me sentia bem por estar me levando ao limite. Dava-me orgulho.
Bom, se eu não iria conseguir estudar mais, então...
Levantei-me, espreguicei o corpo e saí do quarto. Observei que o outro lado da caverna continuava com aquela parede que não deveria existir, mas isso pouco importava, porque agora eu iria...
Treinar meu corpo.
O ar puro e frio da manhã, carregando o perfume da grama e da floresta ao lado, encheu meus pulmões de vitalidade.
Pela décima vez, interrompi minha corrida para me sentar no chão, exausto. As nádegas, coxas, panturrilhas e canelas se uniam numa coceira infernal. Não importava o quanto coçasse, a sensação formigante vinha de dentro da carne, como se clamasse que enfiasse meus dedos dentro da coxa para tirar aquele incômodo.
Apesar do desconforto, eu ri. Ri de como esse corpo conseguia ser ainda mais sedentário que o meu na Terra. Ri do tanto de esforço que deveria empreender para talvez sobreviver.
Parei de coçar meus músculos e aos poucos a coceira se foi como se o vento a carregasse consigo. Pus-me de pé e voltei a correr. Odiava correr e preferiria malhar. Porém...
Antes de construir músculos, o mais importante era ter o sistema cardiovascular e o respiratório fortes. A respiração era uma das principais bases de regeneração de mana, e o fluxo saudável do sangue auxiliava também no fluxo dela. Não só isso, mas, almejando também estudar mais, precisava da energia e disposição da corrida, e não da explosividade e força da musculação.
A cada passo firme, mais a coceira retornava. Que merda...
A respiração estava caótica, tentando abarcar todo ar do mundo. Foi só então que tive a simples ideia de regular o quanto inspirava e expirava.
Passei a forçar uma inspiração profunda durante quatro passos, depois soltei o ar durante outros quatro. Surpreendentemente as pernas pararam de coçar. Fui capaz de correr por quase vinte minutos antes de o coração pedir por misericórdia, e aí não ter mais o que fazer.
Caí duro no chão. O Sol já estava a todo vapor esquentando o mundo frio. Peguei o relógio do bolso e vi que faltava pouco menos de uma hora para o início das aulas.
Antes de fazer qualquer coisa, descansei mais um pouco. Merecia isso.
Não sabia se iria conseguir cumprir tudo aquilo que eu almejava. Alguns passos pareciam ser maiores que as pernas. Mas...
O orgulho de ter me esforçado tanto me confortou como uma mãe que acaricia a cabeça do filho. Estava feliz, genuinamente feliz. Talvez as endorfinas da corrida ajudassem a intensificar essa sensação, mas não deixava de ser maravilhosa.
Em breve teria mais aulas... Aprenderia mais e me desenvolveria o suficiente para encarar Cyle sem medo. Tinha certeza disso. E...
Será que a Guinevere e a Violette estariam lá hoje?...
Engoli em seco, ansioso e com receio, mas também com esperança florescendo no peito. Não fazia tanto sentido ter essa esperança, mas... Era um novo dia, e que mal há em sonhar que junto dele viriam novas oportunidades? Que, junto do novo Sol, novas luzes e calores viriam abraçar a existência?
Levantei-me e voltei para a área subterrânea do colégio, passando pelo alçapão no porão da torre de magistério. O mundo debaixo era tortuoso e incerto, com diversos corredores cavernosos que talvez poderiam me levar àquela mesma porta banhada de sangue.
Algum dia, algum dia voltaria para lá, com força suficiente para não ficar na merda do armário.
Algum dia...
Mas hoje era dia de treino e de desenvolvimento. E, mais do que nunca, precisava de um banho.
Retornei ao quarto e abri uma passagem secreta da parede rochosa, que deu acesso a um luxuoso banheiro com banheira e runas de chuveiro dentro de um box. Sorri orgulhoso de mim mesmo. O “eu” de algumas semanas atrás jamais teria percebido o feitiço encrostado na superfície rochosa.
Coloquei-me no boxe e deixei a água quente descer pelo meu corpo. Junto da sujeira que se desprendia do corpo, algumas lágrimas rolaram pelas bochechas. O peso de todo aquele esforço era grande. Algo em mim doía em ter de me tornar mais forte; ainda sentia falta da família, ainda tinha saudade de como passava o dia jogando. Porém...
Prometi mais uma vez para mim mesmo que mudaria. Ou melhor, que continuaria a mudar. Talvez Lucas pudesse me perdoar por eu ter tentado ser gentil com as pessoas, mas mesmo ele eu deixaria orgulhoso. Faria melhor que sempre fiz.
Saí do chuveiro, vesti meu uniforme e... relaxei os ombros. Sentindo um pequeno cansaço se instalando pela noite interrompida, dei um tapa na bochecha. A ardência pouco impediu um sorriso de crescer.
Isso era viver. Isso era liberdade. Quando passava os dias jogando e conversando no computador, perdido e sem rumo, eu não era livre, mas escravo da minha condição mental. No fundo, o que mais queria era ser melhor, porém me via preso nos próprios erros.
Não mais. Com passos firmes, fui para a sala de aula. Só eu e quatro livros, cheios de expectativas e esperança de uma vida melhor que aos poucos começava a ser construída.