Volume 1
Capítulo 28: Entre lágrimas e risos
Foi um breve momento da noite, passageiro tal qual um pôr-do-Sol que fecha as portas do mundo à luz do Sol e preludia novo reinado da escuridão.
O silêncio me abraçava junto dos lençóis da cama macia. Ainda adormecia, sem consciência de lá ter sido posto, embora o corpo, afundando um pouco no colchão, percebesse o conforto e se relaxasse como se estivesse em casa, na segurança do próprio lar.
Entretanto, uma respiração pesada perturbou a calmaria da noite.
Abri os olhos, ainda meio dormindo, e fitei Aithne, que olhava intensamente para meu rosto. Nossos olhos se entrecruzaram por um instante, o suficiente para ver nas janelas da alma dela um lampejo da dor que assolava o peito, do desejo de ver o Flamel antigo.
Segundos se passaram naquele transe, até que ela desviou a atenção para a cama e recolheu-se no próprio canto, abraçando as pernas e se enrolando como um gatinho abandonado. O suspiro que se seguiu dela, mesmo que baixinho e quase misturado ao silêncio, perseguiria minhas lembranças por muito tempo.
Com um cérebro muito desligado e quase retornando ao mundo dos sonhos, tinha uma decisão importantíssima para se tomar. Deveria confortá-la ou dar espaço e tempo?
Poucos pensamentos se seguiram a respeito disso. Não que pudesse fazer mais a respeito, talvez a mais crucial decisão já havia sido feita antes. Algumas decisões são assim, tão grandes que parecem ordenar todas as futuras escolhas a seguirem o mesmo rumo. Ter responsabilidade pela própria escolha é tão importante quanto escolher.
Só que minha mente cansada jamais pensaria sobre isso.
Arrastei-me pela cama e, simultaneamente tomado pelo instintivo desejo de confortar e pelo medo de a minha presença somente fazê-la sofrer mais, apenas repousei a mão em seu rosto, escondendo a orelha dela que se aquecia contra minha pele. Era como um abraço não-realizado, e um distanciamento ainda menos feito.
Vi o rosto surpreso de Aithne. Seus lábios se abriram, com desejo escancarado de algo dizer. Mas algo bloqueou a garganta. Engoliu as palavras nunca ditas. Hesitou e, novamente como um gatinho quieto, recolheu-se ainda mais ao próprio ninho, porém abraçada à minha mão em sua bochecha.
Um novo suspiro se ondulou de seu peito. Diferente de antes, exalava uma paz com um toque de melancolia e de conforto, como uma música de letra triste, mas que, com melodia calma e suave, consola.
E, de fato, foi uma melodia aos meus olhos e à minha mão que ficava quente com o rosto e mãos dela. Minhas respirações também se tornaram mais calmas e profundas.
Ainda não tinha certeza se aquele caminho era o certo. Talvez me arrependeria de confiar tão cegamente em alguém ao ponto de ignorar a voz da minha mente.
Mesmo assim, vê-la respirar tranquila assim... Isso era o suficiente. O suficiente para curvar meus lábios em um pequeno sorriso de gratidão. O suficiente para acreditar que valeu a pena. Não importava quantas vezes eu pudesse voltar no tempo, insistiria sempre naquele erro. Somente quem viveu uma grande perda sabe o peso do conforto, o quão mágico é conseguir esboçar esse sorriso agridoce e confuso em meio à tragédia...
Percebi que não estava errada a minha impressão de que acordar e ver os olhos preocupados dela era como assistir a um pôr-do-Sol que preludia o reinado da escuridão. Contudo, havia esquecido do fato de que, mesmo no céu mais obscuro e nublado, ainda há, por detrás das nuvens, estrelas radiantes aguardando pacientemente para darem brilho e beleza à vida.
E, embora perdido, consegui encontrar a minha estrela guia naquela noite.
...
Não demorou para que retornasse ao mundo dos sonhos.
Quando meus olhos se abriram novamente, avistei Aithne na cadeira de balanço, imóvel como usual. Lia livros com aquela tranquilidade impenetrável, como uma lagoa calma que esconde debaixo da superfície todas pedras assustadoras da alma, que muito poderiam machucar quem pulasse cegamente para dentro de seu mundo interior.
Sentei-me na cama, ainda um pouco aturdido pelo cansaço. Os breves instantes silenciosos e relaxantes fizeram vir à mente as memórias do garoto torturado, como se fossem um monstro que espreita, aguardando um momento de vulnerabilidade. Será que ele ficaria bem?...
Dei um suspiro profundo. Não. Claro que ele não ficaria bem. Nem um sonhador otimista acreditaria nisso. Só Deus sabia o que poderia estar acontecendo naquele momento...
Mesmo assim, uma pequena esperança afagou meu peito. As imagens que vi naquele dia, o número sete da floresta... Talvez aquilo pudesse ser um indicativo de como poderia salvá-lo? Minha mente disse que eu não deveria me esquecer disso.
Quanto mais pensava, mais perguntas sem respostas vinham. Faziam experimentos humanos no colégio? Quem era o homem? Os professores sabiam disso?...
Sem mais informações, esses questionamentos eram como sementes sem água, incapazes de gerar qualquer coisa de útil, mesmo que eu implorasse. Suspirei e voltei a me concentrar na Aithne. Ela ainda estava lendo. Ou fingia ler, pois as páginas haviam parado de ser movidas, como se estivesse me aguardando falar com ela. Que fofa...
— Bom dia, Aithne — disse-lhe, espreguiçando os braços ao alto.
Ela não teve nenhuma reação, ou fingiu muito bem não ter. Falou com voz indiferente:
— Bom dia.
— ... — Somente então notei que ela não sabia meu nome. Eu era um completo estranho para ela. Não, pior que um estranho, pois tomando o corpo de uma pessoa que ela talvez amasse. — Sou Michael.
— Michael... — A voz dela hesitou. Quase mordeu os lábios, ainda encarando o livro, mas a expressão rapidamente se voltou à neutralidade.
Era estranho lhe falar meu nome. Muito estranho. Sentia-me como se fizesse algo proibido. Por duas semanas sofri calado neste mundo, sem ninguém me conhecer. Justo quando estava me acostumando com isso...
O coração batia forte no peito com nervosismo e inquietação. Se nudez física implicava despir-se das roupas e mostrar-se tal como é, com defeitos e belezas, rasgando a imaginação do outro com a realidade, isso era uma nudez espiritual, despindo as roupas que escondiam quem sou.
— Sim. Michael Moreira. A minha sociedade é bem diferente da sua em muitos, muitos aspectos. Mas eu era apenas um estudante.
— Múltiplos aspectos? — Ela me encarou. Aqueles olhos finalmente estavam em mim. Meu peito vibrou por ter ganhado a atenção dela.
— Mhm. Não temos magia, mas temos tecnologia.
— Mas nós também temos tecnologia — contrapôs ela. — O chuveiro, o fogão...
— É diferente. A tecnologia de vocês é alimentada por mana e runas. A nossa, por energia elétrica — disse-lhe, e então fiquei um pouco em silêncio, pensando em como explicar isso. — Sabe a magia de raio que vocês usam, que provocam clarões amarelos? Não acha estranho conseguir fazer algo tão grandioso em pequenas proporções?
— Hmm... — Ela tornou a pensar, a expressão um pouco confusa. — Talvez? Não sei. Penso que, assim como usamos só um pedacinho do oceano com magia da água, podemos usar só um pedaço do raio.
Com as palavras dela, fui eu que fiquei perplexo e comecei a pensar. Até que ela não estava inteiramente errada.
— Seria mais ou menos isso mesmo. Sabe, não sei tanta coisa assim. Porém, sei que a realidade é composta por fragmentos bem pequeninos, que chamamos de “átomos”. Eles têm cargas positivas e negativas que se neutralizam. — Para ilustrar, levantei o dedo indicador de cada mão, como se fossem cargas opostas, e então os entrelacei. — Mas, por vezes, alguns ficam muito carregados com cargas negativas e, outros, com “positiva”.
Infelizmente, tive que matar um pouco da física dentro de mim ao dizer que há excesso de carga positiva, quando na verdade só há falta da carga negativa...
Aithne pareceu um pouco confusa com tudo.
— O que isso significa?
— Faz parte da natureza buscar o equilíbrio — disse com um ar de eminente físico. Faltava-me só o óculos e o cabelo arrepiado de tomar choques. — Por exemplo, quando algo está muito quente, emite calor ao ar e a objetos próximos para se equilibrar na mesma temperatura deles.
“Da mesma forma”, continuei, “quando um objeto tem muito mais carga negativa que o outro, a carga negativa sai dele para o que está com menos carga negativa. Esse processo é muito intenso e rápido, quase que explosivo. Gera muita energia, que pode ser transformada em calor, em movimento... Em um monte de coisa! Tipo o calor do chuveiro.”
— Isso... — Ela apoiou o cotovelo no braço da cadeira e inclinou a cabeça sobre a mão. — Isso realmente me lembra a forma como a feitiçaria de raio funciona. Nós imaginamos um polo muito carregado de mana e outro com falta dela. Então, como um disparo, a mana percorre rapidamente de um polo ao outro, gerando o raio. Espera... — Os olhos dela começaram a brilhar, e um sorriso se abriu timidamente. — Isso faz sentido! Mas... isso não seriam cargas negativas. Só mana.
— E se... Hm... — Procurei algum exemplo para ilustrar a questão, mas então uma dúvida me assolou. — Aithne, a mana que você usa em feitiço de raio é a mesma que se usa para feitiços de outros elementos, não é?
Ela balançou a cabeça para os lados dos ombros, franzindo os beiços. Mesmo que estivesse mais descontraída, era nítido que uma dor ainda repousava em sua face, embora quase escondida.
— Sim e não. Enquanto magia se trabalha somente com mana elemental, a feitiçaria trabalha com runas que elas mesmas convertem a mana da pessoa em mana elemental, o que torna o uso muito mais fácil e prático.
— Mana elemental? Tipo a que se usa em magia? — Comecei a me arrepender do livro que li na biblioteca. Parecia que ele era mais "místico", repleto de histórias envolvidas de mistério da magia, do que propriamente um guia científico ou teórico sobre o tema, ao ponto de eu aparentemente não saber coisas básicas.
— Sim. — Ela ajeitou os óculos. — Tentar fazer algo usando mana pura é apenas telecinese. Se quiser criar fogo, precisa ser fogo. Precisa se conectar com ele, fazer parte dele. A sua mana precisa se transformar na mana do elemento.
— Isso é... curioso.
Levei a mão ao queixo e fiquei refletindo sobre isso. Fazia sentido. Muito sentido, na verdade. Para manipular a realidade, ela deveria se tornar uma extensão de mim, e não uma escrava da minha vontade.
— Mas — disse-lhe —, então o feitiço de raio produz uma mana elemental de raio, que é diferente da de fogo?
— Sim.
— Caramba...
Era complicado entender o assunto. O que seria uma mana de fogo? Fogo não é apenas a oxidação de um composto? Isso não tem vida própria. É apenas uma reação química momentânea. Não existe algo como uma entidade de fogo...
Ou será que existia?... Não pude não engolir em seco. Estava em outro mundo, em outra realidade. Talvez outra dimensão. Minhas crenças fundamentais de física e química poderiam ser rasgadas como um papel.
— Se a sua teoria estiver certa — falou ela —, então o raio seria o movimento das cargas negativas de um corpo inteiro até outro?
Por um instante, olhei para a face dela, um pouco incrédulo. Ela estava entendendo algo inteiramente novo muito bem, e ainda complementando as lacunas da minha explicação?
Assustador.
Talvez eu parecesse assim também lendo quinhentas páginas de teoria em um curto tempo.
— Sim, eu acho.
— E por que podemos ver ele, então? Essas cargas são visíveis?
— Ah... — Sorri ao resgatar péssimas lembranças da dificuldade que foi entender os elétrons saltando entre níveis de energia para gerar luz. — Digamos que a energia é tamanha que o ar fica sobrecarregado e acaba gerando luz — ao dizer aquilo, podia imaginar Stephen Hawking se contorcendo no caixão...
— Hmm... Aceitável.
Ela não estava muito convencida, mas minha habilidade com física jamais a convenceria. Mesmo assim, Aithne ficou muito interessada e passou a me perguntar sobre os dispositivos que usávamos. Contei-lhe sobre geladeiras, fornos elétricos, celulares, computadores, inteligências artificiais...
Nossa conversa começou a adentrar no obscuro avanço científico que ameaçava o mundo inteiro. Eram guerras que explodiriam toda humanidade, desempregos em massa que trariam miséria e fome... Os olhos dela passaram e me encarar como se eu fosse um deus, um ser superior e misterioso, um oráculo da verdade. Essa muda admiração me fazia sorrir de vergonha, mas um pouco orgulhoso também.
Acabei compartilhando a minha inquietação sobre a questão de haver uma entidade do fogo, em vez de ser só uma reação química. Ficamos refletindo juntos, embora ela ouvisse bem mais que falasse.
A conclusão louca a que chegamos é que o fogo existe, sim, por conta própria. A maior prova disso era que Aithne conseguia produzir chamas logo acima da palma da mão, sendo que os gases que mais compõem o ar não deveriam ser inflamáveis. Até imaginei que o fogo era só um combustível sendo criado e queimado, mas isso envolveria magia de ar ou terra, e Aithne afirmava que não havia um pingo delas. Era fogo puro.
Depois de muito debater sobre isso, deixei isso de lado e comecei a lhe perguntar sobre o mundo, sobre a cultura, até que ponto eles conheciam a natureza...
Aithne contou que Marcus, o grande herói, mudou bastante a cultura e trouxe uma forma de ver o mundo chamada de “científica”. Muita coisa mudou. Os anos passaram a ter doze meses, cada um composto de semanas de sete dias. Academias, embora não tão grande quanto Bauchir, foram construídas.
Ela também disse que muitos pesquisadores já acreditam na ideia dos átomos, mas ainda não absolutamente, e em muito diferia aos chamados “elementos químicos”. Não tinham ideia sobre carga positiva e negativa, e afirmavam que a diferença entre os átomos era apenas geométrica.
Aos poucos, a humanidade teria passado a ter mais explicações racionais do que religiosas, em geral. Mesmo assim, havia tabus como “obsessão”, “inspiração”, “intuição” etc. A própria magia e a existência de monstros, afinal, parecia pouco natural. Não havia outra explicação senão mitos de deuses, guerras celestiais e coisas do tipo.
Algo que ela disse, porém, me surpreendeu muito:
— E a origem dos dons que as pessoas têm é um mistério.
— Sério? — perguntei, perplexo. — Tokewater me disse que eles são criados pelo maior trauma da vida das pessoas.
— Então... — Ela sorriu um pouco. — Ele está investigando isso. Só que aquele cabeça-dura acha que as conclusões dele são verdade absoluta. E basta qualquer pessoa lhe perguntar sobre algo que ele pesquisa que logo receberá uma aula inteira não solicitada.
A ironia disso tudo me fez rir. De certa forma, eu não era tão diferente, e gostava de explicar as coisas.
— É verdade. É verdade.
— E o pior é que ele parece mais um bruto que um professor. Imagina a cena: forte e grande como um gorila, ele do nada chega em mim para ficar num monólogo interminável sobre um mago que estudou, e como o trauma dele teria originado certo dom.
— Meu Deus...
— Ahhhh... — Aithne caiu cansada no encosto da cadeira em uma posição um tanto quanto desleixada para quem tem demonstrado uma polidez digna de cinema. — Ele me cansa só de pensar. — Ela riu. — Mas é impossível não gostar dele. Tem um bom coração...
A expressão dela se tornou mais macia, os olhos encarando o teto com um misto de gratidão e nostalgia. Embora eu o achasse um homem muito mais aterrorizante do que bom, ver admiração e respeito escancarados no rosto de Aithne me fez abrir um sorriso caloroso também.
— Tive um professor assim também... — disse, e comecei a lhe contar algumas histórias que vivi.
Meu coração palpitava fortemente durante a conversa. Por vezes, minha garganta parecia querer bloquear as palavras de saírem. Estava louco por contar-lhe de casos da minha vida, de Michael. Não de Flamel, mas de Michael. Ao mesmo tempo que parecia proibido, uma parte de mim se sentia tão à vontade, como uma flor desabrochando e se abrindo ao mundo.
Aquilo tudo retirava um peso do meu peito que só confissões são capazes de fazer. Eu era visto e reconhecido, face a face.
Meu sorriso só crescia, e todo o ânimo talvez contagiasse um pouco a Aithne. Alguns sorrisos e até pequenas risadas eram roubadas de sua garganta. Porém, em certos momentos, seus olhos me encaravam opacos, vazios, perdidos. Sabia bem o que era, mas tentei ignorar. Queria sentir um pouco mais daquela liberdade.
Após certo tempo, foi então que Aithne, como havia feito outras vezes, abriu os lábios, apenas para nada sair. Era uma pergunta muda, mas mais ruidosa que qualquer outra que eu lhe fizera.
Respirei fundo, percebendo que não teria como fugir daquele tópico, e decidi mergulhar nele:
— Aliás, Aithne, realmente não sei como vim parar neste mundo. Nunca fiz nada de magia ou de espiritual além de orações antes de vir para cá. Não sonhei com premonições, nem conheci alguém estranho. Era um dia normal, como qualquer outro.
— ... — Ela estudava minha expressão facial, como se tentasse ver através de cada músculo uma verdade que poderia estar oculta. Frustrando-se com tal tentativa, suspirou fundo. — Para alguém que foi transportado de outro mundo, você bem que é um inútil, não é?
As palavras dela me atingiram como um soco inglês na face. Senti como se meu coração se afundasse no peito, um sabor amargo subindo à boca. Uma coisa era pensar isso de mim, mas ouvir isso de outra pessoa era completamente diferente, principalmente vindo da única que sabia quem eu era.
— Eu... — buscava as palavras, um pouco perdido.
— D-desculpa — interrompeu-me ela. — Não quis dizer assim... É só que... Sabe, há apenas lendas sobre transmigração. E todas elas... — A voz dela morreu tal qual seu semblante, tornando-se triste e arrependido.
— Tá tudo bem, Aithne... — Ajeitei-me na cama e a encarei um pouco mais de perto, com olhos que exibiam uma terna preocupação, em vez de orgulho ferido. — O que têm essas lendas?
Ela se recolheu mais na cadeira e começou a enrolar o cabelo castanho no dedo. Estava evidentemente nervosa, as pupilas indo de uma extremidade à outra, mas sempre desviando o olhar do meu.
— Todas elas são sobre pessoas grandiosas, para o bem e para o mal — disse ela. — Há três histórias famosas de transmigração de almas, que inclusive os magos acreditam. — Ela fez uma pausa, como se recordando dos detalhes. — A primeira, a mais conhecida, é sobre o grande Marcus.
— O Marcus? — falei. Senti meus braços formigando com uma ansiedade crescente. Alguém igual ele teve um destino como o meu?
— Então... Dizem que ele foi invocado pelo Mago Ancião da época, servente direto do Rei de Jotânia. Porém, não se sabe muito a respeito. O reino foi destruído por uma invasão de monstros algumas semanas após. Todos que viram a invocação estavam mortos. Apenas alguns comerciantes da época que propagaram os rumores.
Parecia que os tempos de guerra chegaram até aos humanos, que se esconderem enquanto os elfos negros eram dizimados... Apenas o justo.
— Entendo... É completamente diferente de mim. — A expectativa crescente morreu com um suspiro pesado. Eu não era um "herói invocado de outro mundo", recebido por reis e celebrações, afinal... — E as outras duas?
— Uma era a apóstola da Deusa da Água, Tétis. Uma elfa do Norte. Ainda hoje é muito cultuada por eles, mas não sei muito. O último caso...
A expressão dela, antes triste, se tornou sombria. Não ousei lhe pedir para que continuasse, percebendo como o ar se fez denso. Apenas permaneci a encarando, aguardando com ansiedade e apreensão.
— O último caso — continuou ela, após respirar um pouco —, foi de um ritual que envolveu o sacrifício de 72 pessoas. O vilarejo de Munitz. Um ritual demoníaco que tentou invocar uma criatura que chamam de Kthulhu.
As sobrancelhas fizeram peso sobre meus olhos, que se fecharam ao imaginar uma paisagem destroçada e ensanguentada, com um círculo de invocação gigante que envolvesse todo o caos.
— E como isso está ligado com transmigração?
— Quem foi invocado... Não foi Kthulhu... — fez Aithne então uma pausa.
A pausa se esticou sem fim, como se o ar pesado sufocasse novas palavras. Incomodado, perguntei:
— Não foi?
— Não... — A respiração dela se tornou irregular e profunda, nervosismo crescendo na face. — Não. Os demônios chamavam-no por Lorde Damien. A única coisa que sabemos é que, após o surgimento dele, diversos reinos humanos e élficos, mesmo os do Norte, caíram em ruínas sob monstros além da imaginação humana. Dizem que ele que fez surgir o Grande Mal com sacrifício de reinos inteiros.
Reinos... inteiros?
Diante daquelas palavras, não houve resposta minha. Não sabia o que dizer. Nem o que pensar. A tortura do garoto que vi era pequena, minúscula perto de reinos inteiros sacrificados. Mulheres, mães, crianças, grávidas, todos teriam sido mortos e oferecidos. Talvez até desmembrados. A crueldade daquele mundo...
Queria vomitar. Queria expelir para fora toda crueldade que contaminava as memórias do meu cérebro. Queria...
— Michael...
Senti a mão dela acariciando meu ombro gentilmente. Não a olhei nos olhos. Apoiei os cotovelos nos joelhos e me mergulhei em pensamentos, sem saber o que faria naquele mundo.
— Michael... — chamou ela mais uma vez.
De certo modo, percebi no meu peito que ansiava pela cena que se reproduzia entre mim e a Aithne. Fazer birra com alguém. Poder me mostrar frágil, desamparado, assustado, e ter alguém que tentaria me motivar a ficar melhor. Sentia falta desse tipo de conforto. Entretanto, notando isso dentro de mim, como poderia ser egoísta de tal forma?
Vivi até então por conta própria. Não precisei de fazer drama com ninguém, e me recusaria a atormentar a garota dessa forma.
Encarei-a de volta e abri um sorriso, embora um pouco melancólico contra minha vontade. Ela sorriu de volta, uma expressão bem agridoce, amarga mas carinhosa, triste mas compreensível, e deu um tapinha no meu ombro.
— Esse é o mundo em que você está, meu camarada — ela riu, talvez pelas palavras estranhamente informais, talvez pela gravidade do assunto.
Realmente, era o mundo em que estava. Mas pelo menos...
Abracei ela. Inicialmente, ela pareceu ficar surpresa e apoiou as mãos nos meus ombros, me empurrando para manter um pouco de distância. Notei isso e me senti mal por ter a envolvido daquela forma. Quando a soltei, porém, ela que me abraçou e me trouxe para o conforto do abdômen dela.
No começo, fiquei um pouco confuso. Mas... aquela sensação... Ali, protegido, escondido... O momento me tomou. Aquilo era incomparável.
Em retrospectiva, o abraço que Guinevere havia me dado era encantado com uma magia que penetrava por cada fibra do corpo, me envolvendo em um calor acalmante. Mesmo assim, o que sentia ali era distante disso. Isso...
Não era meu corpo que era confortado. Era eu. Michael. Estudante de vestibular que fracassou no sonho. Irmão que fracassou em proteger quem deveria. Filho que pouco orgulhava os pais.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Tentei segurá-las, mas, tal qual uma represa repleta de rachaduras contra um impetuoso rio, algumas lágrimas escorreram pelas bochechas. Senti o nariz queimando e se enchendo, a boca apertando e tremendo.
Alguma parte de mim resistiu. Não estava certo. Não queria depender dos outros. Queria ser melhor.
Segurei a cintura da Aithne e tentei levá-la para longe. Porém, ela não se mexeu. Fez-se dura como pedra, imóvel como uma montanha. Talvez nem com minha maior fé seria capaz de movê-la. A mão dela acariciou minha cabeça, mas com uma lentidão exagerada e estranha.
Empurrei-a mais forte e consegui espaço o suficiente para me levantar. Vi, então, o rosto dela talvez ainda mais vermelho que o meu, as pálpebras segurando lágrimas ainda mais pesadas que as minhas. As sobrancelhas e o sorriso se arqueavam de tal maneira que mostravam uma mistura de pena por mim, mas também de desconforto.
Não havia dúvidas de que o coração dela a mandava se distanciar de mim e que lutava contra isso, perturbada talvez pelo dever de me consolar, talvez por dó que sentia.
Naquele breve instante, me perguntei o que deveria fazer. Abraçá-la seria permitir que ela ficasse em desconforto. Rejeitar o abraço era ainda mais indigno. Eu...
Peguei a mão dela e a levei até meus lábios. Beijei as costas dela carinhosa e suavemente. Sem jeito, levei-a à testa e a encostei lá, acariciando muito lentamente meu dedão em sua pele. O calor do corpo dela pareceu envolver minha cabeça e penetrar nos meus pensamentos, acalmando-os com suavidade.
— Obrigado — lhe disse. — Você é uma pessoa maravilhosa. Tenho certeza de que seu nome estava na ponta da língua quando nos conhecemos de tanto que marcou as memórias do Flamel.
Apesar de tocar em uma ferida que custava a começar a ser cicatrizada, era o justo. Era escolha minha ter me aberto à Aithne. Era uma escolha que implicava um caminho desconfortável, perigoso, sentimental; mas um caminho escolhido por mim, mesmo imaginando inúmeras possíveis complicações.
Surpreendi-me ao sentir ela beijando o topo da minha cabeça, devolvendo-me o carinho. Ela coçou minha cabeça de novo, de forma menos hesitante, permitindo-se bagunçar meus cabelos.
— Queria poder te odiar — ela falou com voz pesada mas carinhosa. — Minha mente insiste que você roubou o Flamel de mim. Que a sua alma expulsou a dele. Mas... — A voz dela, tão perto de mim, abraçava-me com toda a inquietude e preocupação. — Você é uma boa pessoa, Michael. Obrigada por me contar a verdade.
Sou uma boa pessoa...
Meus pais sempre me diziam isso. Era o que me reconfortava um pouco nos sombrios momentos que me culpava pela morte de Lucas. Só que ouvir isso de outra pessoa, principalmente uma que fiz sofrer...
As lágrimas eram incontroláveis. Recusaram-se a serem contidas. Pingaram nas mãos de Aithne, mas tudo que recebi era um abraço ainda mais apertado que o anterior. E assim era melhor. Com meu rosto protegido no uniforme sobre a barriga dela, podia me esconder, nem que fosse um minuto só, longe de todo aquele mundo, de todo sacrifício, monstro, tortura, medo...
— Você também é, Aithne. Obrigado por toda ajuda que me deu, mesmo depois de tudo...
Se mais cedo acreditava que eu havia feito a escolha certa, dessa vez tive certeza. Era uma nova aliada que ganhava. Uma de verdade.
Ficamos abraçados por longo tempo. O silêncio foi rompido apenas pelas palavras hesitantes dela:
— Sabe... Ainda me lembro claramente o dia em que conheci o Flamel.
— O Flamel?...
— Ele mesmo. Nossa, eu era uma pirralha. Não que eu tenha deixado de ser, mas era difícil. Queria saber só de ficar lendo, e pouco me importava com regras de etiqueta, de cortesia... Desde que tivesse meu livro, era uma criança realizada.
— Hm... Para mim isso é apenas ser uma criança normal.
— Não. — Ela riu um pouco, a voz vibrando com um choro suave mas constante. — Não para as nobres. Por causa disso, todos me achavam uma atrapalhada. Também eu fugia das aulas de magia, enquanto todas se gabavam dos feitiços que aprendiam. Acabou que me mantive distante das outras crianças.
— Que complicado... — Acariciei as costas dela numa tentativa de conforto.
— Pois é... — Ela deu um soluço, depois outro. Respirou um pouco, até voltar ao normal. — Quando percebi, estava sozinha. Só eu e os livros. Mas, por nunca ter tido amigos, nem imaginava o quão solitária era. Vivia com um aperto no peito sem saber direito o que me faltava.
— Mhm...
— Foi quando conheci o Flamel. — Ela respirou fundo. Eu a abracei mais forte... — Era uma festa do Cyle. A mansão dele era linda, exuberante. Dava umas três da minha. Ele, todo orgulhoso, saiu mostrando os cômodos, e sempre parava para exibir as novas magias que aprendia.
“Até que foi para a grande biblioteca”, continuou ela. “Ele então me viu, pareceu me achar bonita e me pediu que me apresentasse. Claro que não se lembrava do meu nome. Só que as crianças me perguntaram quais truques eu sabia fazer, e não sabia nenhum legal. Não em comparação à chama grandiosa do Cyle. Dali passei a ser excluída... Ele mesmo começou a me ignorar depois de dizer o quão estranha eu era.”
Então ele era um miserável desde pequenininho... Ouvir tudo aquilo me fazia arder por dentro.
— Ao fim — prosseguiu Aithne —, me revoltei, peguei um livro e comecei a ler. Para minha surpresa, um garoto se ajoelhou do meu lado e me perguntou se aquele era um livro de botânica. Quando respondi que sim, os olhos dele brilharam. Com um ânimo sem igual, se sentou do meu lado e me perguntou onde eu estava na leitura. A partir dali, conversamos tudo sobre árvores, plantas, flores, natureza...
“Quando minha mãe foi me buscar para ir embora, já no fim da festa, protestei com um vigor que ela nunca tinha visto. Nunca lutei com tanta ferocidade.” Naquele ponto, eu já estava sorrindo, meio melancólico meio caloroso, imaginando a cena. “Ele começou a se desesperar também, e fez um terror psicológico com os pais para conversar com os meus e deixar a gente se ver de novo.
“No fim, não é que ele conseguiu?” Ela riu ainda mais, como se limpasse as mágoas de dentro. Eu não sabia o que dizer, e tudo que podia fazer era ficar em silêncio e apreciar a história. Saber que ela perdeu alguém assim, e que agora estou no corpo dele, me fez ficar ainda mais emocionado. “Nos encontramos muitas vezes depois. Fizemos tantas coisas juntos. Ao lado dele, o aperto que sentia no peito já não mais existia. Era uma menina feliz. Ele foi meu único amigo por anos... e meu melhor amigo desde então, até... duas semanas atrás.”
Ela não falou mais nada. Nem conseguiria.
— Eu... te entendo, Aithne. Já perdi alguém muito próximo. Meu irmão, tanto de sangue quanto de companheirismo. Vivíamos sempre juntos...
— O que aconteceu com ele? — perguntou ela, fungando o nariz entupido.
— Morreu em um acidente. Na minha frente. Tínhamos doze e onze anos, respectivamente. A falta dele me atormentou por tanto tempo...
Os braços de Aithne me apertaram mais forte, enchendo meu peito de gratidão.
— Como foi? O... acidente... — disse ela com cuidado, mas não consegui responder de imediato. Percebendo que tocava em uma ferida ainda não cicatrizada, continuou apressadamente: — Desculpa, eu...
— Tá tudo bem, Aithne. — Dei umas palmadinhas nas costas dela, tentando reconfortá-la. — Sobre ele...
Contei-lhe a história toda, explicando o que eram carros, postos de gasolinas e coisas assim para entender o acidente. Ela ficou em silêncio o tempo todo, só acariciando minha cabeça, muito atenta em cada palavra.
A partir dali, começamos a compartilhar momentos que tínhamos vivido com a pessoa que perdemos. Em algum momento, nos tornamos uma bagunça de choro, risadas de tensão ocasionais e abraços.
Inicialmente, as histórias eram tristes, mas logo começaram a ser reveladas também vergonhas e situações cômicas que havíamos vivenciado. Risadas se tornaram mais comuns que o choro.
Quando finalmente nos soltamos, olhamos no rosto um do outro. Nossos olhos se entrecruzaram e ...
Começamos a rir. Rir mesmo. Lágrimas ocasionais escorreram ainda mais pelos olhos, mas misturadas à gratidão e ao conforto.
— Obrigado, Aithne.
— Obrigada, Michael — respondeu ela, limpando o rosto molhado.
Percebi que, embora ela não tivesse muita maquiagem, ainda havia uma pequena sombra de lápis que escorreria pelas bochechas. O batom, de cor apenas um pouco mais clara e roseada que os lábios, estava um pouco desbotado.
Aquela aparência caótica...
Trouxe-me paz.
— Você está linda — falei com um sorriso torto e desajeitado, ainda recuperando do choro. Por um instante, fiquei com medo de ela se sentir incomodada e ficar um clima tenso. Mas só por um instante mesmo, porque:
— Vai se foder.
Ouvir isso de uma nobre me fez gargalhar ao ponto de cair sobre meus joelhos da forma mais dramática possível. Quando olhei no rosto dela de novo, vi vergonha, graça, raiva, tristeza, carinho. De tudo podia ver lá.
— Desculpa — disse, enxugando a cara com as mãos.
— Não desculpo. — Ela suspirou bem fundo e voltou à cadeira de balanço. Para minha surpresa, começou a realmente movê-la para frente e para trás, com uma agitação que pouco combinava com ela.
Meu sorriso se abriu mais.
— Você é fofa mesmo.
Os olhos dela se arregalaram um pouco. Arrependi-me imediatamente, e me lembrei que minha voz ainda era a de Flamel. Merda...
— Desc-
— Quer que eu te mate?! — interrompeu ela com indignação.
A reação dela só me fez rir em vez de me preocupar. A minha risada saiu de forma estridente e estranha, como se risse com “hehehehehe” na vida real. Fiquei com vergonha disso e me calei.
Com o tempo, silêncio recaiu no quarto. Felizmente, um silêncio bem-resolvido, que trazia calma a uma conversa que já merecia se pausar. Contudo, pouco durou.
— ...Algum dia ainda vou te bater — proclamou ela, o rosto meio escondido com um livro que pegou e que folheava sem ler.
Escutar isso de uma menina baixinha e encolhida era mais divertido e caloroso que assustador.
Não ousei continuar o assunto e simplesmente caí na cama, espreguiçando os membros para todos os cantos.
— Ahhh... — Senti o cansaço se esvaindo de mim.
— O que, afinal, você sabe sobre magia? — perguntou ela, em um tom que fiquei em dúvida se era irritado ou apreensivo.
— Só sei que...
Contei-lhe do que havia lido daqueles livros. Ao final, ela balançou a cabeça para ambos os lados, em negação.
— Então você nunca treinou seus vasos de mana?
— Vasos de mana?
— Céus... — Ela se levantou. — Você está mais perdido do que imaginei. Não é possível que só ficou tentando conjurar feitiço? Por isso só sabia lançar aquelas melecas contra a Violette. — Enquanto ela sorria com o que dizia, era meu turno de ficar de cara emburrada. — Anda, senta aí na cama. Vou te ensinar a como trabalhar sua mana.
— Sim senhora. — Sentei-me na cama como pedido.
— Mestra para você. Mestra Aithne. — Ela se aconchegou na cama ao meu lado.
— Você está indo longe demais. Estou ficando com medo...
— Me chame de mestra Aithne ou vai continuar sem aprender magia.
— Aithne...
— Mestra Aithne — disse ela firmemente, em um tom quase ríspido.
Suspirei fundo. Que porcaria era essa...
Com o orgulho meio ferido e me perguntando como que alguém que deveria estar sofrendo conseguiu se refugiar nesse tipo de brincadeira, aceitei meu destino.
— Mestra Aithne. Feliz?
— Só me chamar assim não adianta. Acha que vou te ensinar magia sem nem me pedir?
— Caralho, Aithne!
Ela riu e deu um tapa forte nas minhas costas. Senti minha pele queimando como se fosse um chicote.
— Ai!
— Desculpa. Você até mereceu essa, mas desculpa. Vamos. — Ela colocou as mãos nas minhas costas, sobre o tecido da camisa. — Feche os olhos e se concentre...
Assim, comecei minha primeira sessão de meditação, da forma mais desajeitada possível.
Após certo tempo, porém, comecei a sentir uma dor no peito, que apenas crescia a cada respiração.