Volume 1
Capítulo 26: O peso da verdade
O mundo que se sucedeu era distante, embaçado, distorcido. Uma dor sutil acariciava minha cabeça, leve o suficiente para sentir como um invasivo abraço apertado, constante o suficiente para me sufocar em uma agonia ritmicamente lenta.
Meus músculos eram tão opacos quanto as formas imprecisas daquele cenário. Não conseguia movê-los, como se vazio os preenchesse. A minha consciência, porém, aturdida e sonolenta, não conseguia viver intensamente aquela limitação e incapacidade, nem processar os fracos sentimentos que afloravam no peito.
Desabrigado dos meus sentidos e emoções, um som quebrou o silêncio. Era uma página de um livro sendo passada, nem rápido nem lento. Um minuto depois veio outra. E outra. Uma por uma. Lentamente. Sem pressa.
Minha visão recaiu sobre a fonte daquele som sereno. Aos poucos, o mundo embaçado tomou um pouco mais de forma, embora com contornos incertos e fluidos, tal qual uma pintura impressionista. Vi...
O semblante de uma jovem feiticeira. O rosto difuso, mas nítidos os lábios em linha reta, no equilíbrio entre desânimo e animação. Um suave cabelo marrom fluía até os ombros. Os óculos escondiam os olhos, de tal forma que a leitura parecia constituir parte de seu próprio rosto. Estava reclinada em uma cadeira de balanço, imóvel, as pernas recolhidas e cruzadas no assento.
Passou mais uma página. Durante um breve respiro, vi seus lábios se abrirem em um pacífico sorriso satisfeito, antes de penderem à neutra imobilidade.
A monotonia do cenário me fazia sentir seguro. Em meio ao caos imprevisível que acompanhava meus passos, me confortava aquele rosto que sempre voltaria a ficar impessoal, aquela página que sempre seria virada, a cadeira de balanço que nunca seria balançada. Era seguro, previsível. Pacífico.
Deixei que meus olhos se fechassem. Não havia por que me esforçar para enxergar. Estava seguro. Permiti-me afundar na cama macia e...
— Flamel? — Ouvi a voz dela, quase tão suave quanto o silêncio.
Abri os olhos e notei que o foco dos óculos se moveu do livro para mim. Uma pequena onda de ansiedade desabrochou do meu peito; a monotonia segura foi rompida. Clamava-me a agir novamente o mundo.
A ansiedade deu vitalidade aos meus músculos, que agora conseguiram me fazer sentar na cama. Observei a garota mais uma vez, despertando-me do sono e vendo-a com nitidez. Era Aithne. Seus olhos cor de mel me fitavam com uma expressão impenetrável.
O fato de ser ela me fez ficar ainda mais nervoso. Relembrava-me da expressão triste e confusa que ela tinha na última conversa. Ainda queria confortá-la, e permanecia sem saber como.
— Oi, Aithne...
O semblante impessoal dela se tornou... agridoce. As sobrancelhas se uniram em certa angústia, mas os lábios sorriram com alegria inconfundível.
— Você nunca soube disfarçar seus sentimentos, não é? — Fechou o livro e se levantou.
Enquanto ela batia a calça preta para abanar a poeira, observei que estávamos naquele quarto de pedra em que acordei anteriormente. Se Aithne estava aqui, eu deveria estar seguro, certo? Então...
Sem me dar tempo para pensar, ela se sentou ao meu lado, apesar dos olhos voltados para o chão, desviando-os de mim.
— Desculpa por antes... — disse ela.
— N-não... — falei-lhe sem jeito, trocando de foco entre ela e o piso, imitando-a um pouco sem perceber. — Você tem todo direito de ficar chateada...
Ela deu um leve suspiro, os ombros abaixando-se, mais relaxados. Juntou as mãos, entrelaçando os dedos, e trouxe os pés descalços para a cama, acanhada em seu próprio canto.
Apesar de estarmos na mesma cama, sentia-me em um mundo completamente diferente do dela. Encarava o rosto dela sem saber ao certo como prosseguir. Tal como antes, queria abraçá-la e confortá-la, mas não éramos próximos.
Percebendo que a fitava, os olhos dela se dirigiram aos meus com uma tímida vulnerabilidade, como se tentasse se conectar com Flamel. Talvez notando a ausência do antigo companheiro, encarou a cama, perdida, com um suspiro melancólico.
Mas então, com um brilho súbito, ela me encarou e abriu os lábios. Porém, nenhum som saiu. Hesitou por certo tempo, quase que paralisada, a cada instante seus olhos reluzentes perdendo o fulgor repentino, como se percebesse que a ideia repentina era distante da realidade.
Silêncio impenetrável recaiu sobre nós. Era horrível vê-la assim, imaginando que nem podia ter certeza se o falecido amigo estava diante dela ou não. Ou, se ainda acreditava que eu era Flamel, então era obrigada a ver um rosto tão querido encarando-a com a distância de um estranho. Todas as memórias juntos, todo o impacto que um teve na vida um do outro, tudo se desfez, restando apenas o gosto amargo de memórias que eu jamais entenderia o valor.
Observá-la e imaginá-la assim fez passar pela minha cabeça uma possibilidade remota e perigosa... Aithne conhecia Flamel. Era amiga dele, sabia da família dele, deveriam ter várias histórias juntos. Será que...
O peso desse questionamento fez meu coração bater mais depressa. Será que deveria contar para ela a verdade sobre Flamel? Não queria a ver triste, e ela tem direito de saber sobre a verdade. Fora que...
Porém, na mesma velocidade em que tal ideia veio, também a descartei. Era impensável me expor a tal risco. Deixei meus pensamentos de lado e me concentrei na Aithne.
— Sobre ter perdido as memórias... — comecei a falar. Era evidente que isso a atormentava. — Aconteceu há cerca de duas semanas. Acordei e não conseguia me lembrar de nada.
— Há duas semanas? — O rosto dela se fechou em tom pensativo.
— Sim. Na manhã da apresentação da runa de som.
— Espera... Não foi nela que você apresentou sobre “o Pálido”?
— Sim?
Desconfiança cobriu sua face, as sobrancelhas se unindo de forma intensa.
— Como você apresentou aquilo se perdeu as memórias? — perguntou, recolhendo-se para mais longe de mim, como se criasse distância para se proteger. Aquele sentimento agridoce passou a ser substituído por precaução e alerta.
— Li o livro dele naquela manhã. Acordei no quarto sozinho, perdido. Saí lendo tudo que podia para tentar me localizar.
— ... — parou ela por alguns segundos, processando as informações. Então deu um respiro profundo, relaxando os ombros arqueados. — Faz sentido — disse ela, se puxando para um pouco mais perto de mim. Um sorriso de ironia amarga consumiu os lábios. — E mesmo assim foi capaz de fazer uma apresentação daquelas?
— Sim? Só apresentei uma história. Nada demais.
Ela sorriu de levinho com um ar de incredulidade, embora, no fundo dos olhos, aquela dor não tivesse se retirado.
— Você é realmente um gênio. A apresentação foi incrível. Mas, tipo, você se esqueceu de tudo? Tudinho?
— Sim?
— Até... de nós?
O peso das palavras dela recaíram no ambiente com um peso sufocante semelhante a estar no fundo do mar. Já não tinha mais certeza do relacionamento deles. Eram amigos próximos? Namorados? O que Flamel era para ela?
— S-sim... — respondi-lhe, sentindo-me no mesmo papel de um médico que notifica um parente sobre a morte do familiar. Nesse caso, era a morte de uma conexão, do calor que um dia já tiveram. O desespero no olhar dela me dizia isso claro. Era como se me implorasse para mudar a situação, mas eu não era capaz.
— Entendo... — Ficou abatida com a resposta que já esperava, embora nutrisse alguma esperança. Então seus olhos brilharam repentinamente. — Mas!... Quando te entreguei aquele livro recentemente, você me chamou pelo nome. Como sabia quem eu era?
— Isso... Eu também não sei. Achei estranho como seu nome fluiu pelos meus lábios.
— Talvez!... Talvez! — Ela se aproximou de mim de joelhos, o rosto dela um pouco próximo do meu. Segurou minhas bochechas e me fitou no fundo dos olhos. — S-será que... — deixou a voz morrer, perdida entre a esperança e o desespero.
Encará-la daquele jeito era doloroso. Era injusto e amargo não lhe dizer a verdade, sabendo o tanto que se preocupava com Flamel. Ela continuaria nutrindo esperanças, que irreparavelmente seriam quebradas quando descobrisse a verdade.
Poderia eu fingir ser Flamel e lhe confortar, mas... Merda. Até então nem sabia se a Violette e a Guinevere eram tão gentis comigo por causa de quem eu sou ou por causa de quem Flamel um dia foi. Conversando com elas, por vezes me sentia como se roubasse tudo que Flamel construiu, e que nada me pertencesse de fato.
Queria ser reconhecido por quem sou. Queria ser visto. Tem sido um peso enorme não poder compartilhar com ninguém a dor e o medo de vir parar neste mundo. Ninguém nunca pôde me guiar e me orientar por causa disso. Tive que me virar sozinho. Se eu tivesse só um aliado que soubesse quem sou...
Talvez toda essa angústia se tornava ainda mais intensa por ter visto uma criança sendo torturada e nada poder ter feito a respeito. Tudo fazia querer ainda mais me conectar com alguém. Só por um momento, deixar-me mostrar quem eu sou, fora das máscaras limitantes, fora dos títulos que não me pertencem. Só por um abraço, saber que alguém dirige as palavras a mim, e não ao fantasma de Flamel...
No fim, não havia uma solução minimamente satisfatória nesta situação. Criar uma mentira para a confortar seria o mais racional, mas seria matar uma parte de mim e dela. Seria decidir viver uma vida de teatro, de pura encenação.
Mordi o lábio inferior, frustrado, enquanto encarava a garota de volta. Ela merecia a verdade...
Meu coração se sentia ansioso pela oportunidade que se abria; estávamos sozinhos no quarto, ninguém mais ouviria. Aithne parecia ser alguém confiável, sempre lendo no cantinho dela, sem se envolver em problemas, sem quase nunca ser vista. Salvou-me do monstro, e chorou ao saber que Flamel perdeu as memórias. Foi uma das preocupações mais genuínas que já vi de alguém. Contudo...
Dei um suspiro fundo. Não tinha nem ideia que consequências haveria com isso. Seria um risco enorme.
— Flamel?... Tá tudo bem? — Ela me perguntou, receosa do meu silêncio.
A situação era delicada. Muito delicada. Aproveitando da minha aparente capacidade de pensar rápido, deixei-me refletir mais.
Por um lado, todos pensavam que eu era Flamel. Se essa informação caísse nas mãos erradas, talvez me tornariam um experimento humano ao lado daquele garoto, sendo estudado e testado vivo. Ou poderiam me exterminar, para evitar problemas. Todo meu destino poderia ser afetado se decidisse lhe contar a verdade, ao invés de dar uma desculpa esfarrapada.
Fechei os olhos e tentei me lembrar das literaturas de Isekai que já li, em busca de algum norte. Em todas que me vinham à mente, revelar a identidade era algo impensável e feito só perto do fim da história. Mas...
— Aithne... — chamei-lhe enquanto a olhava de novo. Mesmo incerto sobre a escolha, meu corpo seguiu com uma decisão que aos poucos tomava meu peito.
— Oi?... — Ainda de joelhos, ela sentou sobre os tornozelos, o rosto se distanciando levemente. Os olhos dela eram repletos de expectativas e medo.
— Eu... — Era aquele momento. Uma escolha que recairia sobre todo meu destino, que me acorrentaria para onde quer que fosse.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, esperando que a voz da minha mente fosse me auxiliar em algo. Entretanto, tal socorro não veio, e cada vez mais expectativa crescia nos olhos de Aithne. Vê-la nutrir esperanças era como assistir a uma árvore crescer apenas para algum dia ser cortada pela raiz. Quanto mais crescesse, maior seria a queda.
— Você...? — inquietava-se Aithne com minha demora por falar.
Ali, apesar da Aithne ao meu lado, eu estava sozinho, jogado na situação, sem onde me apoiar. Não havia escolha moralmente correta, ambas eram aceitáveis. A única coisa que me acompanhava era meus próprios pensamentos confusos e conflitantes...
— Eu não s... — interrompi-me. Meu coração trovejava dentro do peito. — ...Aithne, me promete uma coisa?
— O quê? — Ela engoliu em seco, aguardando aflita mas quieta e respeitosa.
— Promete que o que eu te contar aqui permanecerá apenas com você?
Ela pareceu considerar por certo tempo, até que fez que sim com a cabeça. Podia ver a tensão nos olhos dela.
— ...Então... Eu-
Revelar isso te trará consequências pesadas, alertou minha mente. Diferente das outras vezes, não me deu resposta definida. Não disse para fazer nem para não fazer. Nem mesmo detalhou se as consequências eram boas, ruins ou netras. Essa escolha era competência apenas minha.
Há, na vida, sempre escolhas que trarão menos prejuízos que outras. Poderia decidir pelo que fosse mais seguro e desse mais benefícios. Porém...
Isso seria uma vida que valeria a pena ser vivida? Buscando diminuir os problemas, mas deixando de lutar pelo que se acredita? Valeria a pena manter o segredo, enquanto observo um coração sendo dilacerado na cruel esperança de que ainda sou o Flamel?
Talvez lhe revelar a verdade um dia pudesse compor meu próprio túmulo. Havia grandes possibilidades disso. Na minha lápide, não restaria outras palavras a não ser “aqui jaz um tolo que cavou a própria cova”. Ainda assim...
Encarei os olhos aflitos dela. Não restava mais dúvida. Decidi-me. Preferiria ser um louco que morreria seguindo seus ideais, do que um morto que teima a sobreviver sem poder consolar um coração em necessidade.
Agarrei-lhe a mão e pronunciei sem mais hesitar:
— Eu não sou Flamel.
Ela me fitou por alguns instantes, sem reação. Como que tomada pela surpresa, sorriu.
— Flamel... Não faça piadas assim. Seu cabeção. — Ela me deu um tapinha na cabeça e riu, os olhos fechados. — Você tem esse péssimo costume de...
A voz dela morreu quando me fitou de novo. Encontrou meus olhos sérios, os lábios caídos em tristeza, as sobrancelhas contorcidas em apreensão. O sorriso dela, como se lhe esvaísse toda vida, murchou e tremeu.
— F-Flamel? — chamou-lhe ela. Neguei, balançando a cabeça para os lados, lento e hesitante.
Um silêncio frio como o gelo, doloroso como o fogo se fez entre nossos olhares. O rosto dela estava branco, pálido, assustado. Encarou-me por extensos segundos, talvez minutos, observando meu rosto com estranheza, como se finalmente duvidasse daquilo que via. Vi o medo enrijecendo sua face.
— Isso... Isso... Não é uma piada?
Talvez o meu semblante, igualmente triste e desolado, a fez não me temer, porque, em vez de se afastar, ela rastejou até mim e apalpou minha bochecha com um desespero sufocante. Seus dedos gelados deslizaram pela minha face numa vã tentativa de agarrar e segurar quem já não estava naquele corpo.
Segurei-lhe a mão e a acariciei, com uma expressão ainda mais pesada.
— Não. Não sou Flamel. Acordei neste corpo sem as memórias dele, mas sou outra pessoa. Vim de um mundo que nem magia existe, e não tenho ideia de como vim parar aqui. Um dia acordei neste corpo, sem as memórias do Flamel.
Os dedos pararam em meu rosto como se virassem parte de uma estátua. A garota ficou paralisada, sem reação. Os lábios dela, usualmente tão sérios, tremeram mais.
Passado o momento de susto, ela fechou a expressão com tal acidez e peso que as rugas fizeram-lhe parecer outra pessoa. Era outra Aithne, mais feia, mais brutal, completamente distante da que conhecia.
— E só agora você me conta?! — gritou, as lágrimas começando a transbordar dos olhos. A palidez deu lugar a um rubor flamejante que consumiu a face com ódio pela traição que sentia. — Você me viu chorando pelo Flamel, e nem teve a coragem de me falar? — Ela segurou a gola da minha camisa e me puxou bruscamente, com uma força tão assustadora quanto a que usou para destruir a cabeça do monstro. — É assim que me retribui por ter te salvado na biblioteca? Por ter te dado aquele maldito livro?
Não a respondi de imediato. Senti minha face ardendo, quente, envergonhada, culpada, sabendo que poderia ter lhe dito mais cedo. Por mais irracional que fosse, senti-me como uma escória de homem, capaz de provocar tamanha dor em alguém.
No entanto, Aithne não preencheu o silêncio. Continuou me encarando com uma raiva palpável, como se ansiasse pela minha resposta, como se merecesse um porquê.
— Não podia contar. Estou sozinho nessa academia, Aithne. Sem conhecer ninguém, sem ter nenhuma memória sobre esse mundo. Não podia fazer nada a respeito. E não tenho culpa... Nunca fiz nada para ser transportado para cá. Sou de outro mundo, e lá nem sabemos que magia existe — repeti, tentando fazê-la minha situação.
— Mentiroso!
Ela ergueu o punho e me deu um tapa no rosto com tanta força que caí da cama, despencando-me no chão de lado, por pouco impedindo com o braço que a cabeça se chocasse contra o chão.
Apesar da violência dela, Aithne não recuou. Jogou-se de joelhos e agarrou minha gola outra vez, quase a rasgando.
— Todo esse tempo estive te observando, tentando te ajudar. Estou arriscando a porcaria da minha carreira vindo até aqui só para te fazer companhia, apenas para descobrir que vem mentindo sobre ser o Flamel? Você... Você... — Ela se perdeu nas palavras, e logo as lágrimas começaram a desbotar dos olhos, algumas escorrendo pela ponte do nariz e pingando em mim.
— Desculpa, Aithne, eu...
— Desculpa nada! — berrou, as artérias do pescoço pulsando. — Você... — A voz morreu, as lágrimas tornando a encharcar o rosto com uma expressão de dor que feriu meu coração.
Sentia-me em parte injustiçado por tudo que acontecia. Foi difícil dizer-lhe a verdade, coloquei muita coisa a perder, e ainda era posto como culpado por não ter revelado mais cedo...
Mas a entendia. E, de fato, mesmo que distante, ela sempre me ajudou. Se estava vivo, era por causa dela. Se comecei a aprender magia com prazer, era por causa do livro que fez questão em me dar. Naquele dia do livro, aliás, ela estava indo embora após bater na porta uma vez de fininho. Quantas vezes já não teria olhado por mim, ou melhor, por Flamel, e eu nem desconfiava? E, sobre o luto, entendo melhor a dor do que ninguém...
Estendi meus braços por volta de seu pescoço e puxei Aithne para perto de mim. Ela hesitou, mas logo cedeu e se debruçou sobre meu peito. Enquanto minha mão afagava sua cabeça gentilmente, o choro quieto e enraivecido dela deu lugar a um lamento alto, lamuriando com força em um som feio e atormentado. Fazia-me lembrar do estridente e desolado berro que eu dava na estrada, segurando o corpo ensanguentado de Lucas.
Dei-lhe um beijo paternal na testa, tentando acalmá-la. Talvez por sentir espaço para expressar toda perturbação, ela agarrou forte meu peito sobre a camisa, cravando os dedos, e continuou a chorar desesperadamente por um longo tempo.
Inevitavelmente, as lágrimas começaram a diminuir, choro a cessar. A transição demorou um angustiante tempo para passar, mas passou. O semblante de Aithne fez-se vazio, desgastado. Os olhos pareciam não ter mais lágrimas. A voz rouca não tinha mais forças para lamuriar. Os dedos fracos e trêmulos já não conseguiam me agarrar com força alguma.
— Ele... Ele nunca mais vai voltar? — cochichou ela, em uma voz tão delicada quanto o silêncio.
— Não sei. Não sei nem se consigo voltar para o meu mundo...
Aithne virou o rosto para mim e apoiou o queixo no meu peito. Vi os olhos suplicantes dela, mas também desesperançosos e fatídicos, como se estivesse lutando cegamente contra a dolorosa certeza de Flamel ter partido para sempre.
— Será que ele realmente morreu?
— Não tenho ideia, Aithne. Queria saber te responder. Porém, desde que vim parar aqui, nunca o senti ou vi, mesmo em sonho.
— O Tokewater me disse que você ainda tem o dom dele...
— Também pareço ter algumas memórias inconscientes, como o seu nome. Mas acho que são coisas que Flamel deixou em seu corpo, em seu cérebro, e não no espírito dele — falei, escolhendo as palavras cuidadosamente. Não queria magoá-la mais, nem nutrir expectativas que se frustrariam.
— Eu... Não sei... — Uma nova lágrima escorreu pela bochecha de Aithne.
Puxei um pouco a franja de seu cabelo para trás, acariciando seus cabelos enquanto observava os olhos dela.
— Desculpa — falei-lhe.
— Não, eu... Desculpa, você estava certo... Desculpa por ter te dado aquele tapa... — Ela desviou o olhar e escondeu seu rosto na minha camisa.
Dei um longo suspiro, um pouco mais tranquilo, apesar de ainda triste.
— Você é forte. Muito forte. Por favor, não se importe com o que fez. Acabou de receber uma dor terrível.
Ela não me respondeu ou me olhou mais. Ficamos juntos, no chão, por tempo indeterminado. A única coisa que quebrava o silêncio era o trepidar das tochas queimando e algumas fungadas súbitas que Aithne dava.
Não ousei interrompê-la. E não havia por quê.
Horas se passaram. A falta de movimento e o cansaço por todo estresse fez surgir um leve sono que foi se crescendo. Aithne já não se mexia ou fungava há um bom tempo. Queria perguntá-la se estava tudo bem com ela, mas não deveria a incomodar.
Em algum momento, meus dedos pararam e minha respiração se tornou mais profunda. Sono batia à porta da minha alma.
Adormeci após horas.
Um bom tempo após caírem no sono, a maçaneta da porta do quarto se mexeu. A porta foi aberta e entraram por ela Hayek e Tokewater, em robes pretos que cobriam o corpo todo. Pararam em frente a Michael e Aithne.
— Que bagunça... — comentou Tokewater. — Tem certeza que foi uma boa ideia deixar Aithne com ele?... Eles poderiam... Sabe...
— Pois veja os dois pardais, Tokewater. Precisavam desse tempo juntos. E, afinal, após Flamel ter explorado onde não deveria, precisava de um descanso...
Tokewater não respondeu, permitindo que se instaurasse um denso silêncio. Não o suportando, coçou a cabeça e suspirou fundo.
— Hayek — chamou-lhe, somente.
A mulher não respondeu. Permaneceu encarando os dois estudantes com um olhar distante.
— Hayek, até quando vai ignorar o fato de que Flamel conseguiu ter acesso a lugares que nunca conseguimos encontrar?
Ela continuou sem responder. Com uma expressão irritada, apoiou-se na parede numa pose desleixada e torta.
— Ainda não me caiu a ficha — finalmente disse ela. — O subsolo da Academia é repleto de feitiçaria de ilusão que nem eu consigo desvendar. Para mim, e acredito que para você também, o corredor por que passamos termina a poucos passos daqui, no fim da caverna. Não há sangue para se sujar. Nem arranhões com veneno de aranha para se arranjar. Achava que eram apenas rumores...
— Também. Muitas histórias supersticiosas e dramáticas roubam atenção do povo, raramente verdadeiras. Porém, não vejo como Flamel pode ter se machucado tanto aqui... A adaga que trouxe consigo também é de um modelo da Academia de quase dois séculos atrás. Algo aconteceu aqui. A Academia realmente esconde algo de nós...
— De fato.
— E o que faremos a respeito disso?
Hayek riu em ironia e olhou de soslaio para Tokewater.
— Fazer contra A Academia? No fim do mundo, no meio das planícies desoladas? Ninguém virá socorrer-nos, Water. Aquele professor Zonto também não me cheira bem. E nem a maldita da Elizabeth. Aquela vaca...
— Reclamar não vai adiantar, Hayek. Precisamos tentar adquirir mais informação.
— Ah... Que seja. Anda, me ajuda a carregar os dois aqui. — Hayek saiu de perto da parede e agachou ao lado de Aithne. Pegou-a com cuidado e a colocou no canto direito da cama.
Tokewater acompanhou o movimento e levou Michael até o lado de Aithne delicadamente. Enquanto o fazia, lançava olhadelas para Hayek, incomodado. Ela percebeu, mas ignorou e apenas espreguiçou com as mãos ao alto.
— Você e sua mania de ignorar as coisas... Deixando a Academia de lado, o que vai fazer a respeito do garoto? — disse, levantando uma das mangas da camisa do Michael.
— Pretendo polir seu talento ao máximo. Tem um grande caminho pela frente.
— Sabe bem que não é disso que estou falando.
Tokewater tocou gentilmente o pulso de Michael e fechou os olhos, como se se concentrasse em algo. Aos poucos, seus dedos começaram a vibrar em um tom escuro de violeta, bem próximo do preto da noite. Daquela luz, um complexo mas belo emaranhado de linhas formaram diversas runas e símbolos cintilantes pelo corpo do Flamel.
— Até quando vai ignorar que ele está amaldiçoado? — disse Tokewater, em um tom mais irritado.
Hayek observou o braço do garoto com atenção mórbida. Fechou os olhos e se isolou no silêncio do próprio mundo. Tokewater balançou a cabeça em negação e não podia acreditar no quão Hayek podia ser matura e corajosa para certas coisas, mas uma criança para lidar com outras.
— Ignorar não vai mudar o fato — insistiu Tokewater.
— Não me diga que vai insinuar que ele é um monstro. — As palavras de Hayek saíram com um ar pesado e letal. Seus olhos se abriram minimamente, o suficiente para mirá-los em Tokewater como se fossem bestas prontas para atravessar flechas em seu crânio.
O homem suspirou outra vez, arrependendo-se um pouco de ter decidido ajudar Hayek.
— Não. O dom original dele permanece no corpo, e o novo dom que surgiu é tão humano quanto o meu. Dons de monstros exalam a escuridão de forma impossível de se confundir. O dele... — Tokewater estreitou os olhos, examinando os arredores imediatos do corpo de Flamel. — O tom violeta dele parece-me triste. Profundamente machucado. Mas empático. Brilhante. Como uma flor de lótus que desabrocha no lodo.
— Muitos dons são assim.
— Sim, mas não os de um monstro. Não vejo razões para acreditar que ele esteja ligado com magia negra. Porém, também não tenho ideia do que infernos aconteceu com ele...
— “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar”, Water. Principalmente se tratando de magia, temos a ilusão de pensar que conhecemos de tudo, quando na verdade sabemos de um pequeno fragmento de todo um universo.
As palavras atingiram o coração de Tokewater e o fizeram se calar. Como novo diretor de pesquisa em magia, sabia melhor que ninguém o pretencioso orgulho da raça humana de acreditar que sabem tanto. Negaram a sabedoria ancestral dos elfos maiores, alegando que se tratava de baboseiras da religião deles, mas pouco imaginam quanto que as mais novas pesquisas vêm demonstrando que tal julgamento foi muito precipitado...
A prova viva da ignorância humana era o garoto na frente dos dois. Apesar de terem os estudos mais nobres e avançados da raça humana, pouco sabiam sobre o caso.
Olhar para Michael era como olhar para um abismo há muito sepultado pela humanidade. Um abismo do medo do desconhecido, onde reinam todas as possibilidades que a mente pode imaginar. Um mundo onde a luz do conhecimento científico pouco lhes dava respostas.
Da mesma forma, o aparecimento repentino do monstro lhes causava o mesmo torpor do desconhecido. Como Elizabeth disse na reunião, há rumores de que o Grande Mal, há muito extinguido pelo herói Marcus, estivesse retornando. Todos julgavam que eram apenas rumores de pessoas preguiçosas cheias de tempo livre. As marcas no corpo de Michael, contudo, faziam Hayek e Tokewater duvidar de suas certezas.
Cortando-se da ansiedade que crescia no peito, Hayek andou até Tokewater e bateu em seu ombro.
— Vamos. O jantar vai ficar frio em breve — falou-lhe ela.
— O jantar...
Tokewater, com resistência, se levantou, os olhos ainda fixados em Michael. Hayek notou a apreensão empática que se exibia em cada traço do mago. Um sorriso desabrochou na face dela. Tokewater, apesar de chato e implicante, era um homem confiável...
— Teremos tempo para pensar melhor. De barriga vazia, nenhuma ideia boa virá. Vamos.
Tokewater assentiu e saiu da sala junto com ela. Fecharam a porta e deixaram os dois deitados no quarto, dormindo sob o farfalhar das tochas que nunca paravam de queimar.