Volume 1
Capítulo 24: Nos recantos da mente
Sentava-me no mesmo sofá em que tantas vezes recebi cafuné dos meus pais. À minha frente, repousava a TV desligada, que um dia já tivera tanto uso. Pela penumbra que recobria o local, notei alguns pratos e copos vazios mas sujos descansando nos móveis, as cadeiras da mesa de vidro perto da sala de estar estavam um pouco desalinhadas. Silêncio recaía sobre o local.
Era estranho estar lá de volta. Diferente das outras vezes, sabia que estava sonhando. Era claro para mim. Entretanto, ainda era incapaz de controlar o que se dispunha no sonho. Tudo que podia fazer era observar o que minha mente quisesse me mostrar.
Examinei melhor o cômodo à minha volta, notando a relativa bagunça. Talvez assim seria minha vida diária se meus pais não tivessem tomado conta da casa. Meu quarto, sob meus cuidados, não era muito diferente disso.
Meu quarto...
Levantei-me do sofá enquanto um bocejo incontrolável se apossava de mim. Estiquei os braços para cima e senti a preguiça fluir por todo meu corpo. A ideia de afundar de novo naquele sofá e me render ao conforto era tentadora. No entanto, meu quarto... Havia algo nele que me atraía, como um misterioso canto de sereia que me conduzia para longe da segurança do conhecido.
Meus passos me levaram até um corredor sombrio, uma neblina preta ofuscava minha visão de captar as portas que lá deveriam se estender. Um medo instintivo assolou o coração. Era um sonho, e minha mente poderia brincar comigo de todas as diferentes formas dentro dessa escuridão. O sofá era muito mais quente. Bem-iluminado. Protegido.
Mas, por experiência própria, agora sabia que pouco ganharia em me acovardar. Segui adiante. Dei meu salto de fé e mergulhei na escuridão, disposto a enxergar o que quer que lá houvesse espreitando.
Em poucas pisadas tímidas e silenciosas, minhas mãos tocaram uma porta que me dava a impressão de ser a minha, embora o local dela no corredor fosse totalmente anormal. Abri-a e fui recebido por uma suave luz.
Era meu quarto. A cama estava bagunçada como deixei na última noite em que dormi aqui, o retrato de Lucas na mesa, a mochila largada na cadeira. O monitor estava ligado, exibindo uma das resenhas que havia escrito para a faculdade. Reli de vislumbre as palavras animadas com que discorria a respeito da teoria da sublimação de Freud.
A nostalgia invadiu minha mente, me sentindo como um funcionário aposentado que revisita a antiga organização. Engraçado como que um passado em que me sentia tão impotente e incapaz me causava hoje um sorriso bobo. Sempre tive uma vida fácil e tranquila. Eu dizia que sabia disso, mas há uma clara diferença entre a ilusão de saber de algo e realmente saber isso no coração. Nessa cama, tudo era tão quentinho e protegido…
Um sorriso agridoce se abriu em meus lábios. E pensar que me tornaria algo como um protagonista de Isekai. Mas todos eles se adaptavam rapidamente ao mundo. “Uma oportunidade que nunca tive, vou aproveitá-la ao máximo”, sempre diziam nas histórias.
Porém, talvez os mais honestos fossem os que reencarnavam e queriam apenas “uma vida tranquila”, como sempre desejavam. Chegava a ser má-fé acreditar que, se tivessem uma nova vida, fariam tudo diferente, com uma força que nunca tiveram, justo quando perdem a oportunidade da atual. A esses, será que se encontrassem fracassos e dificuldades na nova vida, desistiriam dela tal qual na atual, retornando à espiral de desânimo e conforto?
Possível fosse que esses pensamentos tentassem apenas confortar alguém tão imperfeito como eu, como uma mentira que consola. Talvez seja possível mudar da noite para o dia, e apenas eu não fui capaz disso...
Meu dedão tocou e acariciou o retrato de Lucas. Ele estava tão sorridente na última foto. Nunca superei por completo o dia em que, enquanto aguardávamos em um banquinho nossos pais saírem de uma loja do posto de gasolina, distraí-me com o celular e só o vi quando chamou meu nome.
— Michael! — O sorriso dele era forte e vivaz. Ele estava no meio da rua segurando uma bola de futebol. — Essa bola caiu daquele carro. Será que podemos-
Assombrava-me sentir de novo meu rosto se empalidecendo quando vi um carro que vinha na estrada em altíssima velocidade. Tentei correr até Lucas aos sons da buzina do carro.
Não dava tempo. Fitei o rosto desesperado do motorista pelo para-brisa. Ele começou a mudar de direção, mas, por ironia do destino, uma lombada logo à frente, com a tinta tão desgastada que era difícil enxergá-la se não estivesse atento, fez o carro se desprender do chão e apenas aterrissar praticamente em cima do meu irmão.
Tudo aconteceu na frente dos meus olhos. Dei meu máximo e cheguei até Lucas. Consegui segurar a mão dele, mas, quando puxei, veio somente o braço deslocado do ombro.
Esse foi o preço da desatenção, por jogar a merda de um jogo de celular e não notar que meu irmão fazia a última e maior bobagem da vida dele. Eu sabia que ele era meio maluco e poderia aprontar. Meus pais pediram-me muito para que tomasse conta dele enquanto compravam comida para continuar a estrada.
A culpa nunca deixou de me acompanhar mesmo em outro mundo. Talvez por isso não conseguia aceitar a ideia de que não nos transformamos do dia para a noite. Ao contrário disso: não temos como fugir dos cacos quebrados da nossa alma; cabe paciência e força para, pouco a pouco, nos consertarmos, nos refazermos.
O ambiente muda, mas nossas memórias e raízes permanecem nos recônditos cantos da nossa alma. Nossas promessas, fracassos e crenças permanecem conosco, mesmo que ofuscadas. Para um protagonista que acredita ser o “herói da luz”, poderia bastar uma grande falha para que recobrasse ansiedades e dúvidas de si mesmo, que na verdade nunca morreram, mas espreitavam escondidas, sorrateiras, aguardando um momento de fraqueza para morder-lhe o pescoço.
Apesar de tudo isso...
Meus olhos percorreram o cômodo. O que minha mente queria me mostrar com tudo isso? Uma reflexão de como mudei? Se for só isso, estava preparado para ir embora. Fechei os olhos e tentei acordar; mas não consegui.
Por que não consigo? O que-
Dum.
Abri os olhos, assustado, e olhei para o meu armário. Foi de lá que ouvi algo batendo na porta. Que-
Dum.
A porta vibrou com uma batida na minha frente outra vez. Olhei para os cantos do quarto, mas nada havia de anormal, a não ser pelo corredor que continuava com a densa neblina preta igual carvão. Fechei os olhos e tentei sair do sonho. Foi em vão.
Dum.
Encarei aquela maldita porta. Alguma coisa dentro do armário batia nela. Por que faz isso comigo, cérebro? Caramba, eu só queria acordar em paz. Me deixa-
Dum.
Não importava o quanto me revoltasse. Aquela porta continuaria a bater até que a abrisse. Era uma armadilha óbvia, mas que não poderia ser ignorada.
Dum.
Andei até ela e encarei a madeira do armário. Ela vibrou mais uma vez, sacolejando-se como se algo se espremesse para sair. Dei um suspiro fundo e peguei na maçaneta. Abaixei a peça metálica e puxei a porta.
Em vez de roupas, encontrei um corredor de tijolos de pedra lapidada, parecendo pertencer a um castelo antigo. A passagem virava à esquerda e descia por uma escada que dali não podia ver direito.
Engoli em seco e adentrei no corredor. Tentava manter a respiração silenciosa, mas a tensão era tamanha que involuntariamente ofegava. O som ecoava no local a cada vez que enchia meus pulmões. Se houver algo ou alguém, com certeza me ouviria nesse ritmo.
Não sendo capaz de fazer algo a respeito, segui à esquerda e encarei uma escada que descia em espiral. A luz do quarto pouco iluminava o que vinha por baixo.
Olhei para trás, e agradeci a Deus por a porta do armário não ter se fechado sozinha. Poderia fugir se precisasse.
Respirei fundo uma última vez e me atirei naquela escuridão, descendo degrau por degrau, tomando muito cuidado para não cair no vão do centro da espiral. Após o que pareceu uns cinco minutos inteiros caminhando, cheguei a uma porta de madeira iluminada por uma tocha ao lado.
Com medo do que estava por vir, abri a porta. O ambiente que se revelou aos meus olhos, ao contrário do frio e escuro corredor, era...
Meus olhos encheram-se de lágrimas. Era como um pequeno porão, mas muito bem-iluminado, com mesa, sofá e um calor que me enchia de vida. Nas paredes, via pôsteres, pinturas e quadros diversos. Examinei de perto aquelas figuras.
A primeira era uma foto em que duelava com gravetos contra meu irmão. Naquele dia nossa mãe quase nos matou, mas valeu a pena. Apesar de ele ter acertado minha mão que empunhava a espada improvisada e eu ter ficado com muita raiva, senti-me como um herói imbatível, capaz de conquistar o mundo com força e bravura.
Segui adiante e vi uma grande foto de eu jogando meu primeiro campeonato de Torneio das Lendas. Tenho muita vergonha daquela época, basicamente ficava trancado dentro do jogo, mas podia ver o brilho no meu olhar...
Naquele mesmo dia o sorrisão se transformou em lágrimas, mas não só de tristeza. Perdi o campeonato, porém prometi para mim mesmo que me esforçaria mais, que seria melhor. No fim, larguei o jogo para me concentrar nos estudos ao vestibular. Ver que um dia já fui tão motivado e enérgico para algo era... estranho.
Embaixo da extensa moldura vi alguns papeis escritos de ponta a ponta. Peguei-os e li uma história que há muito havia escrito: “Como me tornei um deus”. Era um dos meus projetos bobos do passado. Tinha feito um livro inteiro de oitenta mil palavras em um só mês, escrevendo praticamente desde que chegava da aula até ir dormir.
Eu... sempre fui assim?
Pela parede se seguiam mais recordações, algumas de bem menor impacto, mas que me faziam lembrar de pequenas glórias infantis que já tive. Na parede do lado oposto, vi histórias de grandes guerreiros e magos que amava ler. Meus personagens favoritos estavam pintados com cores dramáticas em cenas de bravuras e heroísmo.
Na parede oposta à porta, entretanto, nada havia, a não ser uma mesinha. Nela descansava uma espada preta em um suporte de madeira. Um pequeno papel preenchido com palavras descansava na base de madeira.
Caminhei até lá e espantei-me ao reconhecer aqueles itens. O suporte de madeira era um que minha mãe comprou para o secador de cabelo dela; lembro-me de como o secador parecia uma espada lendária nele. Já a espada em si... Segurei seu cabo e a empunhei. Era um presente que recebi de aniversário do meu pai, lá pelos treze anos. Eu era fascinado com uma história, e lhe implorei que me desse algo assim. Talvez sentido pela morte de Lucas, naquele ano ele me deu algo bem especial... que acabou ficando jogado no armário por tanto tempo.
Sim, no armário. As páginas dos livros que escrevi, o computador velho que me recusei a vender, álbuns de fotos que guardavam tantas memórias. Tudo sempre esteve nesse armário esquecido que há anos não abria senão para pegar roupas.
Segurei o papel e o li. Era um curto bilhete. Havia muitas palavras, mas estavam estranhamente borradas. Não conseguia ler. A minha mente, porém, disse:
Somos mais profundos e com uma alma mais rica do que acreditamos. A semente da mudança necessária já repousa dentro do nosso ser.
Ainda assim, tudo foi o suficiente para que meus olhos se transbordassem de lágrimas e tornasse a chorar. Já tive tudo isso. Um mundo tão vasto, de tantas memórias, interesses e vontades...
— Obrigado, pai, mãe, Lucas...
Trouxe a espada para perto dos meus lábios e a beijei, como se tentasse dar algum carinho de volta a eles.
Retirei-a gentilmente e a pus de volta ao suporte de madeira na mesa. Fechei os olhos e fiz uma oração silenciosa.
Quando os abri de novo, eu encarava um lugar completamente diferente. Era um cômodo de pedra, como se esculpido dentro de uma caverna. A cama em que deitava era larga e bem-acolchoada, embora o teto não estivesse tão longe de mim. Uma lamparina ao centro do teto iluminava todo o local.
Sentei-me na cama e observei melhor onde estava. Com tapetes marrons grossos e criados com alguns livros coloridos, não parecia com nenhum lugar em que já estive. Ainda estava sonhando?
Belisquei-me, e senti toda a dor. Pareceu-me bem real. Espreguicei-me com bocejo súbito que tomou minha garganta, e acabei estalando a coluna por acidente. Tal estalo, contudo, de tão realista que foi, me fez ter certeza de que não mais sonhava. Consegui sair da minha própria mente.
Mas agora surgia outro grande problema:
“Onde estou?...”