O Meu Caminho Brasileira

Autor(a): Rafael AS

Revisão: Rafael-AS


Volume 1

Capítulo 18: Dom

— Por favor, sinta-se à vontade — disse Tokewater, sentando-se na cadeira oposta a mim.

O problema é como eu me sentiria à vontade sendo interrogado por alguém que me destruiria ainda mais facilmente que Cyle...

Suprimi minha vontade de suspirar e bebi o chá que ele me oferecera, enquanto estávamos em uma das mesas da biblioteca ainda vazia. O líquido quente de cor roxa exalou um sabor surpreendentemente doce. E bom. Ok, talvez esse homem não fosse má pessoa.

Fitei seus olhos, mas não consegui ler sua face. Era como uma parede de pedra impenetrável e inexpressível; rígida.

— Certo...

— ...Você era próximo da Maria, não era?

Meu peito se apertou. Queria que ela pudesse ao menos ter visto os pais orgulhosos antes de morrer...

Diga que sim, pediu-me minha mente.

— Sim... — Minha entonação era verdadeiramente triste. Ela não merecia morrer.

— É... Difícil. — Ele suspirou. — A Academia é segura. Segura até demais. A última vez que ocorreu algo perigoso foi há trinta anos. E só aconteceu por causa da atitude de alguns estudantes, que invocaram o monstro... — Seus olhos fitaram os meus com seriedade e gravidade, como se estivesse disposto a arrancar a verdade de mim.

— N-não fiz nada assim. — Engoli em seco, nervoso. Pensando melhor, Flamel poderia ter feito isso... Pode ser como vim parar no corpo dele. Uma invocação de um ser de outro mundo. Ou várias invocações, incluindo daquele monstro. Se for isso mesmo, estarei em sérios apuros. Merda...

— E Maria? — Sua voz continuava grave e assertiva.

— Não sei. Mas... — Meus olhos miraram o relógio ensanguentado no balcão. — Não acredito que ela tenha qualquer envolvimento com isso — disse com convicção.

— Como pode ter certeza? As pessoas podem esconder coisas de nós por anos.

— ... — Encarei-o, face a face, com a mesma robustez e seriedade. Por um instante, várias imagens passaram pelos meus olhos. Círculos de invocação; monstros saindo deles; livros grossos de capas negras e letras roxas ou vermelhas... — Se ela tivesse invocado o monstro, achariam alguma runa ou livro no quarto dela. Ou permaneceria alguma mana estranha no ar. Mas nada. Vocês não encontraram nada, não é?

Com essas palavras tentava reproduzir as ideias que invadiam a minha mente com tal vivacidade, nitidez e intensidade que me deixavam atordoado; no entanto, me mantive firme, sem vacilar. Era o meu destino que estava em jogo.

Quando saí desse vislumbre, os olhos de Tokewater estavam surpresos. A expressão carrancuda se abriu, seus lábios semiabertos sem saber o que dizer.

— Certo. Desculpa, Flamel. Não faz sentido vocês terem qualquer envolvimento, e a criatura não foi invocada do quarto de nenhum de vocês. É só uma falha enorme da segurança da Academia que pode colocar toda nossa fama e ambição em ruínas. — Ele suspirou.

...Merda. A situação era longe de ser boa, mesmo com o monstro morto. Seria fácil colocarem a culpa em mim para não manchar a reputação. Até inconscientemente seria fácil fazerem isso, projetando em mim o medo e a insegurança que sentiam sobre a Academia...

O minuto de silêncio se estendeu enquanto o robusto homem tomava um gole de seu chá. De olhos fechados, pareceu considerar palavra por palavra. Não era um homem só valente ou robusto, mas inteligente e astuto. Perigoso.

Colocou a xícara de volta à mesa e me fitou com olhos mais relaxados, a testa se descontraindo junto de um suspiro.

— Novamente, desculpas pela abordagem ríspida. — Ele abaixou a cabeça. — Não era minha intenção, mas, assim que te vi, não pude notar algo muito estranho.

— Algo muito estranho?

— Sim. A sua aura mudou.

Aura? Isso é algo que eu deveria saber?

— O que isso significa? — falei.

Subitamente a expressão carrancuda foi quebrada por uma estrondeante risada que pareceu vibrar as paredes da biblioteca. Bateu em sua perna com força e me encarou com olhos repletos de diversão e curiosidade.

— Esqueceu do meu dom?

— Dom?

Ele riu novamente, mas dessa vez seu semblante risonho terminou com uma encarada séria e mortal.

— Sim. Dom. Você esqueceu que todos nesse mundo possuem um dom? Sabia que tinha algo de errado com você...

— Do que está falando?! — Senti meu sangue congelar e o corpo estremecer. Dom? O que é isso? Nunca ouvi ou li sobre isso aqui, é algo tão importante assim?

— Posso tocar sua cabeça?

— P-pode.

Tokewater se levantou e lentamente posicionou a mão sobre minha cabeça. O que ele está-

Um atordoo tomou minha mente em um sopro. Embora visse apenas a escuridão de meus olhos fechados, sentia como se a biblioteca rodasse ao meu redor em uma velocidade absurda e ridícula.

— Você é Flamel? — Sua voz era forte e bruta.

A pergunta fez meu mundo se desabar; era o fim, não havia o que pudesse ser feito; Tokewater leria minha mente, veria que não sou Flamel, que sou Michael, que vim da Terra, que...

...Engoli em seco com desgosto. Refugiei-me no fundo do meu ser, em busca de um abrigo. Mas, quando mergulhei em mim, não encontrei refúgio, mas o gérmen de uma dúvida silenciada, que parecia sempre estar lá, mas que nunca lhe dei ouvidos:

Sou mesmo Michael?

O peso desse questionamento fez meu coração sangrar, dilacerado. Meus pais realmente existem? Estão lá? Aguardam-me na Terra? E essas emoções e memórias do Flamel? O que é tudo isso? Será que sou Flamel que apenas acordou sem suas memórias e com um sonho louco? Por que Flamel era tão parecido comigo? Será que realmente sou eu?...

— E-eu... Não sei... — falei-lhe. Não era uma mentira, mas também uma verdade muito limitada; esperei que fosse o suficiente para o feitiço que ele produzia em minha mente.

— ...

A mão de Tokewater saiu da minha cabeça, mas o mundo continuou girando, se desacelerando em ritmo perturbadoramente lento.

Ouvi o homem sentando-se na cadeira e puxando-a para frente.

— Como isso foi acontecer? — Sua voz não continha mais a seriedade, gravidade ou mesmo leveza de antes. Era oca. Vazia. Não é como se fosse impessoal, mas... incapaz de conseguir se expressar.

— Um dia acordei sem memórias. — Meu coração disparava em meu peito. Era algo que me segurei tanto para não contar para ninguém, para manter comigo mesmo... E estou falando isso para alguém que poderia em muito me prejudicar. — Não sei se realmente sou Flamel.

— ... — Tokewater segurou minha mão com gentileza. Quando abri meus olhos, vi que os dele fitavam os meus com tristeza e preocupação. — Você era o melhor aluno que tínhamos, junto da Aithne. Ah... Lembro-me de quando chegou aqui no primeiro dia de aula, já pegando três livros gigantes logo de cara, e os devolvendo nem dois dias depois. Você devorou essa biblioteca. — Ele riu e voltou a atenção para mim; era óbvio a amargura que sentia.

— Eu... Li tudo isso? — Eram tantas estantes. Não importava para onde olhasse, mais e mais livros se revelavam.

— Claro que não tudo. Mas muita coisa. Ainda mais que a Aithne. Sempre me perguntei como você lia tanto... Acho que era seu dom.

De novo aquele negócio de “dom”. Encarei-o em silêncio. Dessa vez ele percebeu.

— Ah. Certo. Esqueci que você não sabe o que é dom. Flamel... — Ele soltou minha mão. — Durante nossa vida, principalmente na infância ou adolescência, quando nossa mente ainda é muito sensível e incapaz de lidar com emoções fortes e contraditórias, sofrimentos e dores nos marcam profundamente. Durante esses momentos de tormento, há algo que desejamos ardentemente fazer ou mudar.

— Uma necessidade para conseguir fugir daquele sofrimento?

— Isso. Ou para solucioná-lo. Vamos supor que a mãe de uma criança é assassinada. Para algumas crianças, isso poderia provocar a dor repentina de ver a mãe morta, que as leva a querer revivê-la; para outras, a maior dor seria se verem sozinhas, fazendo-as desejarem mais consolo; ainda haveria aquelas cuja impressão mais forte era a do assassino, e desejarão vingança ou justiça.

— São muitas formas diferentes que podemos reagir às mesmas situações, não é? — disse eu, acompanhando o raciocínio.

— Isso mesmo. São nesses momentos de maior dor e desespero que desejamos ardentemente uma coisa, e é difícil tirar da alma esse desejo, mesmo posteriormente.

— Certo. É muito possível que algo do tipo aconteça. Mas onde quer chegar com tudo isso?

— Pois é. Ainda não se sabe bem o porquê, mas essas vontades gritantes despertam nas pessoas um dom para torná-las realidade. A Guinevere, por exemplo, é conhecida pelo seu dom da cura, manifestado pelo elemento de água. Ao perder o irmão em seus braços, aquilo que mais desejava era ter sido capaz de curá-lo. Então se desenvolveu esse dom, embora não tenha conseguido salvar o irmão.

— A Guinevere passou por isso?... — Era como eu. Um pouco diferente, mas pensar que aquela garota com sorrisos tímidos vivenciou uma tragédia dessas... Hoje ela pode curar a todos, e ver neles um reflexo do irmão curado que mais desejava. Difícil...

— Ela é forte. Bem forte. Sua sala tem alguns alunos excelentes. Mas não vai me perguntar sobre meu dom?

Ri um pouco disso.

— Certo. E o seu dom, sr. Tokewater?

— Muito obrigado pela curiosidade genuína. O meu dom é ver a cor do dom das pessoas através de uma aura. Essa cor não é universal, mas depende muito de quais sentimentos da pessoa estão conectados àquele dom, e da habilidade em si.

Acenei positivamente com a cabeça. Era um mundo fascinante... Então os maiores traumas das nossas vidas geram desejos que se transformam em um dom para os concretizar? E até se duas pessoas tiverem desejos idênticos, ainda o dom se manifestaria de forma diferente; por exemplo, para o mesmo desejo ardente de se proteger, uma pessoa pode desenvolver força física, influência mental nos outros, agilidade, aptidão com magia...

Que coisa complexa, porém interessante.

— Mas cuidado — continuou ele. — As pessoas mudam e conseguem criar novos significados para o passado. A raiva que está conectada com um dom pode se transmutar para o desejo de defender, de usar a força para o bem, ou ainda para a rebeldia... Com isso, o dom da pessoa evolui, mas continua capaz de usá-lo da mesma forma como antes, se quiser. Esse crescimento do dom é chamado de transcendência.

— Transcendência...

— A cor da aura do dom muda com ele. Porém, no seu caso... — A testa dele franziu. — A cor mudou radicalmente, sem transição. Era um azul índigo. Agora, um violeta mais intenso, meio roxo... Só que o azul índigo ainda está te circunscrevendo. É como se as duas partes dentro de si estivessem simultaneamente vivas, mas é impossível, porque o dom é um só. Mas se isso estiver certo... Então você tem dois dons. — Ele suspirou e bebeu mais do chá.

Dois dons... Não pude deixar de sorrir. Era uma possibilidade maravilhosa.

— O que essas cores significam? — Encarei-o de novo.

— Não sei. Nunca dá para saber o que é a cor de um dom sem investigar o que as coisas significam para a pessoa. Vermelho pode ser um dom em magia de fogo, e aí vai aprender feitiços de fogo facilmente... ter muita mana elemental de fogo... ou ser capaz de controlar as chamas livremente, sem feitiçaria... Porém, também pode estar ligada à raiva, à brutalidade, a dons de ataque em geral, ou tantas outras coisas.

Suspirei fundo, perdido nos pensamentos. Não tem como eu saber quais são meus dons se as cores forem tão relativas assim de pessoa para pessoa.

— O Flamel... Eu... Já te contei qual era meu dom? — falei.

— Não.

— É possível descobrir?

— Só experimentando e vivendo.

— O seu dom é útil para alguma coisa?

— Cuidado com o que diz. — Ele riu, e, por um instante, senti medo do que uma fúria dele poderia fazer comigo. — Mas sim. Essas cores me deixam vagamente saber o dom, e principalmente a guiar as pessoas durante a transcendência. Se eu fosse dar um chute, diria que o azul índigo está ligado à sua inteligência, e o violeta escuro... a alguma coisa introspectiva. Intuição? Magia da alma? Comunicação espiritual?

— Magia da alma? Comunicação espiritual?

— Sim. Magias que afetam a alma, o espírito do alvo. E comunicação espiritual como habilidade de se comunicar com os espíritos que vagam pelo mundo, mas que não possuem energia o suficiente para se manifestar ou interagir com a realidade física.

Tudo isso... Era muita coisa. Meu cérebro entendia tudo perfeitamente, mas os impactos emocionais de ter que aceitar uma realidade dessa dilaceravam meu ego da Terra. Cada afirmação entrava em conflito com tudo que vivi até então.

Ok... Pelo menos a inteligência é algo garantido, né?

— Poderia ser dom em magia de água o azul índigo?

— Você é horrível com água.

— Certo...

Ok. Pode ser inteligência. Faz sentido, pois agora consigo ler ao menos cinco vezes mais rápido do que na Terra, e com ainda mais entendimento. Entretanto, o que será o roxo? Intuição? Parece ser verdade. Entretanto, há pouco conversei com Maria, então algo espiritual não é descartável...

Roxo... Violeta... O que exatamente significa isso? Espera, Violeta?

Os olhos da Violette brilhando vieram à minha mente.

— Você sabe qual é o dom da Violette?

— Não. Dons são coisas que normalmente os magos mantêm em segredo. Só a Guinevere revelou seu dom porque precisava de permissão para auxiliar na enfermaria, bem como para ser pupila da Hayek.

— Pupila da Hayek? Pensei que fosse apenas uma professora comum.

— Não. — Ele deu outra risada estrondosa. — Não, não. Ela foi uma das principais responsáveis pelas runas de proteção da Academia. Não sei se você já viu, mas, por exemplo, só não neva aqui dentro porque ela arranjou um jeito de criar uma runa com esse feito sem entrar em interferência com outras runas do local.

— Interferência de runas... Poderia esse ser o motivo pela qual a Academia foi invadida?

— ... — Tokewater desviou o olhar e caiu em um pensamento profundo. — Sim, é uma possibilidade, mas pequena.

Minha coluna se estremeceu em um arrepio pesado ao ouvir aquilo. A hipótese de interferência nas runas não foi negada... Se as runas de proteção são o que afasta os monstros da Academia, e se há uma interferência destrutiva entre essas runas, então estamos todos correndo o risco de sermos mortos a qualquer instante...

— Mas estamos investigando bastante o caso. Pode ficar tranquilo — asseverou ele.

Tranquilo... Sorri. Ele diz isso para alguém que quase foi morto para aquele monstro, para alguém que passou por uma violência tão grande que teve suprimir as próprias memórias para ser capaz de acordar são?

Que merda é ficar tranquilo? Ele me diz isso depois de eu ter quase perdido a porra da vida? Depois de ter sido torturado, quase ter perdido os dois pés, quase ter visto a Aithne morrer na minha frente?

Ha. Hahaha. Não sei nem mais se sou a porcaria do Michael. Flamel, Michael, Flamel, Michael... Que se dane.

Coloquei a xícara vazia na mesa e me levantei.

— Ainda tenho algumas tarefas para terminar para amanhã. Vou ir antes que fique muito tarde. — Segurei dentro de mim toda a inquietação.

— Sem problemas. — Ele deu uns tapinhas no meu ombro, se levantou e recolheu as xícaras para o balcão. — Espero que fique bem, Flamel.

Ficar bem... Tudo, tudo que me esforcei tanto para construir e consertar em mim ia por água abaixo. Nem sabia mais se sou Michael. Que prova tenho de que sou Michael e de que tudo não é uma ilusão?

— Obrigado. Tenha um bom dia.

Saí de lá com passos rápidos mas esguios. Atirei-me na praça, que já se encontrava bem menos cheia. Infiltrei-me entre os demais e segui rumo ao dormitório.

Não olhei no rosto de ninguém. Não me interessava. Caminhei por entre os corredores e cheguei à maldita porta do meu quarto. Abri-a e a empurrei com força, fazendo-a chocar contra a parede.

Entrei no quarto escuro. Foda-se se há alguma coisa me espreitando. Foda-se se a janela vai bater de novo ou se a porta do banheiro vai tremer. Já me lembrava dessas coisas, e pouco me importava se morresse agora.

Por todo lado que observava, tudo estava arrumado. A bagunça que deixei o quarto havia sido organizada. Alguém esteve aqui. Talvez tenham investigado aqui e até revistado o quarto, já que não se preocuparam em deixar do jeito que estava. Só que já não me importava mais, até-

O buraco na parede. Meus olhos capturaram aquele buraco que cravei com a adaga. Aproximei-me dele, atraído por uma força misteriosa. Era um simples buraco, mas era vívida a memória de esfaquear a parede com tamanha raiva e desespero. Naquele dia sentia falta dos meus pais, da minha família. Fui fraco e vingativo contra o mundo, contra a parede que nada tem a ver com isso.

Esse foi o resultado da minha raiva. Dias e noites desperdiçadas nesse quarto, em que poderia ter lido e aprendido, ter usado mais desse dom, ou pelo menos ter conversado com alguém. Nada disso fiz. Desperdicei minha vida. E a falta de preparo quase me levou à morte em face daquele monstro. Se não fosse a minha intuição...

Agarrei o tecido da camisa que estava no peito. É isso que a fúria me dá: a destruição do que nem consegui construir. Vou me deixar assim de novo? Vou jogar fora tudo que construí, mesmo que seja pouco? Posso até dizer que já perdi tudo, mas realmente perdi tudo?

Senti meu coração. Ele já não era mais o mesmo. Já me perdoei. Já descobri em mim dons, possibilidades, talentos.

Mas e meus pais? Sofro tanto por mera miragem, por mera alucinação?

Aquele buraco... O fato de uma faca conseguir cortar a parede, só por causa da pequena espessura de sua lâmina...

— Pressão é igual à força dividida pela área. A faca crava uma superfície tão rígida porque a força aplicada em um só ponto consegue perfurar a estrutura química do tijolo, rompendo-a. O material se quebra. Pressão é igual à força dividida pela área...

Todo esse conhecimento foi adquirido na escola em que estudava na Terra. Lembro-me do meu professor escrevendo com a caneta vermelha no quadro. A lembrança era vívida e real demais.

Naquele momento, entendi que aquela fórmula não foi criada por sonho. É real. Explica a realidade perfeitamente. Era improvável que nesse mundo de magia saibam o que são átomos e ligações químicas.

Meus pais existem. Eu existo. Estou aqui.

Sentei-me na cama e suspirei profundamente. Está bem. Está tudo bem. Mas...

Um gosto amargo cobriu a minha boca. Em um piscar de olhos, tudo fugiu de mim. Minha família, meus pais, amigos, jogos... O que me sobrou? Pressão é igual à força dividida pela área. A única coisa que me sobrou foi o conhecimento — e ele é a única prova de que vivi.

— Haha... Hahahaha...

Em um mundo de caos e instabilidade, a única coisa que nunca me abandonaria até a morte é o que sei. É o que aprendi.

Talvez parecesse bobagem se contasse isso para alguém. Mas a forma como vejo o mundo, como vejo a mim mesmo... Se consigo perceber as complexidades da vida, da lógica, das memórias, dos átomos e das ligações químicas, tudo é por causa do conhecimento. O que sei impacta profundamente em como ajo no mundo, e no quanto posso prever complicações em mim e no mundo para minhas ações.

Sim, o conhecimento serve como luz que ilumina a escuridão do mundo e de mim e me possibilita enxergar mais longe, prever melhor. Mas que conhecimento adquiri aqui? Quando tentei entender esse mundo, para ao menos me planejar um pouco, ou saber melhor com que estou lidando?

Peguei a mochila e me levantei. O quarto sombrio ao meu redor voltava a me dar medo. Não quero mais morrer. Quero conhecer mais. Quero me aventurar pelo conhecimento desse mundo do qual estive fugindo.

Saí do quarto, atravessei os corredores até sair do dormitório e caminhei pela praça. Lá estava eu, no meio de todos, mais uma vez. Já era a terceira vez no dia, mas todas experiências foram tão diferentes...

Meus pés me levaram até a biblioteca de volta. Ainda não estava muito certo disso. Agia muito por impulsão. Entretanto, sem base, sem um passado, o que pode me ancorar? Talvez seja me jogando no mundo que construa algo meu.

Construir...

Pouco construí da minha vida aqui. Sempre me deixei levar ignorante pelo fluxo. Mas dessa vez estudarei e adquirirei conhecimento. Aprenderei finalmente sobre o que é esse mundo e quais minhas possibilidades.

Com os livros, traçarei luz sobre a escuridão da minha existência nesse mundo.

Cheio de sonhos e esperanças, entrei na biblioteca, incapaz de prever como aquela pequena decisão mudaria o rumo da minha vida.

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