O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 17: Mudanças

Dois dias se passaram desde que conheci Evelyn, e nossas conversas se tornaram mais frequentes. Meus dias começavam com o treinamento árduo de Helen, seguidos por uma sessão entediante de escrita e leitura feitos por Amélia, mas eu tinha algum tempo livre no final da tarde para conversar com minha companheira humana. Evelyn se mostrou ser alguém surpreendentemente falante, talvez por eu ser a primeira pessoa com quem ela conversa há meses. 

No terceiro dia, Helen e eu decidimos avançar um pouco no meu aprendizado. Ao invés de apenas memorizar as posturas no meu estilo de luta, eu deveria aperfeiçoar os movimentos em conjunto com a minha mana. Tecnicamente, meus poderes são ativados de acordo com o número de impactos recebidos, mas nem mesmo eu os compreendo perfeitamente. Além disso, refinar a circulação de mana é essencial para não entrar em exaustão rapidamente. 

A espada de mithril em minhas mãos tremia incontrolavelmente, e até mesmo respirar se tornou difícil à medida em que o treinamento prosseguia. Posturas, movimentos e até mesmo os reflexos foram treinados até o limite, mas mesmo assim parecia não ser o bastante. À minha frente, Helen observava cada movimento meu com a mesma expressão vazia.

— Controle a respiração, Erith. A mana no seu corpo é restaurada com isso, mas é ineficaz se você continuar assim.

— Falar é mais fácil do que fazer, sabia? — Respondi de forma ofegante. Fechei meus olhos a fim de me distanciar de qualquer interrupção exterior para recuperar o ritmo. Com o tempo, minha respiração ficou menos frenética e desesperada, e eu consigo sentir minha mana se reabastecer pouco a pouco. Mesmo assim, no momento em que eu começar a me mover novamente, tenho certeza de que toda a concentração será desfeita. 

Helen, entretanto, não fez nenhum movimento. Pelo contrário, ela parece mais interessada em observar a forma em que a minha mana se recuperava com o tempo. Conforme os minutos se passaram e minha fadiga diminui, ajustei meu corpo para retornar ao combate. Nossa distância era de dez metros, considerável se eu estivesse contra um oponente comum. Helen, entretanto, é capaz de reduzir essa distância em menos de um segundo apenas com força física.

Ela é, sem sombra de dúvidas, alguém extremamente difícil de acompanhar.

Assim como antes, não demorou muito para que Helen tomasse a iniciativa. Um golpe na diagonal por pouco não atingiu o meu peito, mas felizmente minha esquiva funcionou a tempo. Nossa dança continuou por minutos antes que eu percebesse um princípio de uma abertura. 

Em todas as lutas que travei contra Helen, os movimentos eram sempre os mesmos. Seus golpes são ridiculamente poderosos, mas os movimentos por trás deles tinham o mesmo padrão de movimento. Primeiro pela diagonal, depois pelos flancos, até finalmente quebrar a defesa adversária com um chute frontal direito no torso. Em todas essas lutas, nunca consegui terminar de pé após o terceiro ataque.

Mas não dessa vez, não mais. Quando o segundo golpe começou, senti toda a mana do meu corpo explodir de uma só vez. Minha espada cintilou com sua luz azul de forma selvagem, mas não aleatória. No momento em que a figura de Helen reapareceu em meu ponto cego, joguei o meu corpo para frente em um movimento puramente instintivo. Assim que me virei para trás, lá estava ela, um pouco surpresa pela minha atitude atípica. 

Mas essa surpresa não a impediu de avançar novamente, e neste momento eu rezei aos deuses. Se o próximo movimento não for o que penso, minha cara vai voltar ao chão em um instante. 

Helen encurtou a distância entre nós dois em uma finta rápida, e ajustou o corpo para trás a fim de conseguir um equilíbrio. No momento em que sua perna levantou ligeiramente, foi como se o tempo estivesse estático. Eu sabia, naquele momento, que o meu palpite estava certo. Meu corpo girou para o lado imediatamente, e toda a mana em volta de mim foi concentrada em um único ponto. Quanto maior a densidade de mana acumulada, maior o impacto da magia. Mesmo que a densidade da minha mana não esteja no máximo, deve ser o suficiente. 

Não houve tempo de reação, mesmo para alguém como Helen. No entanto, eu pude sentir seu olhar me acompanhar enquanto minha espada girou e cortou o vento. Toda essa situação parece ter durado menos de um segundo, mas foi o suficiente para a minha espada carregada de mana estar posicionada em seu pescoço. 

— Você tem razão. É muito mais fácil quando se respira direito. — Comentei enquanto meus lábios subiam involuntariamente em um sorriso bobo. Mesmo que tudo isso não passe de uma pequena vitória, é mais do que tudo o que tive nos últimos  meses. 

O primeiro passo foi concluído. Depois de aprender a controlar a liberação de mana de forma consciente, preciso aprender a expandi-la. Se pensarmos na mana como um objeto acumulativo, é possível aprimorar as reservas naturais desse objeto. Especificamente no meu caso, minha reserva de mana é considerada baixa demais para uma luta em longo prazo, então praticar a absorção e expansão é essencial se eu ainda quero continuar vivo.

— Ótimo. Vamos encerrar por hoje. — Helen guardou sua espada e ajudou levemente suas roupas, o sinal de que o treinamento havia terminado. Assim que pensei em fazer o mesmo, uma onda de energia me arremessou para trás instantaneamente. Tudo o que eu senti foi o mundo girar e se inverter, mas Helen permanecia intacta à minha frente, desta vez com um leve esboço de um sorriso.

— O que foi isso agora?!

— Não se ache demais, novato. Só vai atrapalhar o seu desenvolvimento. — Minha companheira de treino falou levemente antes de oferecer sua mão para que eu me colocasse de pé. Mesmo que o que ela disse seja verdade, não pude deixar de me sentir estranho, quase que decepcionado.

— O que é isso? Logo você com essa atitude infantil?

Ao invés de responder, Helen preferiu me ajudar a levantar de forma brusca. Em todo esse tempo em que eu convivo com ela, consigo perceber vagamente quando ela está feliz. Mesmo que não haja nenhuma mudança em sua expressão, ela demonstra a felicidade nas pequenas ações.

O motivo para ela estar feliz, no entanto, permanece um mistério.

O refeitório continua praticamente vazio nestes últimos dias, principalmente com a maioria dos membros da Zero nas linhas de batalha. Sinceramente, estou curioso com o rumo das batalhas, mas também quero me manter longe de problemas por enquanto. Meu foco principal é em melhorar a minha força, o suficiente para garantir a minha sobrevivência até o fim da guerra. Tem muitas coisas que ameaçam a minha vida nesse momento, e me livrar delas deve ser a prioridade.

Custe o que custar.

Eu estou sentado na mesma mesa de madeira velha, comendo a mesma lavagem que eles insinuam ser o almoço no mesmo horário de sempre. Mesmo que pareça monótono, momentos como esse se provam ser o mais tranquilo do meu dia. Depois daqui, outra rodada de treinamento e estudos que podem enlouquecer até o mais devotado monge. Ao meu lado, Evelyn comia o suficiente para alimentar uma família de aldeões inteira de uma vez. Até mesmo para mim, um ladrão da pior espécie, seu comportamento era antiquado.

— Você não tem modos? — Resmunguei com ela com a voz baixa.

Evelyn parou por um momento, apenas para me observar em silêncio. Seus olhos, do mais intenso violeta, eram realmente hipnotizantes de certo modo. Havia algo neles que me cativava de forma peculiar, como uma armadilha. Em nossas conversas, ela sempre agia falsamente em alguns momentos, especialmente os que envolvem etiqueta. 

De certa forma, Evelyn tem a sua própria máscara, assim como a que eu uso fora destes muros. 

— O que quer dizer? Acha que algum miserável deste lugar se importa? — Sua resposta me deixa ainda mais desconfortável, mas evito responder de volta. 

Ao notar o meu silêncio, Evelyn ergueu levemente as sobrancelhas, mas não disse nada. Após alguns minutos em completo silêncio, ela finalmente parece ter terminado de comer, mas ainda parecia inquieta. Seus dedos batiam levemente na mesa em um intervalo de tempo idêntico, e seu rosto parecia carregado por uma nova preocupação.

— Ei. — Finalmente, Evelyn interrompeu o silêncio com uma voz baixa, mas forte. 

— O que foi?

— Você está aqui a pouco tempo, não é? — Sua voz parecia um pouco falha, com uma dificuldade inesperada para formular frases. — Como estão as coisas na capital imperial?

Agora que penso a respeito, Evelyn não tem notícias do império desde que chegou aqui. Ela nunca mencionou nenhum parente além de seu irmão, mas acredito que ainda haja algum assunto pendente para ela no continente humano. Além disso, depois do que o imperador fez com o que restou de sua família, a saudade que seu coração sente pode estar além da minha compreensão.

— Você deve saber como as notícias chegam até o povo comum. Das coisas que eu ouvi, a mais relevante foi saber que a família real passou por problemas recentemente. 

Seus olhos brilharam ainda mais depois disso, o que levantou um pouco as minhas suspeitas. Sem mudar minha expressão, decidi prestar mais atenção em seu comportamento.

— Disseram que quase toda a família real morreu por conta de uma doença não revelada. O império decretou luto geral por um ano depois disso, e um grande funeral foi feito. 

— Eles te disseram qual foi a doença?

— Provavelmente malária por conta da epidemia que nos assombrou nos últimos tempos, mas nenhum representante da capital viajou até Kingsback enquanto eu estava lá para confirmar alguma coisa. 

Surpreendentemente, os ombros de Evelyn relaxaram. Talvez por perceber minhas suspeitas, ela tossiu levemente e se levantou. Suas mãos estavam inquietas, o suficiente para expor o seu nervosismo.

— Bem, isso é o acerto de contas dos deuses por todo o mal que aquele homem causou.

— Um jeito estranho de acertar as contas, não acha? Atingir pessoas inocentes. — Respondi imediatamente, atento a cada expressão que Evelyn demonstrava. 

— Eu sinceramente não poderia me importar menos, Erith. — Sua voz era fria, mas acompanhada de um rancor extremo. — Eu vou para o meu quarto, se é que aquela cela nojenta pode se chamar assim. 

Seus passos rápidos ressoavam pelo refeitório vazio, e eu sabia — quase que instintivamente — que se deixasse ela sair talvez nunca mais teria outra chance de descobrir alguma coisa. Assim que me levantei de meu assento e pensei em persegui-la, os passos de Evelyn cessaram. 

Com o corpo levemente apoiado de forma relaxada à parede do refeitório, uma mulher nos observava atentamente. Seu cabelo negro era volumoso e vibrante, e seu corpo bem definido a deixava com uma aparência atlética e peculiar. Entretanto, o destaque era o seu rosto, em que um grande tapa olho cobria um de seus olhos dourados. 

Helen não disse nada, muito menos se moveu. Enquanto nossos olhares se focaram nela, tudo o que recebemos em troca foi a habitual indiferença. Entretanto, no tempo em que convivo com ela, um leve brilho sinistro em seu olhar foi o suficiente para que eu soubesse o que ela sentia.

“Ok, ela está realmente brava por algum motivo.”

Evelyn, completamente alheia aos sentimentos de Helen, deixou a mana fluir pelo seu corpo em uma tentativa de assegurar seu domínio. Com a pressão de sua mana no ambiente, uma leve brisa ressoou pelo refeitório e foi responsável por derrubar alguns objetos menos valiosos, como canecas e pratos apoiados sobre as grandes mesas de madeira. 

Helen, entretanto, não parecia nem um pouco afetada pela tentativa de intimidação de Evelyn. Pelo contrário, ela pode até ter achado tal situação divertida, uma vez que ela se deslocou da parede e lentamente caminhou em nossa direção. A cada passo, a pressão que Evelyn exercia aumentava, mas não o bastante para incomodar Helen. 

Quando a distância entre nós três se transformou em dois metros, Helen finalmente parou. Um leve traço de ansiedade podia ser visto no rosto de Evelyn, mas ela não se atreveu a dissipar sua mana.

— Eu estou… interrompendo vocês? — Finalmente, a voz da minha parceira de treino reverberou em meus ouvidos.Seu tom era levemente sarcástico, um contraste enorme considerando a apatia de sua expressão. 

— O que você quer, loba? — Evelyn retrucou com ferocidade, em um tom que se assemelhava bastante a um rosnado. Mesmo que ela esteja aqui a mais tempo do que eu, não parece se sentir à vontade com qualquer membro da Zero. 

Eu me pergunto o que Amélia planeja fazer com alguém assim.

— Nada demais, apenas vim avisar que nosso estimados companheiros voltaram de viajem. — Helen deu de ombros e se virou para a saída, como se não se importasse nem um pouco com a hostilidade de Evelyn. — Aliás Erith, eu tenho novas idéias de treino para praticar, já que você mencionou que as coisas ficaram mais fáceis. Devo admitir que, mesmo para mim, elas parecem bem criativas.

Ao deixar estes comentários para trás, Helen não demorou muito para sair do refeitório. Sinceramente, eu não consigo dizer nem mesmo a quanto tempo ela estava aqui ou o quanto ela ouviu da nossa conversa, mas de uma coisa eu não tenho dúvida.

Eu estou ferrado.

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