O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 15: Assim como eu

As ruas fervorosas da capital Fenrir são sempre difíceis de se locomover. Em todo o lugar, diversas barracas e tendas enfeitavam as ruas junto aos seus proprietários comerciantes, todos eles tão empolgados com a quantidade de clientes em potencial que mal conseguiam esconder o sorriso malicioso. Para a minha surpresa, não haviam apenas lycans aqui, mas outras espécies como os anões ou elfos, algo inimaginável em Ancathen nos dias de hoje. As mais variadas mercadorias são vendidas aqui, várias delas das quais eu nunca ouvi falar. Mesmo que o trânsito excessivo incomode, reunir diversas pessoas em um só lugar também tem suas vantagens. O clima gélido fora dos grandes muros de calcário é incessante, capaz de endurecer os ossos e inebriar os sentidos. As semanas de viagem me deixaram exausto, e o clima irreverente amplificou o meu desejo mais profundo por uma cama quente e uma refeição de verdade, mas o grande acúmulo de pessoas em volta deixou o clima relativamente suportável.  Helen caminhava ao meu lado calmamente, seus rosto apenas observava as agitadas ruas com o habitual desinteresse. Nós dois permanecemos atentos, no entanto, pois as multidões são o ambiente perfeito para roubos ou quaisquer outros crimes.

— Vamos voltar para a prisão agora? — Minha voz saiu um pouco baixa, em parte pela minha irritante dor de garganta, parte pela máscara pesada em meu rosto acabar por dificultar a comunicação.

— Ainda não. A princesa quer um relatório oficial do nosso encontro com os orcs, e isso pode demorar um pouco.

Senti minha testa enrugar involuntariamente, mas evitei de expressar totalmente os meus sentimentos. Lycans podem ouvir muito bem, e qualquer que seja a minha fala pode levar a uma desconfiança das pessoas à nossa volta.

‘Com tantas vozes ao nosso redor o alcance deve ser reduzido, no entanto.’

— Eu sou realmente necessário com o relatório? Foi você quem derrotou eles. 

— Mesmo assim, a princesa quer falar com você também. Ela se preocupa com o seu bem estar e parece irritantemente ansiosa com o seu desenvolvimento. — Senti uma leve carranca surgir no rosto de Helen, como se o fato de Amélia se importar comigo realmente incomodasse ela. 

— E por que isso seria algo ruim?

— Porque, Erith, isso significa que estamos em desvantagem. Significa que a nossa melhor chance é realmente esse plano suicida de se infiltrar no império humano e milagrosamente descobrir uma falha da barreira considerada indestrutível até mesmo pelo monarca dos céus. Amélia está sendo pressionada pelo conselho de guerra, o suficiente para pensar em você como uma oportunidade real de sucesso.

Um sentimento de inquietude acendeu em minha mente, novamente como uma névoa que inebria qualquer lado cauteloso que eu já tive. Desde o começo, nunca houve uma expectativa dela em relação ao sucesso para a minha missão. Eu mesmo já aceitei isso, mas ouvir algo assim da minha treinadora tem o mesmo impacto que se um soco atingisse o meu estômago.

— Eu vou conseguir, quer você acredite ou não. — Senti o sangue ferver em minha mente e meus punhos cerrarem, mas minha voz saiu de forma calma e baixa, uma surpresa até para mim. — Eu preciso conseguir.

— Eu sei que precisa. — Seu olhar repousou nos finos grilhões de metal puro enfeitados com as mais sofisticadas e complexas runas. Um colar simples, sem nenhuma especificação visual ou propriedade rara, apenas um amuleto barato à primeira vista. 

O amuleto barato que me salva diariamente de perder a minha consciência para um demónio vil.

— Se realmente sabe, essa sua atitude de agora não muda em nada. Eu ainda vou atravessar o domo, e você ainda precisa me treinar. Ambos não temos escolha a não ser seguir o destino, então o que te irrita tanto?

Após minha fala, o mundo pareceu congelar instantaneamente. Helen tinha uma expressão surpresa em seu rosto, se é pela firmeza em minha voz ou por se conformar de que eu estou certo, eu não sei dizer. Mas ela apenas permaneceu estática, seus lábios entreabertos pelo espanto repentino.

— Eu… não sei dizer. — Sua voz era fraca, quase confusa. Desde que eu a conheci, Helen se mostrou ser alguém praticamente invencível. À primeira vista, pensei que não havia nada nesse mundo capaz de passar por aquela muralha de força bruta que ela mesmo construiu a partir de um processo além da minha compreensão, mas eu estava errado. Ela é incrivelmente solitária, apática a quase qualquer situação possível e ao mesmo tempo orgulhosa demais para conviver normalmente com as pessoas, como na primeira vez em que eu a vi.

No entanto, se você convive com essa muralha de orgulho por muito tempo — e tiver um dose considerável de paciência — ela logo se demonstra ser algo muito mais especial. Sou péssimo em ler as pessoas e entender os sentimentos de alguém, mas algo me diz que Helen sente uma mudança, mesmo que mínima, em sua percepção de mundo. 

Ela não foi a única, no entanto.

Depois de longos minutos de uma deslocação silenciosa, eu estava novamente a frente do laboratório da princesa lycan. As paredes de madeira e levemente reforçadas com aço o fazem parecer um simples prédio comercial local, algo que passaria batido por qualquer um que estivesse de passagem. 

— Por quanto tempo vai nos deixar aqui fora? — Helen disse ao meu lado, sua voz alta o bastante para causar uma pequena comoção com as pessoas ao nosso redor. No entanto, o evento mais surpreendente foram as ruas nas paredes do laboratório que transpareceram e circulam entre si, todas perfeitamente sincronizadas e simétricas, como em um daqueles grandes “cálculos" que os alquimistas determinam suas vidas inteiras para realizar. A simetria perdurou por mais alguns segundos antes de desaparecer novamente, desta vez com a porta do laboratório levemente aberta.

O cheiro de éter não poderia ser mais familiar para mim, além do som borbulhante dos fluidos preparados pelo grande caldeirão de aço enferrujado no fundo do cômodo. Apesar de estar aqui apenas pela segunda vez, é quase como se me sentisse em casa. O leve odor da poeira no ambiente tinha quase que um efeito calmante no meu corpo, mesmo que em minha volta se encontrem os mais exóticos e mórbidos experimentos que alguém ignorante como eu já vira. Os expressos e desgastados livros se acumulavam em pilhas no ambiente, como pilares elementais que asseguram que o lugar em que eu estou agora tem como único objetivo a absorção de conhecimento.

Amélia está sentada em uma cadeira simples de carvalho velho com as pernas cruzadas, seu sorriso encantador ainda com a capacidade intrigante de me motivar. Seu cabelo dourado continuava lindo e bem cuidado, mas algumas mechas pareciam desreguladas do resto, como algo que foi feito às pressas. Além disso, suas roupas não se pareciam nem um pouco com o elegante traje militar da capital, mas a mesma túnica branca simples com o bordado dourado que todos do esquadrão precisam usar. As calças desgastadas e botas longas de couro me fariam acreditar que a garota na minha frente é uma mercenária ao invés da princesa do reino. Ela segurava um pequeno livro de capa azul em suas mãos, suas páginas relativamente novas e organizadas em comparação aos outros livros do recinto.

— Ainda sem educação, Helen.

— Desculpe, eu a deixei junto ao meu olho esquerdo. 

Amélia suspirou levemente antes de soltar uma risada leve e divertida. Mesmo que cada movimento dela seja repleto de etiqueta e decoro, ela parece se sentir mais à vontade sem as normativas militares. Seus olhos dourados alternam entre Helen e eu lentamente, repletos de curiosidade e expectativa.

— E então, houve algum progresso? 

Finalmente, minhas mãos afrouxaram as amarras, e a grande máscara de lobo desceu sobre o meu rosto. A sensação de vento gélido em minha pele era incômoda a princípio, mas meu corpo inspirou o máximo de ar que conseguiu em uma forma de alívio. 

— Nós eliminamos os orcs. — Helen se adiantou em um passo antes de fazer o menor relatório que eu já vi. Um silêncio estranho percorreu após isso, e Amélia tinha uma expressão meio sorridente e indignada.

— Chama isso de relatório?

— O que mais você quer saber?

Um suspiro pesado saiu da boca da princesa instantaneamente, seu rosto levemente caído com a própria resignação. Ela se levantou de sua cadeira e se dirigiu até a pilha de livros mais próxima, onde cuidadosamente posicionou o livro de capa azul no topo do número pilar de escritos. 

— Para começar: vocês recuperaram o gado roubado? Como estão as condições do vilarejo? E como o nosso mais novo membro se saiu em sua primeira missão?

— … O gado foi perdido quase que completamente com a investida dos monstros, e por conta disso o vilarejo passa por péssimas condições para consumo próprio. O mestre da vila solicitou uma ajuda da coroa, aliás, para abastecer os camponeses neste tempo difícil. — Mesmo que minha garganta estivesse ruim e minha voz rouca, não exitei em responder da melhor maneira possível. — E eu não sou a melhor pessoa para responder, mas eu acho que mandei muito bem. 

— “Mandou muito bem” hein? Estou aliviada em saber disso. — Amélia disse com uma voz doce, mas que julgo carregar também um cansaço extremo. Helen estava certa, ela parece realmente pressionada a procurar uma solução. — Você também teve progresso com as aulas de escrita, mesmo que ainda continue ignorante com a etiqueta. Se tudo correr como o planejado, pode ser que você esteja pronto em alguns meses.

Alguns meses é a minha única estimativa de prazo para a liberdade, ou a minha morte. Não é muita coisa, mas acredito ser a mais precisa que escutei até agora. Mesmo assim, ainda é algo muito impreciso para me animar, então não seria bom baixar a guarda nesse momento. 

— Erith, eu preciso conversar com Helen em particular agora, então você está liberado. Vou pedir aos cozinheiros para preparar algo um pouco mais sofisticado hoje, e acredito que o resto do grupo também já esteja a caminho da capital para comemorar. — A voz de Amélia me tirou de meu estupor diretamente, enquanto Helen se adiantava para perto de um dos  balcões nos fundos do laboratório. 

Assim que me despedi das duas e me adiantei para sair do laboratório, todo o meu corpo relaxou de uma vez. Foi como se uma grande rocha presa em minhas costas tivesse se soltado, e eu finalmente obtive uma chance de descanso. 

No momento em que saí, a porta do laboratório se fechou instantaneamente e as runas apareceram para trancar o local novamente. A máscara estava novamente em meu rosto, mas eu não me importo. Todos os meus pensamentos se dirigiam na mesma direção: Dormir. Minha mente se preocupou única e exclusivamente em raciocinar o tempo máximo de sono que o meu corpo precisa, e o quão necessária uma cama quente era para a minha mente. Por conta disso, cheguei a velha prisão antes que percebesse. 

A grande construção de calcário e pedra não poderiam ser mais revigorantes à minha vista. A cada passo dentro da prisão, maior a intensidade em que a minha mente se animava. Escadas corredores estreitos, e até mesmo guardas não eram nada em minha vista comparados ao momento em que aquela porta de madeira velha e devorada por cupins pode ser vista. É o meu quarto, o único lugar nos dias de hoje que eu posso chamar verdadeiramente de meu, e eu finalmente pude vê-lo de novo.

Assim que minhas mãos tocaram a enferrujada maçaneta e a porta se abriu, foi como se o paraíso entrasse em minha visão. Um cômodo fechado, imundo e mórbido, mas longe do frio e da violência do mundo lá fora. Entretanto, a euforia que eu estava prestes a atingir mal teve a oportunidade de aflorar antes da minha mente congelar de espanto. 

Eu não estou sozinho aqui. Na minha cama de palha improvisada, uma jovem mulher estava deitada de braços abertos confortavelmente. Seu corpo era pequeno, o suficiente para eu quase achar que se trata de uma criança, mas o uniforme da Zero que ela vestia me fez afastar essa possibilidade. Seus lábios estavam entreabertos, e sua respiração leve afastava levemente os fios lisos de seu cabelo preto. O impressionante, entretanto, não era o fato dela estar no meu quarto ou a sua altura relativamente baixa.

Suas orelhas eram curvadas e um pouco redondas, como uma concha marinha. O tipo de característica que a apenas a raça mais odiada deste continente tem, a mesma característica que o meu corpo carrega. 

Ela é uma humana, assim como eu.

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