O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Prólogo: O Soldado e A Criança

Ele tinha uma insígnia no peito, coturnos escuros e uma bomba debaixo do pé. A explosão do artefato o jogou vários metros à frente, seu rosto afundando no lodo ao cair de bruços. Gemeu. Sentia a dor pulsando em sua perna direita. Cobriu a cabeça com ambos os braços, protegendo-se de uma chuva de cascalhos, permanecendo imóvel durante alguns instantes. Um assobio agudo havia invadido seus ouvidos impedindo-o de ouvir qualquer som a seu redor, impedindo-o de perceber o inimigo se aproximando. O cano frio de uma arma pousou sobre sua nuca. Tremia levemente. O atacante duvidava, mas ele não.

O rapaz mordeu o lábio inferior e deslizou violentamente a perna ferida pelo chão. O papocar de um tiro no ar ecoou abafado, engolido pelo assobio em suas orelhas. Outro gemido escapou dentre seus dentes ao sentir o peso do atacante sobre a perna machucada, porém não duvidou. Gritou, mesmo não sendo capaz de ouvir o próprio grito.

Segurando o cano do rifle entre suas mãos lutou contra o oponente que tentara se recompor da queda rapidamente. Arrojando o corpo sobre o do desconhecido virou a arma para o céu antes de atirar novamente. Então, em um movimento rápido, o ferido propiciou uma cabeçada ao agressor. Mais gritos; dentes salpicando o lodo ao redor; um tiro; sangue esguichando em seus uniformes, o dele esverdeado e o do desconhecido azul. A bala apenas roçara a frente do atacante, mas isso fora suficiente. Ofegante, o rapaz segurou o rifle entre ambos, a arma apontada para o desconhecido de azul agora deitado no chão levantando as mãos. Suas madeixas castanhas estavam grudadas a sua testa pelo sangue. Era mais jovem do que ele, não passava dos dezessete anos. O adolescente murmurou alguma coisa, os lábios tingidos de vermelho trêmulos a cada palavra. Nada, o rapaz não ouviu nada. Engoliu em seco e, sem hesitar, com a culatra da arma golpeou a cabeça do inimigo. O garoto ficou inconsciente com apenas um golpe, seus braços caindo estendidos próximos a seu corpo.

Após jogar o rifle para longe de ambos, o rapaz de verde tentou se levantar. Porém, como uma cobra enroscada a sua perna, a dor o puxou de volta para o chão. Ao seu redor, uma vasta planície de lodo acinzentado se estendia em todas as direções fundindo-se com o céu de nuvens de fumaça escura no horizonte. Cheiro de pólvora pairava no ar. O calor líquido do sangue escorria de sua perna ferida levando consigo sua vida. Estava prestes a desmaiar. Podia sentir os tentáculos frios da morte apalpando-o.

Uma pequena nuvem de pó brotou próxima a ele. Olhou para trás. Três silhuetas azuis se aproximavam correndo em sua direção. Uma delas parecia segurar alguma coisa. A bala ricocheteou no chão antes de desaparecer na planície. O rapaz de verde caiu de costas, rolou e afundou os dedos no lodo a sua frente arrastando o corpo. Uma saraivada de balas cortou o ar a suas costas. Pequenos pontos escuros haviam começado a nascer em sua visão. Como moscas pairavam trêmulos no ar, voando rumo ao horizonte, e ele sabia que em breve essas moscas devorariam o mundo.

Então ele viu, perguntando-se logo após como podia não ter visto aquilo antes: árvores de galhos secos cresciam a pouca distância dali, formando um pequeno bosque silencioso.

Apoiando a perna que lhe restava, tensionando a mandíbula com toda sua força, se levantou e correu. Tão rápido quanto sua condição lhe permitia, balas velozes rasgando seu uniforme.

Sentiu o vento soprar contra seu osso enquanto chegou às árvores. Caiu, rodando pelo chão repleto de folhas mortas, desaparecendo entre os troncos do bosque abandonado antes de impactar contra um estranho arbusto de folhagem abundante. A ramagem da planta se partiu sob o peso do soldado, seu corpo atravessando violentamente o arbusto antes de aterrizar de costas do outro lado. Sua cabeça dava voltas. Com dificuldade, abriu os olhos deparando-se com a inacreditável paisagem a sua frente. Já não havia planícies cinzentas, fumaça ou soldados…

Havia apenas um jardim. Uma explosão de cores repleta de flores, árvores e arbustos se estendia até onde a vista alcançava circundada por caminhos de mármore branco serpenteando entre as diferentes plantas em todas as direções. Ou isso conseguia distinguir ele detrás das moscas, agora gigantes, que escureciam sua visão.

E então ele ouviu a voz, o assobio de suas orelhas se desvanecendo a cada palavra.

— As tulipas não estão gostando disso — disse a voz aguda de uma criança.

Um sobressalto percorreu o corpo do jovem soldado.

— Eu — tentou articular ele, desistindo logo em seguida.

— Seu cheiro... Acabou de chegar e já está alaranjando as pétalas delas — insistiu a voz.

O rapaz escudrinhou a crescente escuridão frente a si. Mal conseguia delimitar a pequena figura próxima a ele. Segurava alguma coisa na mão… Uma arma? Não, uma regadeira.

— Vamos acabar com isso antes de você apodrecer alguma…

O rapaz decidiu tentar de novo, empurrando o ar de seus pulmões com a força que lhe restava.

— Fo...ge…

— E então? O quê vai ser? — disse a pequena figura.

— Foge…

— Esse é meu lar. Ninguém foge do seu lar.

O rapaz tossiu, sentindo como lentamente sua consciência começava a abandoná-lo.

— Meu nome... — começou a explicar a criança, suas palavras abafadas pela escuridão. Tão abafadas que o soldado sequer alcançou a entendê-las. — Está me ouvindo? Moço?

Uma fina camada de gelo parecia ter se deitado sobre o rapaz, o frio entumecendo seus sentidos.

— Moço! — espetou a voz com urgência. — Deve me dizer o que quer para que possa ajudar, mas precisa fazer isso antes que…

O jovem tateou com uma mão a escuridão. Ela era mais cálida do que ele esperava. E então ela...o segurou. Como um eco distante a voz insistiu:

— O quê você deseja? O quê você realmente quer?

E com seu último alento o jovem soldado sussurrou:

— Um lar.



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