Volume 1
Capítulo 39: Requintes de Crueldade
Ragnar conjurou o Fogo Fátuo para afastar a escuridão da noite naquele trecho da estrada em que ele, seus amigos e o suspeito se encontravam. A luz esverdeada emanava da lâmina da lança agora apontada contra Matheus, o suspeito capturado por espionar o vilarejo.
A dez passos de distância, os amigos do druida aguardavam ansiosos pelo início do interrogatório. E quando ele estalou os dedos para invocar a serpente companheira, Skiff e Havoc exibiram preocupação em suas feições; enquanto Artic permanecia impassível e Niki ansiava pelo que estaria por vir.
Lady Plissken, a cobra amiga, encarou seu mestre com olhinhos brilhantes.
— Faça-me este favor, abrace este homem malvado em nossa frente — ordenou Ragnar, sorridente por ver a confiança e o deboche do suspeito se desmanchar por um momento.
— O que você está fazendo? — inquiriu o aprisionado.
— Você prometeu não o machucar — Julie relembrou Ragnar.
— Foda-se. Queremos ver a serpente devorar o arrombado. — Niki empolgou-se além da conta.
Ragnar não se manifestou, em vez disso observou Lady Plissken rastejar até o suspeito, que tentou recuar, mas as amarras de Julie neutralizaram seus esforços.
Ele grunhiu quando a serpente se enrolou em sua perna direita. Os grunhidos ganharam força quando ela se enroscou em seu torso, e quase chorou quando a Rastejante Imperial aproximou a cabecinha até ficar a menos de um palmo de sua face.
— Mostre suas presas — ordenou Ragnar.
— Gente… eu estou tremendo de nervoso — admitiu Skiff, agarrando-se em seu arco.
— Ragnar… — Julie o chamou com um tom repreensivo. Quando seus olhares se encontraram, ela prosseguiu: — Lembre-se, nada de tortura.
— Ele é um NPC, Jú…
— Eu sei, mas a gente combinou.
— Okay — disse à contragosto. — Acho que já é o bastante.
Ragnar se aproximou do suspeito e se agachou ao lado dele para perguntar:
— Então, decidiu se vai colaborar? Ou devo pedir a minha amiguinha para te dar um abraço beeem apertado?
Matheus riu de nervoso, cada fibra em seu corpo lutava para não se entregar.
— Você acha que me assusta? Pensa que tenho medo de uma… cobrinha dessas? — terminou fechando os olhos e forçando uma risada, que apesar de falsa, ainda demonstravam sua resiliência.
Ragnar se afastou, voltando para o lado de Julie.
— Falta pouco para ele quebrar — falou no ouvido dela: — Só dessa vez, por favor.
— Não, deve haver outro jeito.
— Você esqueceu da urgência da missão? Eles podem atacar a qualquer hora!
— Isso não é justificativa para tortura.
— Ele é um NPC, um NPC do mau. Ele não existe, não passa de um aglomerado de uns e zeros.
— O que você faz no jogo reflete no mundo real — ela o relembrou.
— Agora você se parece com aqueles políticos e pastores fundamentalistas querendo banir o jogo do país.
Ela emudeceu e, lá atrás, Niki abriu a boca para falar algo, mas Artic tapou-a com a mão antes que qualquer coisa saísse dela.
— Deixe que eles se resolvam — falou baixinho para a amiga, que pensou melhor e acenou com a cabeça, aceitando a sugestão.
Julie cruzou os braços, dando-se por vencida:
— Está bem, Ragnar. Faça como quiser.
Ele esboçou um sorriso.
— Obrigado, garanto que não irá se arrepender.
Ao ouvir essas palavras, o suspeito debochou da situação.
— Mas que lindo casal, a esposa deixou o marido brinca…
Em um piscar de olhos, Ragnar se transformou em serpente e avançou contra o debochado como Lady Plissken fizera momentos atrás.
Ele começou se enrolando na perna esquerda, então ascendeu ao tronco, enrolando-se em um aperto forte, deixando-o quase sem ar. Sua cabeça de cobra ergueu-se ao lado da de Lady Plissken. Mestre e criatura se olharam, e sibilaram juntos a língua.
— I…isso é… tu… tudo? — Matheus gaguejou entre pesadas respirações. Suor e lágrimas escorriam como riachos em seu rosto.
— Não! — Ragnar transmitiu seu pensamento de serpente para todos ao seu redor.
E avançou contra o pescoço do sujeito, enterrando suas presas longas, curvadas e afiadas na pele dele. Ele berrou e chorou implorando por piedade. Lady Plissken seguiu seu exemplo e também o mordeu, só que na bochecha.
O suspeito agonizou. Ao seu redor os jogadores testemunharam àquilo tudo com pavor. A cena era forte, difícil de assistir mesmo dentro de um jogo.
Lady Plissken se soltou da presa e recuou. Ragnar fez o mesmo. Quando voltou à forma humana, deparou-se com as faces apavoradas dos seus amigos. Os lamentos do suspeito diminuíram aos poucos.
— Você quer mais?
— Não, não! Por favor. Eu falo, eu falo, eu falo tudo que quiser saber.
Ele se debatia enquanto falava, forçando as cordas que o prendiam.
— Ótimo. Comece por quem você é — exigiu o druida.
— Eu sou um apóstolo do Caminho da Aurora.
— E o que fazia quando o capturamos?
— Reconhecimento para… — Hesitou um segundo. — Para a próxima fase do plano.
— Que plano?
Ele respirou fundo antes de falar, em seguida encarou o druida com seriedade.
— Trazer o nosso mestre de volta ao mundo.
Ragnar sentia que estavam chegando ao que interessava.
— E como pretendiam fazer isso?
— Através de um ritual necromante. Para isso nós precisamos da devida oferenda.
— Que oferenda? — quem inquiriu foi Julie, parando ao lado do druida.
— Vidas, vidas inocentes, vidas manchadas e vidas corruptas.
A lutadora seguiu com o interrogatório.
— Quando vocês pretendem atacar o vilarejo?
— Qua-quatro dias se, se nada der errado.
— E quantos integrantes tem o Caminho da Autora?
— Mais de duzentos…
Juntos outra vez, Ragnar e Julie interrogaram o sujeito durante meia hora. O trauma que o druida causou o fez cooperar sem mais debochar. E tudo que era perguntado foi respondido sem hesitação, uma mudança da água para o vinho.
Quando a dupla recolheu todas as informações relevantes para a missão, uma discussão sobre o destino do prisioneiro teve início:
— Ele é muito perigoso para ficar preso na vila — o druida argumentou.
— Eu sei, mas já parou para pensar que ele pode estar escondendo alguma coisa?
— Ele faz parte de uma seita sanguinária, Julie. E não podemos descartar a possibilidade de ele saber conjurar magias perigosas.
Ragnar olhou por trás do ombro para se certificar de que o suspeito estava bem amarrado. Com as mãos presas daquele jeito seria impossível dele soltar algum feitiço.
Julie poderia estar certa em argumentar que a prisão dele na vila poderia ser benéfica a longo prazo. Mas não confiava nos oficiais da guarda do vilarejo, acreditava que aquele tenente e capitão seriam incapazes de manter um usuário de magia sob controle.
— Então vamos selar o destino dele com uma votação — sugeriu.
— Por mim tudo bem — Julie aceitou de bom grado. — Levante a mão quem quer ver este traste atrás das grades de uma cela escura do vilarejo.
Artic e Niki foram os únicos a se manifestarem a seu favor.
Julie levou a mão direita ao rosto e começou a balançar a cabeça.
— É claro … — ela admitiu a derrota com um sorriso.
Uma súplica foi gritada a plenos pulmões:
— Não, por favor!
Ragnar se aproximou do suspeito e o executou com uma estocada no peito. Ele urrou de dor e desespero. Sua voz perdeu a força e, nos segundos seguintes, fez-se silêncio.
O corpo tombou na beira da estrada, fragmentando-se em milhares de pedacinhos que desapareceram em pleno ar.
O clima estranho impediu qualquer um de falar. Ragnar permaneceu parado, de lança em punho, absorto em pensamentos, enquanto o resto continuava embasbacado, com exceção da assassina.
— Puta merda, tá tarde pra caralho — apavorou-se Niki. — Gente, preciso sair. Tchau e… obrigado por me convidarem. — Ela acenou para o grupo e seu avatar desapareceu de vista.
Sua reação bem-humorada dissipou a seriedade da situação. Agora mais à vontade, Artic bocejou antes de falar:
— Foi bem divertido. Boa noite pra vocês. — E desapareceu.
— Vou aproveitar para ir também — Havoc despediu-se, acenando com a mão direita.
Skiff encarou os dois ainda presentes, depois coçou os olhos e anunciou:
— Vou indo nessa. Boa noite.
O druida e a lutadora trocaram olhares.
— Tudo bem com você? — ele perguntou.
— Mais ou menos. Estou um pouco chateada contigo.
Ragnar se aproximou dela.
— Jú, eu só fiz aquilo porque…
— Porque era o único jeito de progredir a missão, eu sei, mas mesmo assim…
— Apenas lembre-se de que eu não me sinto bem fazendo esse tipo de coisa.
Ela suspirou.
— Tudo bem. Também não serei hipócrita em negar que graças àquilo a gente conseguiu arrancar uma confissão dele. E agora, o que você vai fazer?
— Dormir, estou morrendo de sono — admitiu.
— Eu digo sobre a missão. Precisamos nos preparar, a invasão é em dois dias reais.
— Não dá para fazer muita coisa em tão pouco tempo. Então amanhã irei ao Refúgio dos Ursos para conversar com a pessoa que derrotou esse Mergraff cem anos atrás. Quanto mais a gente conhecer nosso inimigo, melhor. E você, tem algum plano em mente?
— Eu sinto que essa invasão não será brincadeira, então vou tentar chamar ajuda.
— O Cris? Duvido que ele vá aceitar agora que o mundial está tão perto.
— Não custa tentar. — Os olhos dela se fecharam quase por completo. — Já são duas horas da manhã. É melhor a gente sair.
— Concordo plenamente — Ragnar falou após bocejar.
Eles olharam para um lado, depois para outro e, quando viram que estavam a sós, se aproximaram e se abraçaram.
— Você reuniu um time bem interessante para a guilda — falou no ouvido dele.
Sempre atento à situação, Ragnar mentalizou o comando para cancelar o Fogo Fátuo, e a escuridão caiu sobre eles.
— Alguns deles têm potencial para entrar no competitivo, principalmente a espadachim.
— Que bom, né? Você vai precisar de gente talentosa quando sair do circuito amador, até lá você talvez consiga carregar eles sozinho, mas depois…
— Eu sei Jú, eu sei — ele falou e a beijou na bochecha.
Ela alinhou o rosto com o dele.
— Aquela assassina é muito linda.
— A Jú ciumenta está de volta.
— Ah… esse seu avatar de druida continua horroroso, ainda parece que estou abraçando um mendigo.
— Espera até eu evoluir e conseguir uns equipamentos melhores. Você já viu os conjuntos de alto nível dessa classe? Eles são inacreditáveis de tão lindos, talvez ainda mais que as armaduras dos cavaleiros.
— Quer saber? — disse ela. — Eu não me importo… — E o beijou.
Ragnar apertou a bunda dela, provocando risos na garota que retribuiu o gesto. Os minutos seguintes foram intensos, a intimidade entre os dois escalou a um nível quase obsceno. E apesar da sensação emulada ser semelhante ao mundo real, ainda não era a mesma coisa.
Eles se afastaram, Julie então se despediu e, com dor no coração, ele a viu desaparecer em sua frente. Sem ter mais motivos para continuar ali, Ragnar também desconectou.
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