O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 39: Requintes de Crueldade

Ragnar conjurou o Fogo Fátuo para afastar a escuridão da noite naquele trecho da estrada em que ele, seus amigos e o suspeito se encontravam. A luz esverdeada emanava da lâmina da lança agora apontada contra Matheus, o suspeito capturado por espionar o vilarejo.

A dez passos de distância, os amigos do druida aguardavam ansiosos pelo início do interrogatório. E quando ele estalou os dedos para invocar a serpente companheira, Skiff e Havoc exibiram preocupação em suas feições; enquanto Artic permanecia impassível e Niki ansiava pelo que estaria por vir.

Lady Plissken, a cobra amiga, encarou seu mestre com olhinhos brilhantes.

— Faça-me este favor, abrace este homem malvado em nossa frente — ordenou Ragnar, sorridente por ver a confiança e o deboche do suspeito se desmanchar por um momento.

— O que você está fazendo? — inquiriu o aprisionado.

— Você prometeu não o machucar — Julie relembrou Ragnar.

— Foda-se. Queremos ver a serpente devorar o arrombado. — Niki empolgou-se além da conta.

Ragnar não se manifestou, em vez disso observou Lady Plissken rastejar até o suspeito, que tentou recuar, mas as amarras de Julie neutralizaram seus esforços.

Ele grunhiu quando a serpente se enrolou em sua perna direita. Os grunhidos ganharam força quando ela se enroscou em seu torso, e quase chorou quando a Rastejante Imperial aproximou a cabecinha até ficar a menos de um palmo de sua face.

— Mostre suas presas — ordenou Ragnar.

— Gente… eu estou tremendo de nervoso — admitiu Skiff, agarrando-se em seu arco.

— Ragnar… — Julie o chamou com um tom repreensivo. Quando seus olhares se encontraram, ela prosseguiu: — Lembre-se, nada de tortura.

— Ele é um NPC, Jú…

— Eu sei, mas a gente combinou.

— Okay — disse à contragosto. — Acho que já é o bastante.

Ragnar se aproximou do suspeito e se agachou ao lado dele para perguntar:

— Então, decidiu se vai colaborar? Ou devo pedir a minha amiguinha para te dar um abraço beeem apertado?

Matheus riu de nervoso, cada fibra em seu corpo lutava para não se entregar.

— Você acha que me assusta? Pensa que tenho medo de uma… cobrinha dessas? — terminou fechando os olhos e forçando uma risada, que apesar de falsa, ainda demonstravam sua resiliência.

Ragnar se afastou, voltando para o lado de Julie.

— Falta pouco para ele quebrar — falou no ouvido dela: — Só dessa vez, por favor.

— Não, deve haver outro jeito.

— Você esqueceu da urgência da missão? Eles podem atacar a qualquer hora!

— Isso não é justificativa para tortura.

— Ele é um NPC, um NPC do mau. Ele não existe, não passa de um aglomerado de uns e zeros.

— O que você faz no jogo reflete no mundo real — ela o relembrou.

— Agora você se parece com aqueles políticos e pastores fundamentalistas querendo banir o jogo do país.

Ela emudeceu e, lá atrás, Niki abriu a boca para falar algo, mas Artic tapou-a com a mão antes que qualquer coisa saísse dela.

— Deixe que eles se resolvam — falou baixinho para a amiga, que pensou melhor e acenou com a cabeça, aceitando a sugestão.

Julie cruzou os braços, dando-se por vencida:

— Está bem, Ragnar. Faça como quiser.

Ele esboçou um sorriso.

— Obrigado, garanto que não irá se arrepender.

Ao ouvir essas palavras, o suspeito debochou da situação.

— Mas que lindo casal, a esposa deixou o marido brinca…

Em um piscar de olhos, Ragnar se transformou em serpente e avançou contra o debochado como Lady Plissken fizera momentos atrás.

Ele começou se enrolando na perna esquerda, então ascendeu ao tronco, enrolando-se em um aperto forte, deixando-o quase sem ar. Sua cabeça de cobra ergueu-se ao lado da de Lady Plissken. Mestre e criatura se olharam, e sibilaram juntos a língua.

— I…isso é… tu… tudo? — Matheus gaguejou entre pesadas respirações. Suor e lágrimas escorriam como riachos em seu rosto.

— Não! — Ragnar transmitiu seu pensamento de serpente para todos ao seu redor.

E avançou contra o pescoço do sujeito, enterrando suas presas longas, curvadas e afiadas na pele dele. Ele berrou e chorou implorando por piedade. Lady Plissken seguiu seu exemplo e também o mordeu, só que na bochecha.

O suspeito agonizou. Ao seu redor os jogadores testemunharam àquilo tudo com pavor. A cena era forte, difícil de assistir mesmo dentro de um jogo.

Lady Plissken se soltou da presa e recuou. Ragnar fez o mesmo. Quando voltou à forma humana, deparou-se com as faces apavoradas dos seus amigos. Os lamentos do suspeito diminuíram aos poucos.

— Você quer mais?

— Não, não! Por favor. Eu falo, eu falo, eu falo tudo que quiser saber.

Ele se debatia enquanto falava, forçando as cordas que o prendiam.

— Ótimo. Comece por quem você é — exigiu o druida.

— Eu sou um apóstolo do Caminho da Aurora.

— E o que fazia quando o capturamos?

— Reconhecimento para… — Hesitou um segundo. — Para a próxima fase do plano.

— Que plano?

Ele respirou fundo antes de falar, em seguida encarou o druida com seriedade.

— Trazer o nosso mestre de volta ao mundo.

Ragnar sentia que estavam chegando ao que interessava.

— E como pretendiam fazer isso?

— Através de um ritual necromante. Para isso nós precisamos da devida oferenda.

— Que oferenda? — quem inquiriu foi Julie, parando ao lado do druida.

— Vidas, vidas inocentes, vidas manchadas e vidas corruptas.

A lutadora seguiu com o interrogatório.

— Quando vocês pretendem atacar o vilarejo?

— Qua-quatro dias se, se nada der errado.

— E quantos integrantes tem o Caminho da Autora?

— Mais de duzentos…

Juntos outra vez, Ragnar e Julie interrogaram o sujeito durante meia hora. O trauma que o druida causou o fez cooperar sem mais debochar. E tudo que era perguntado foi respondido sem hesitação, uma mudança da água para o vinho.

Quando a dupla recolheu todas as informações relevantes para a missão, uma discussão sobre o destino do prisioneiro teve início:

— Ele é muito perigoso para ficar preso na vila — o druida argumentou.

— Eu sei, mas já parou para pensar que ele pode estar escondendo alguma coisa?

— Ele faz parte de uma seita sanguinária, Julie. E não podemos descartar a possibilidade de ele saber conjurar magias perigosas.

Ragnar olhou por trás do ombro para se certificar de que o suspeito estava bem amarrado. Com as mãos presas daquele jeito seria impossível dele soltar algum feitiço.

Julie poderia estar certa em argumentar que a prisão dele na vila poderia ser benéfica a longo prazo. Mas não confiava nos oficiais da guarda do vilarejo, acreditava que aquele tenente e capitão seriam incapazes de manter um usuário de magia sob controle.

— Então vamos selar o destino dele com uma votação — sugeriu.

— Por mim tudo bem — Julie aceitou de bom grado. — Levante a mão quem quer ver este traste atrás das grades de uma cela escura do vilarejo.

Artic e Niki foram os únicos a se manifestarem a seu favor.

Julie levou a mão direita ao rosto e começou a balançar a cabeça.

— É claro … — ela admitiu a derrota com um sorriso.

Uma súplica foi gritada a plenos pulmões:

— Não, por favor!

Ragnar se aproximou do suspeito e o executou com uma estocada no peito. Ele urrou de dor e desespero. Sua voz perdeu a força e, nos segundos seguintes, fez-se silêncio.

O corpo tombou na beira da estrada, fragmentando-se em milhares de pedacinhos que desapareceram em pleno ar.

O clima estranho impediu qualquer um de falar. Ragnar permaneceu parado, de lança em punho, absorto em pensamentos, enquanto o resto continuava embasbacado, com exceção da assassina.

— Puta merda, tá tarde pra caralho — apavorou-se Niki. — Gente, preciso sair. Tchau e… obrigado por me convidarem. — Ela acenou para o grupo e seu avatar desapareceu de vista.

Sua reação bem-humorada dissipou a seriedade da situação. Agora mais à vontade, Artic bocejou antes de falar:

— Foi bem divertido. Boa noite pra vocês. — E desapareceu.

— Vou aproveitar para ir também — Havoc despediu-se, acenando com a mão direita.

Skiff encarou os dois ainda presentes, depois coçou os olhos e anunciou:

— Vou indo nessa. Boa noite.

O druida e a lutadora trocaram olhares.

— Tudo bem com você? — ele perguntou.

— Mais ou menos. Estou um pouco chateada contigo.

Ragnar se aproximou dela.

— Jú, eu só fiz aquilo porque…

— Porque era o único jeito de progredir a missão, eu sei, mas mesmo assim…

— Apenas lembre-se de que eu não me sinto bem fazendo esse tipo de coisa.

Ela suspirou.

— Tudo bem. Também não serei hipócrita em negar que graças àquilo a gente conseguiu arrancar uma confissão dele. E agora, o que você vai fazer?

— Dormir, estou morrendo de sono — admitiu.

— Eu digo sobre a missão. Precisamos nos preparar, a invasão é em dois dias reais.

— Não dá para fazer muita coisa em tão pouco tempo. Então amanhã irei ao Refúgio dos Ursos para conversar com a pessoa que derrotou esse Mergraff cem anos atrás. Quanto mais a gente conhecer nosso inimigo, melhor. E você, tem algum plano em mente?

— Eu sinto que essa invasão não será brincadeira, então vou tentar chamar ajuda.

— O Cris? Duvido que ele vá aceitar agora que o mundial está tão perto.

— Não custa tentar. — Os olhos dela se fecharam quase por completo. — Já são duas horas da manhã. É melhor a gente sair.

— Concordo plenamente — Ragnar falou após bocejar.

Eles olharam para um lado, depois para outro e, quando viram que estavam a sós, se aproximaram e se abraçaram.

— Você reuniu um time bem interessante para a guilda — falou no ouvido dele.

Sempre atento à situação, Ragnar mentalizou o comando para cancelar o Fogo Fátuo, e a escuridão caiu sobre eles.

— Alguns deles têm potencial para entrar no competitivo, principalmente a espadachim.

— Que bom, né? Você vai precisar de gente talentosa quando sair do circuito amador, até lá você talvez consiga carregar eles sozinho, mas depois…

— Eu sei Jú, eu sei — ele falou e a beijou na bochecha.

Ela alinhou o rosto com o dele.

— Aquela assassina é muito linda.

— A Jú ciumenta está de volta.

— Ah… esse seu avatar de druida continua horroroso, ainda parece que estou abraçando um mendigo.

— Espera até eu evoluir e conseguir uns equipamentos melhores. Você já viu os conjuntos de alto nível dessa classe? Eles são inacreditáveis de tão lindos, talvez ainda mais que as armaduras dos cavaleiros.

— Quer saber? — disse ela. — Eu não me importo… — E o beijou.

Ragnar apertou a bunda dela, provocando risos na garota que retribuiu o gesto. Os minutos seguintes foram intensos, a intimidade entre os dois escalou a um nível quase obsceno. E apesar da sensação emulada ser semelhante ao mundo real, ainda não era a mesma coisa.

Eles se afastaram, Julie então se despediu e, com dor no coração, ele a viu desaparecer em sua frente. Sem ter mais motivos para continuar ali, Ragnar também desconectou.


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