O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 24: A Espadachim

Havoc retornou à Fortaleza Toca dos Lobos após o embate com o druida. Seus passos lentos e feições tristes eram produtos da decepção que sentia de si mesma. 

Minutos antes Zed havia enviado uma mensagem para todos os membros da guilda, convocando-os para uma reunião emergencial na sala do trono. E ela sabia que tinha muito o que explicar, e que sua permanência na guilda estava em risco. 

Havoc parou em frente à entrada da fortaleza, respirou fundo, reuniu coragem, e entrou.

Mais de quarenta jogadores reuniam-se ao redor do trono onde Zed sentava com as mãos apoiadas em seu queixo. Ela andou a passos firmes. Todos os presentes viraram-se para trás, para encará-la.

— Tenente, aproxime-se — anunciou Zed.

Ela caminhou sob o olhar recriminador dos colegas. O general no trono indicou para que ficasse a sua direita.

— O que aconteceu? — ele perguntou.

— O druida e seus amigos nos traíram — Havoc respondeu sem hesitar.

— Você está relacionada de alguma forma a eles?

Ela arregalou os olhos e abriu a boca para retrucar:

— Claro que não! De onde você tirou essa ideia?

Zed empunhou o Machado de Ébano com as duas mãos, seus olhos contemplaram a lâmina afiada de sua arma.

— Você lutou contra esse druida, mas perdeu apesar de ser mais forte que ele; então foi poupada e, por algum motivo, você o recomendou para nossa organização.

Os olhos da garota arregalaram ao passo que os do guerreiro no trono semicerraram.

— Mas, mas eu não sabia que ele era capaz de fazer uma coisa dessas, ele me disse que só queria pagar a dívida para não ser mais incomodado.

— Tenente, você precisa entender uma coisa: alguém precisa ser responsabilizado por tudo isso. Aquele ferro era destinado a guilda Rosa-Espinho, e eu não sei se você lembra, mas ela é a líder da nossa aliança. Foram eles que nos ajudaram a tomar essa fortaleza. Então me diga: como é que eu vou explicar o sumiço de cinco mil unidades de ferro?

— A culpa não é minha. Eu não faço ideia de como eles fizeram isso, apenas quem é da patente sargento ou superior pode retirar os minérios depositados.

Um sacerdote à esquerda do general riu em deboche, e então se manifestou:

— Conveniente como você está acima de sargento, não é mesmo, tenente?

Aquela insinuação fez o coração de Havoc disparar e o sangue ferver. Ela olhou para as quarenta pessoas em sua frente, em busca de um álibi, e ela encontrou em um feiticeiro vestindo um conjunto verde musgo.

— Malorn, você me viu sair da fortaleza uma hora antes de sermos roubados.

O feiticeiro coçou a nuca e parou para pensar, após um momento confirmou as palavras dela acenando com a cabeça, e complementando:

— É verdade, ela saiu a cavalo. Espera… deixe-me ver uma coisa. — Malorn abriu o painel da guilda e verificou as permissões de cada patente da hierarquia. — Não foi um de nós que roubou o ferro para eles. Na verdade, o grupo pode ter agido sozinho, lembrem-se, semanas atrás nós concedemos a permissão de retirada de minérios aos recrutas…

O vice-líder da guilda, um paladino chamado Tonks, manifestou-se:

— É verdade, eu lembro. Nós criamos essa exceção para que a última leva de novatos transportasse o ferro da fortaleza para o castelo da Rosa-Espinho. Mas… essa permissão deveria ser retirada assim que o ferro fosse entregue… isso faz mais de um mês.

Havoc socou a palma da mão esquerda com força, e então acusou o líder:

— Zed, você é o único da guilda que pode atribuir e retirar permissões, a culpa é sua. 

Tonks virou-se para Zed, dizendo:

— Você pisou na bola mesmo. 

O líder se levantou do trono, sua face estava contorcida em fúria, ele ergueu o machado e o apontou na direção daquela que o desafiava:

— A culpa é sua! Foi você que os trouxe para cá. Alguém mais acha que eu sou o culpado? — finalizou olhando para todos os membros ali reunidos.

Ninguém reagiu, nem mesmo Malorn ou Tonks, os únicos que a apoiaram.

— Ótimo — disse Zed, satisfeito. — Garota, você será rebaixada ao posto de soldado. — Ele abriu o painel da guilda, alterou a patente dela, e confirmou.

Havoc testemunhou os privilégios de seu posto evaporarem diante de seus olhos.

— Eu acho que isso já é demais — disse Malorn.

Zed virou-se para ele e dirigiu um olhar ameaçador.

— Você quer ser rebaixado também, sargento?

Malorn negou sacudindo a cabeça.

Havoc nunca se sentiu tão humilhada, nem as duas derrotas contra o druida a deixaram tão para baixo. Aquilo foi a gota d’água. Ela desembainhou a espada e a apontou contra Zed.

— Você não merece ser o líder da guilda. Você não passa de um mesquinho irresponsável que não assume os próprios erros. Você só é general porque eu e os outros oficiais nos esforçamos enquanto você faz absolutamente nada. 

Zed soltou uma risada.

— Quem você está achando que é para falar comigo desse jeito? — disse ele — Eu fundei essa guilda, sem mim ela nunca existiria. Você está nervosa porque perdeu para um druida de merda. Você é fraca, sempre foi… e sempre será.

Ela abriu o painel da guilda, navegou pelos perfis listados na página de membros, selecionou seu nome, e confirmou sua saída.

— Eu me nego a fazer parte de uma guilda comandada por você.

— Ótimo — comemorou Zed. — Já vai tarde.

— Mas antes… eu te desafio para um duelo.

Os quarenta jogadores ali reunidos voltaram seus olhares para o líder. Havoc sabia que, se ele negasse o desafio, o resto da guilda o veria como um fraco. Zed poderia ser imprevisível, mas ela estava certa de que o ego dele inflaria com o desafio.

Zed hesitou um instante, então recuperou a postura e dirigiu a palavra a espadachim:

— Eu aceito o desafio.

Havoc esboçou um meio sorriso.

— Eu exijo um duelo balanceado, nada mais justo que lutarmos como iguais, afinal estou no nível 21, e você, no 50.

Ele bufou e resmungou antes de concordar:

— Certo, como quiser.

Quem conhecia o líder acabou estranhando a reação dele, pois quem já o viu lutar sabia que ele não era um dos melhores duelistas da guilda. 

Um duelo balanceado significava que o sistema iria colocar o jogador mais forte no mesmo patamar do mais fraco. Então, todas as habilidades que Zed possuía acima do nível 21 ficariam indisponíveis durante o duelo. 

já os atributos e contadores de vida, mana e energia de Zed seriam reduzidos para um valor equivalente ao mesmo nível do jogar mais fraco.

Sabendo de tudo isso, Malorn e Tonks estavam cientes de que Havoc tinha chance de sair vitoriosa do embate.

— Venham, me acompanhem até a arena — ordenou Zed, apoiando o Machado de Ébano em seu ombro direito.

Todos o acompanharam para a saída à esquerda do salão do trono. Durante o caminho os jogadores conversavam em voz baixa em pequenos grupos, apostando em quem sairia vitorioso.

Do lado de fora o sol irradiava em um céu nublado. Zed adentrou na arena localizada entre a fortaleza e a porção lateral da muralha. Suas grevas de aço pisaram na areia, Havoc o seguiu enquanto o restante da Pata Negra permaneceu em pé na borda da arena.

Ela virou-se para a esquerda e Zed à direita. Eles se encararam, estava a dez metros um do outro. Ela apertou a empunhadura da espada como sempre fazia antes de uma batalha importante. Enquanto isso, Zed enviou um convite de duelo.

Quando ela estava para aceitar o desafio, um detalhe a fez quase infartar.

— Isso é um duelo livre. Eu o desafiei para uma luta balanceada.

— Está com medo? — ele zombou.

— Não é justo, você está trinta níveis na minha frente.

Malorn, o feiticeiro, se intrometeu:

— Chefe, o duelo tem que ser balanceado para ter graça.

Os demais integrantes da guilda acenaram concordando com a afirmação do feiticeiro. Havoc selecionou a opção “Rejeitar duelo” esperando que Zed reenviasse com a correção, mas o que recebeu foi outro convite para um duelo livre.

— Eu não vou aceitar um duelo que não seja balanceado! — exclamou, irritada.

— É mesmo? Então… que comece o duelo verdadeiro. 

Zed empunhou o machado e correndo na direção dela.

— O que você está fazendo? — Havoc disse andando para trás, temendo o pior.

Seus temores se concretizaram quando o chefe da guilda usou a habilidade da classe guerreiro: Avanço Devastador. Ele deslizou cinco metros sobre a areia e finalizou girando o machado, mas ela antecipou a agressão e saltou para trás.

— Você quer me matar fora de um duelo? Você vai ser punido! — disse ela, assustada.

— Não interessa — retrucou Zed. — Você me desrespeitou na frente de todos.

— Então vamos resolver isso em um duelo justo.

— Nunca! — rugiu Zed assim que partiu para cima mais uma vez.

O machado negro foi erguido aos céus e descido contra a espadachim, mas ela bloqueou com a espada. Como o golpe foi desferido por alguém fora de um duelo oficial entre as partes, Zed acabou sendo marcado pelo sistema do jogo como um potencial Matador de Jogador. 

Esse sistema marca o agressor como um inimigo público, daquele momento em diante os guardas das cidades iriam caçar Zed caso fosse encontrado. Porém, o pior era que essa mecânica também incentivava jogadores a caçarem quem fosse marcado, pois seriam recompensados com reputação, dinheiro e a uma alta chance de obter os itens do Matador de Jogador.

A força do golpe bloqueado drenou metade da energia de Havoc, que praguejou e tentou apelar aos colegas de equipe:

— Me ajudem!

Mas ninguém fez nada, eles apenas acompanharam o desenrolar da batalha com olhares confusos. Zed avançou outra vez, girou o machado e desferiu uma combinação de ataques da qual Havoc desviou e aparou com sua arma. 

Ela se concentrou, então usou Retalhar para cortar Zed e se colocar às costas dela, em seguida estocou com um Talho para diminuir suas defesas, o golpe seguinte foi o Corte em Lua Crescente seguido pela reativação do Retalhar.

Apesar da sequência de ataques certeiros, o dano causado foi baixíssimo. Zed continuava com mais de 90% da vida. A diferença de 30 níveis provou-se brutal. A derrota parecia certa, mas ela se motivou a não desistir, seu objetivo era lutar com dignidade para mostrar o quão melhor era em combate do que seu antigo chefe de guilda.

O duelo foi se estendendo. E o guerreiro ficava cada vez mais irritado conforme seus ataques eram esquivados ou bloqueados por sua rival. Ao mesmo tempo, a plateia sentia-se mais e mais desconfortável com as sucessivas ofensivas desferidas pelo líder.

Havoc captou o sussurro de uma caçadora da guilda.

— Ele é… ruim.

O comentário foi incrementado pelo murmúrio de um mago.

— Ruim? Ele é péssimo.

Então o comentário de Tonks a vez sorrir:

— Ou ela é muito boa.

Zed estava esbaforido, e profundamente zangado.

— Chega de brincadeira — disse ele, preparando um rugido.

O corpo do guerreiro foi envolvido por uma aura vermelha cintilante, os olhos brilharam também em vermelho, o que fez Havoc lembrar dos olhos escarlates do urso de ferro.

Zed flexionou os joelhos e saltou para o alto, levantando poeira. Em pleno ar brandiu o machado e o desferiu para baixo, caindo em altíssima velocidade.

Havoc tentou escapar do golpe, mas perdeu o equilíbrio quando o machado cravou no chão, causando um estouro tão forte que abriu um buraco no chão da arena.

Aquele era um dos golpes mais poderosos de um guerreiro, e como Zed o desferiu enquanto estava sob o efeito da Fúria Berserker, que aumentava ainda mais sua força, não havia chances de sobreviver a um golpe devastador desse, mas por algum motivo, ela ainda conseguia enxergar a face furiosa do líder da guilda.

Zed virou para onde o restante do pessoal estava, e rugiu em fúria:

— Tonks, que merda é essa?

O paladino da guilda estava com seu martelo erguido, brilhando uma luz dourada. Havoc olhou para suas mãos, elas estavam envoltas por um brilho semelhante, mas que sumiu um segundo depois.

Proteção Estelar, Havoc lembrou do nome da habilidade dos paladinos. Ela direcionava ao usuário uma grande parte do dano sofrido por um aliado. 

Havoc espiou o paladino que conjurou a habilidade, ele caminhou para dentro da arena, mas Zed foi ao seu encontro. Os dois trocaram ofensas enquanto o resto da guilda permanecia acuada. 

Ela embainhou a espada e caminhou em direção ao portão da fortaleza. O paladino que a salvou deixou o guerreiro gritando sozinho, e correu até a espadachim.

— Havoc, espere.

Ela parou, olhou por trás do ombro e falou:

— Obrigado por me salvar, Tonks, mas está claro para mim que não sou mais bem-vinda enquanto ele for o líder.

— Eu entendo… boa sorte.

— Adeus — zombou Zed, agora um pouco mais calmo.

A espadachim retomou sua caminhada. Enquanto olhava para as muralhas da fortaleza, as boas e más memórias que tivera junto da guilda foram revividas em lampejos. 

Uma sensação agridoce foi se agravando, deixando-a levemente emocionada por estar finalizando um capítulo de sua jornada em Nova Avalon Online.

Nenhum outro jogo foi capaz de fazê-la sentir tantas coisas boas, e ruins.

Mas para onde eu devo ir agora? Ela se perguntou ao pôr os pés do lado de fora da fortaleza.


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