Necrose Brasileira

Autor(a): Vinicius Gabriel


Volume 2

Capítulo 8: Tremular

Depois de um breve e nada proveitoso encontro com a porta trancada do laboratório, decidi partir em busca do consultório do Dr.Wes, afinal, discutir com a fechadura não me pareceu promissor.

De maneira lógica abandonei a ideia dos elevadores — que estranhamente se encontravam em total funcionamento — antes mesmo que essa passasse por minha mente, e em passos cautelosos subi por dois lances da escada de emergência que por sorte tinha sua entrada pouco à frente da farmácia, porém, seguramente anterior as proximidades da ala emergencial.  

Aprender rápido com as situações que se apresentam em sua frente é uma habilidade essencial para sobrevivência, e tendo isso em mente, dei o primeiro passo no grande cômodo superior do prédio, o redobro da atenção para que outro incidente não ocorresse nem com um “deles” e tampouco com o autor na cena que vi a pouco.  

O novo ambiente deixava a ilusória impressão de ser menor que o anterior, o cômodo maior no centro era da administração e os quatro corredores que o cercava concediam acesso aos consultórios.

Meus olhos seguiram as numerações até onde a visão permitirá, seguindo o corredor a minha direita encontrei a sequência decrescente dos números.  

Senti a tensão no ar abaixar em resposta ao lugar mais organizado e convidativo, o ar interno se tornara mais leve e o mau cheiro enfraquecera, ao menos até que eu me aproximasse da esquina entre os dois corredores.

Segurei firme minha arma e mantive a frequência dos passos, um a um, até que o pútrido odor retornasse, a cada avanço se tornando mais e mais presente como se houvesse um pedaço de seu causador dentro da minha máscara e, ao fazer a curva do corredor, constatei que não havia qualquer pedaço do cadáver comigo, porém, não poderia dizer o mesmo do corredor a minha frente.  

A pouco menos de dez passos um jaleco maltrapilho se movia com o gingado canhestro de um bêbado. Arrastava com dificuldade a massa disforme de carne apodrecida no lugar de seu pé direito, pele e músculos rasgados pendiam do que restara de seu braço e seu intestino era facilmente encontrado pelo chão.
O odor mais forte que o comum provocou em mim um enjoo atordoador como se estivesse impregnado por todo meu crânio.  

Me esgueirei para trás da criatura antes que meu corpo decidisse colocar o café da manhã para fora. Senti meu sistema nervoso compartilhar aquela mesma sensação mais uma vez, o tremular em minhas mãos, meus olhos se fecharam por um milésimo de segundo, e então, outra casca vazia se encontrava no chão.  

Mal pude ouvir o som do ferro se encontrando com o crânio oco da criatura. O golpe pesado acertou a têmpora direita e tornou aquele rosto irreconhecível, a estrutura lateral do crânio se desfez dando lugar a um conjunto de ossos esmigalhados e fibras desconexas.  

 

Passei pela porta opaca de madeira, evitando alimentar qualquer falsa esperança de encontrar a resolução do meu problema. Ao dar o primeiro passo no interior do ambiente notei o sol iniciar sua partida rumo ao oeste, era o prenúncio do entardecer.  

Adentrei com alguns passos e embora a sala apresentasse certa estranheza em sua composição, tratei de focar em meu objetivo. Ignorando o vidro quebrado, as manchas de sangue e os papéis espalhados pelo chão, fui em direção a grande mesa de madeira virada como se vê em brigas de bar.

Me agachei perto do móvel quebrado, minhas costas viradas para a porta, um erro estupido que me custaria caro demais.  

— Não se mova! — Gritou a voz masculina vinda de algum lugar atrás de mim.  

 — Inferno... — Murmurei, e ignorando sua ordem, levantei me virando em sua direção.  

 — Eu mandei não se mover! — Gritou o homem outra vez, parecendo não se importar com o barulho que fazia. — Desgraçado, coloque as mãos para cima!  

Meus olhos finalmente encontraram a figura que me tinha por refém — um homem alto e de porte considerável, cabelos negros mal aparados e o jaleco mais limpo que eu havia visto durante todo dia; talvez uns cinco ou dez anos mais novo que eu, contudo, não tive certeza, sua idade parecia se esconder por trás de um rosto magro quase cadavérico.
Talvez ele realmente já estivesse morto. 

— Se calme, doutor. — Sugeri a ele com voz mansa, jogando um rápido olhar sobre a arma em sua mão. Conhecia armas o bastante para saber que aquele era um revólver, e nada além disso. Nunca me interessara por nenhum fogo senão o da forja. — Você é o Dr. Wes?  

O homem não reagiu bem a minha pergunta. Vi o tremular de suas mãos aumentarem, instável, pânico revelado em seus olhos fundos. — Como sabe meu nome? Entendi... Você está com aqueles garotos, não está? Veio aqui atrás deles, não foi?  

— Garotos? — As linhas se conectando em minha mente. — Tsc! Garotos? Como a que estava lá em baixo? Então foi você quem a matou? Tem mais deles? Quantos mais você matou?! — Esbravejei, deixando que a repentina raiva gerada em mim falasse mais alto.  

— EU NÃO MATEI NINGUÉM! Eles se mataram, você mesmo viu, a garota lá embaixo se matou, eu não sou assassino, eu... — A postura instável de um homem medroso transformada em uma eufórica determinação em apenas um segundo. Os olhos que outrora foram banhados por pânico agora se consumiam em um ódio perturbador.
— Não, vocês são os assassinos aqui, eu o vi assassinar a Dra. Karen, eu a estive mantendo segura por tanto tempo! Como pode?! Ela ficaria tão surpresa quando conhecesse minha pequena Catherine, e você a tirou de mim, vocês vieram à minha casa e mataram minha família! Vocês roubaram minhas memórias! DEVOLVAM MINHAS MEMÓRIA!!  

— Doutor!  

 

Bang!! — A explosão sonora cobriu todas as vozes na sala, de repente, os olhos do homem a minha frente tornaram ao pânico habitual. Eu o vi sair correndo da sala com o mesmo ímpeto de alguém que foge da morte. Tentei acompanhá-lo, entretanto, senti meu corpo responder com o cambalear de um ferido. O lado esquerdo do meu abdômen parecia queimar com o líquido quente que escorria dele.

Alguns poucos passos e fui levado ao chão; o cheiro da pólvora, o ar podre, a luz defeituosa piscando e piscando sem parar, um zumbido infernal nos ouvidos e a visão do sangue nas paredes, o pôr do sol, a sede, a presença da morte e, então, minha consciência começara a se perder em si mesma. Meus olhos se fecham... 

— Judy... 



Comentários