Necrose Brasileira

Autor(a): Vinicius Gabriel


Volume 1

Capítulo 3: Memória

Os quinze minutos que ela me pediu se passaram com a sensação de cinco, e então, a vi passar pela velha porta — cuja ferrugem se alimentava das dobradiças — trazendo consigo outras duas garrafas da mesma cerveja que eu acabara de tomar e um hambúrguer embrulhado em papel acoplado.  

Ela me deu uma garrafa, puxou um dos caixotes para se sentar e me ofereceu gentilmente um pedaço de seu lanche.  

Me lembro de menear a cabeça em resposta, pouco antes de vê-la dar a primeira mordida no lanche.  

Pela primeira vez naquele dia, olhei atentamente para ela. Seus olhos castanhos, seus traços marcantes, seu cabelo ruivo preso não impedia os poucos fios desobedientes que se desprendiam dos demais e tocavam seu rosto e, seus lábios delicados...  
Naquele instante fui abruptamente seduzido por suas feições e seu jeito, estava apaixonado por uma garota que sequer conhecia.  

Percebi que ergueu seu olhar em minha direção assim que notou o meu sobre ela e um pouco envergonhado, virei meu rosto, já sentindo um sorriso se formando no dela.   
 
— E então, vai me dizer seu nome ou não?  

— Ah, claro. Eu sou Marvin... Marvin. — Respondi desconcertado.  

— Oh, Marvin? Hum, eu sou Judy, Marvin. — Ela finalizou enfatizando a última palavra.  

— É um prazer Sra. J-u-d-i-t-h... — Meu tom provocativo mais que evidente.  

— Ei, ei, ei! Esse não é meu nome. — Ela disse ao se levantar em um pulo, alegre e autoritária. 

— É sim, está bem aí no seu uniforme, Judith. É um nome bonito, você não gosta dele?  

— Não mesmo. — Ela se sentou outra vez. — Foi ideia do meu pai..., mas eu prefiro Judy. E é assim que você vai me chamar.  

— Certo, será Judy então, garota mandona.  

— Mas, me diz Marvin, nenhuma das garotas fazia seu tipo? — Essa seria sua vez de me provocar. 

— Não, não é isso. É que, eu só não estava no clima, sabe?  

— Claro, claro.  

— Conhecia elas? — Questionei com a intenção de que a conversa não morresse ou aparentasse interesse unilateral.  

— Bem, sim... Estudados todas juntas, mas nunca nos falamos. E nem vamos, já que a maioria delas vai para faculdade em outra cidade.  

— Faz sentido, não há muito o que se fazer por aqui, não é? Então, você cresceu na cidade?   

— Sim, você não? Tem cara de não ser daqui. 

— Quem dera eu realmente não fosse... — Pronunciei com certo pesar. — Vai estudar fora também?  

Lancei a pergunta despreocupado e em resposta notei sua postura se alterar, como a de alguém que diria algo sério.  

Certamente este foi o caso e, refletindo sobre isso agora, no momento presente, sinto que aquela fora uma clara declaração de alguém desesperado por socorro.
 
— Eu... Bem, eu não sei ao certo... Eu realmente não sei, mas meu pai quer que eu vá, então provavelmente sim.  Passarei os próximos quatro anos estudando qualquer coisa, já que eu também não tenho interesse em nada. Isso, soa meio frustrante, não é? — Sua fala acompanhada de um sorriso amargo fez brotar em mim um sentimento de certa compreensão, afinal, naquela época éramos dois perdidos no mundo, chafurdando em um mar de expectativas, frustrações e fracassos que nem mesmo eram nossos.   

— Eu também terminei a escola a pouco. Dois anos para ser mais exato.  

Suspirei após minhas primeiras palavras, como se para deixar a incerteza que continha nelas para trás.  

— De lá para cá tentei entrar em uma faculdade mais vezes do que consigo contar, mas não aconteceu. Porque não importa o quanto você se esforce, existem coisas que só não vão dar certo.  

Outra pequena pausa para encontrar as palavras e então prossegui:  

— Semana passada meu pai disse que se eu não passasse dessa vez teria de assumir a forja. É um negócio de família que o pai dele passou para ele e agora ele vai passar para mim...  
Recebi a resposta hoje... Recusado outra vez, então, pensei em vir aqui e derrubar alguns pinos, enquanto essas mãos ainda são minhas. Enquanto minha vida ainda é minha...   
Não tenho dúvidas que no próximo verão minhas mãos estarão tão sujas de carvão que não vou poder tocar nesse seu cabelo bonitinho.  

Fiz o melhor que pude para aliviar o clima deprimente que se instalou sobre nós, e por um longo momento nossas palavras morreram, até que ela rompesse o silêncio com sua fala forte e determinada, ou, ao menos, era assim que ela tentava parecer.   

— Entendi... — Ela respirou fundo e se levantou. — Então será assim! Eu irei estudar qualquer besteira nos próximos anos e você irá assumir os negócios da sua família.  
Não se preocupe, o dono me disse que se eu quisesse poderia trabalhar cobrindo as folgas nos feriados e finais de semana, então você ainda me vera quando vier derrubar alguns pinos. Isso não te parece bom? Aí você pode me contar de como quase se queimou no metal derretido e eu te conto como a vida de um universitário é monótona e desanimadora. — Ela finalizou piscando para mim.  

E eu, sem qualquer palavra ou reação que pudesse se equiparar a sua presença tão amável, cheguei a desejar tê-la conhecido há muito tempo.  

Contudo, acredito que nosso encontro não teria a mesma resolução em uma ocasião diferente.  

Afinal, naquela tarde dois jovens perdidos se encontraram e formaram um improvável laço entre suas almas.  

E assim seria, ela seria meu abrigo e eu, seria o dela. Mesmo quando a vida derrubasse todos os pinos da nossa pista, mesmo quando o calor da forja fosse maior do que eu pudesse suportar, mesmo quando os ferros machucassem minhas mãos e o peso da rotina monótona jogasse os ombros dela para baixo, ela ainda estaria ali para mim e eu ainda estaria ali para ela. 



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