Magna Ordem Brasileira

Autor(a): Tomas Rohga


Volume 1

Capítulo 15: A proposta do Juiz

Thales não podia acreditar… Simplesmente não queria acreditar que Maya havia morrido bem na sua frente.

Girou o pescoço devagar, encontrando a figura de Caleb, ainda na casa da Torre, limpando o resto de vômito dos lábios enquanto ofegava; seus olhos pregados sobre o cadáver incinerado no chão.

Maya sempre passou dos limites em suas piadas. Crescemos juntos na mesma vila…”

Com um misto de raiva e aflição, Thales se recordou da fala despretensiosa de Caleb, pressentindo o pior através de um arrepio que lhe subiu pela espinha. Ainda imóvel, testemunhou o colega franzino erguer o olhar descontrolado por trás dos óculos e o cravar sobre aquela mão cadavérica do outro lado.

— Não faça isso! — rugiu Thales, esticando o braço por instinto.

Mas algo estranho aconteceu.

No momento em que Caleb pegou impulso para correr, sua passada travou antes mesmo de tocar o solo. Thales piscou duas vezes diante da cena, perplexo com a habilidade de Caleb de sustentar aquela pose sem tombar de cara no chão, porém, ao correr as vistas pelos demais, notou que todos eles estavam igualmente congelados.

Na sequência, uma janela conhecida e brilhante brotou no meio do ar. Trazia a seguinte mensagem:

 

«!»

A partida se iniciou com uma jogada inválida. Um Juiz aguarda o Jogador para a revisão do lance.

 

— O quê…?

Thales piscou antes de concluir a frase, alarmando-se quando a realidade se transformou. Era como se, na velocidade de um piscar de olhos, seu corpo tivesse se movido até uma dimensão onírica, como na vez em que usara o Orbe de Teleporte para aparecer na sede da Magna Ordem. Para completar, sua barriga já não doía mais: a perfuração havia milagrosamente fechado.

Começando a andar pelo local, percebeu que o solo parecia encoberto por uma névoa opaca que pairava até as canelas, embora fosse sólido como rocha embaixo de todo aquele vapor. Bem acima dele, um céu noturno envolvia todo o espaço, espalhando-se como um enorme quadro negro salpintado de constelações, nebulosas e poeira estelar tão visíveis que começou a sentir vertigem ao encará-las por muito tempo.

Então girou as vistas para lá e para cá, encontrando algo que lhe chamou a atenção à distância de alguns metros: uma mesinha de uma perna só com um assento de cada lado. Num deles, sentava-se um sujeito fantasmagórico, que fitou diretamente na direção de Thales e disse numa voz etérea, apontando para o lugar vago:

— Não tenha medo. Aproxime-se e puxe uma cadeira para você.

Com as sobrancelhas formando um arco, o rapaz preferiu se aproximar com cautela, enrugando mais e mais a testa ao assimilar a aparência intrigante de seu anfitrião.

Era um ser alvo como a neve e, à primeira vista, Thales imaginou que fosse um anjo. A entidade vestia terno e luvas brancas, cingindo a pele pálida e os cabelos compridos da mesma cor. De suas costas brotavam asas de pássaro e, pairando acima da cabeça — que revelava orelhas longas e pontudas, mas a ausência de olhos —, havia uma auréola.

 

 

Entrementes, quando finalmente se sentou, Thales compreendeu que a mesinha, em verdade, era um tabuleiro de xadrez esculpido em mármore maciço, cujas poucas peças se distribuíam exatamente na posição em que seu grupo se espalhou no interior da sala do Guardião Morto-Vivo.

— Eu morri de novo? — Foi o primeiro questionamento de Thales.

A entidade sorriu, o que se tornou uma visão um tanto perturbadora pela falta dos olhos. Quando falou, sua voz ressoou diretamente na cabeça do rapaz:

— Afinal, nos encontramos…

— Você me conhece? — Ele não hesitou. Por algum motivo, seu coração não sentia um pingo de medo.

— Eu sou aquele que te convocou para este mundo.

As órbitas do rapaz se arregalaram e ele começou a tossir diante da informação. Thales começou a bater no peito e, quando finalmente controlou o acesso, limpou a saliva dos lábios e falou; os olhos dourados cintilando de fúria:

— Por que você fez isso?

— Ficou irritado? — O sujeito de branco tocou levemente no Peão do tabuleiro. — Preferia estar morto naquele seu mundo?

— Eu… eu… — O questionamento obrigou Thales a refletir. Apesar de todos os desafios que enfrentou em Cablanc, sua cabeça foi invadida pelos rostos de Ellin e de Claus, além, é claro, de se sentir sortudo por ter chegado vivo até ali. Respirou fundo. Talvez aquele estranho tivesse razão. Prosseguiu com a cabeça mais fria e perguntou: — Por que você me trouxe para este mundo?

— É uma história longa. Muito longa e antiga…

— E não pode me contá-la?

Com o sorriso curioso se transformando na expressão inabalável de alguém que continha eras de vida e conhecimento, a entidade descreveu um círculo com o dedo.

— O tempo é uma cobra que morde o próprio rabo — explicou ele, sem explicar direito — e, assim como o tempo, as respostas estão no seu passado, presente e futuro.

Ali, Thales compreendeu que não havia mais espaço para seguir no assunto com a mesma abordagem, por isso resolveu tangenciá-lo com outra dúvida:

— Quem é você, afinal?

A entidade fez um sinal de joia, abrindo e fechando as asas com uma leve dignidade.

— Sou o Polegar.

— Engraçado… Sempre imaginei que elfos ou anjos teriam nomes mais… imponentes.

— É verdade. Devo me parecer com um elfo do seu ponto de vista. — A entidade agarrou as próprias orelhas. — Contudo, a resposta para quem eu sou, o que eu sou, ou mesmo o lugar em que estamos, realmente faz tanta diferença para você?

O rapaz voltou a pensar e, mais uma vez tomado pelas lembranças recentes daquele mundo, optou pelo silêncio.

— Você está aqui por um simples motivo, Thales Belacruz: ser julgado pela partida que acabou de jogar.

De repente, recordou-se do motivo de ter sido enviado até aquele local após o aviso de Mitty, captando também uma movimentação nos limites de sua visão periférica que logo se revelou como outra criatura incomum, ainda mais alva que Polegar: uma silhueta no formato de um gato caminhava pelas proximidades; uma pequena criatura sem boca e sem olhos cujo corpo parecia feito de luz sólida, tremeluzindo como neve em combustão.

— Um gato? — perguntou Thales, distraído.

Polegar pousou as mãos sobre a mesa e, virando-se na direção do animal, rebateu em tom enigmático:

— Será mesmo?

Thales permaneceu em silêncio enquanto processava aquele novo conjunto de informações, achando bastante difícil de ler o rosto — e as intenções — de alguém que não possuía olhos. Finalmente perguntou:

— Então você é o Juiz?

Polegar concordou com um aceno.

— Aqui — disse ele, apontando para o tabuleiro de xadrez à frente de ambos. — Diga-me, Thales Belacruz, o que você teria feito para vencer estar partida?

Desde o momento em que passou a considerar a sala do guardião como um tabuleiro e seus colegas como as peças do jogo, Thales já havia montado sua resolução.

— Deslocaria Caleb para a sétima casa, obrigando o Rei adversário a se mover para o lado. Ayane daria o xeque-mate na próxima jogada.

— Muito bom! Um jogo bastante simples, convenhamos. — A entidade apanhou a peça do Cavalo branco de Thales e a deslocou até a casa em que Maya havia sido incinerada. — Mas seu Corcel executou um movimento irregular.

— Maya… — O jovem apertou os punhos ao se recordar da cena. — Aquilo foi cruel… As pessoas deste mundo não sabem o que é xadrez?

— E como poderiam? As peças de um jogo têm consciência que estão pousadas sobre um tabuleiro? Da mesma forma, uma pessoa só pode viver no interior da realidade que a cerca. É por isso que você foi proibido de revelar que veio de outro mundo.

Thales refletiu durante algum tempo, encarando o gato de luz lamber a própria pata à distância.

— E o que acontecerá agora?

— Agora…? — Polegar coçou o queixo. — Bem, você precisa ser punido pela jogada irregular, é claro, mas vou lhe oferecer duas opções.

— Quais seriam elas?

Polegar abriu a palma da mão esquerda diante de Thales, mostrando que segurava um Peão.

— A primeira é… Desista do jogo e você retornará para o seu mundo, pouco antes de morrer. Com essa escolha, você desaparecerá daquela masmorra, deixando seus colegas para trás e Maya Arcângelo permanecerá morta. — A entidade abriu a mão direita, mostrando outra peça: um Rei. — A segunda opção é: desista do seu sistema e retorne para a sala do guardião, mas lhe entregarei um item que poderá salvar Maya Arcângelo.

— V-você tá falando sério?

— Sobre as duas coisas. Eu nunca minto.

— E que garantia eu tenho?

A entidade sorriu.

— Não há garantia. As duas opções dependem da sua fé. A grande questão é: confiará em si mesmo ou nas pessoas que o cerca?

— Eu…

Os pensamentos do rapaz começaram a girar. Se fosse para salvar Maya e realmente desistir do sistema, como sobreviveria àquele mundo assustador de Cablanc sem a ajuda de Mitty? E, caso retornasse para a Terra pouco antes de morrer, conseguiria fugir daquele assaltante no banheiro? Não havia alternativa fácil.

— Qual é a sua decisão, Thales Belacruz?

Mais uma vez, encarou aquela estranha entidade desprovida de olhos. Por que ela o havia revivido naquele mundo, afinal…?

Pensou que, talvez, jamais obtivesse a resposta, por isso esticou o braço por cima do tabuleiro e pairou os dedos entre apanhar o Peão ou o Rei.

Thales fez a sua escolha.



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