Volume 1
Capítulo 3: Virando a Noite Acordado
Enquanto saía da casa, San até ficou tentado a pegar algo: um vaso antigo, talheres de prata, até considero um quadro. Mas se segurou. “Não vou cometer o mesmo erro. Sou ruim em roubos.”
Fora da casa, viu sobrar 200 créditos. Com isso, teria de pagar o aluguel, contas, comida e imprevistos futuros. Em resumo, iria trabalhar em dobro esse mês.
***
Começou o dia cedo, trabalhou igual sempre no bar e, ao dar meio-dia, se preparou para caçar. Vestiu-se de roupas verdes, escolheu deixar seu cabelo e rosto normais dessa vez. Colocou sua bolsa nas costas, pegou sua besta com flechas e prendeu o cinto cheio de facas de arremesso.
Seu objetivo era pegar uma presa grande e que desse uma boa quantia de dinheiro. Saiu dos portões em direção à floresta; já preparado, ia é ao norte, havia sido marcado no seu mapa na noite anterior, era um bom lugar para caçar.
***
Passaram-se horas, e só achou animais pequenos; ao menos treinou a mira e pegou um pouco de carne.
Continuando a procurar, avistou um rasto de animal. O seguindo, viu um cervo jovem, um dos chifres quebrado ao meio e comendo umas frutas caídas. Não era grande, porém, o suficiente para vender e ganhar um bom dinheiro.
San se preparou atrás de uma árvore, pegou sua besta e mirou; esperou o momento certo, onde o vento estivesse no seu favor e o animal numa posição boa.
Levantou sua cabeça, sem hesitar, apertou o gatilho. A seta disparou no caminho perfeito, direto na cabeça. Infelizmente, seja por descuido ou azar, o cervo notou o projétil vindo em sua direção e conseguiu desviar por pouco. Sabendo que sua vida estava ameaçada, fugiu; San, vendo sua chance de o matar escapar, pegou uma de suas facas e atirou.
Dessa vez acertou na parte de trás dele, e ainda assim, correu pra longe. No entanto, San tinha uma trilha de sangue. “Sabia que o matar com uma das minhas facas seria impossível; pelo menos posso o seguir agora.”
Olhando para baixo, foi em frente em um ritmo calmo. Preferia evitar pisar em galhos e fazer barulho alto, assustando o animal novamente.
Lentamente, San seguiu o caminho, se perdendo de vez em quando, principalmente na hora de chegar em um matagal de espinhos e ficar tudo confuso, só pra se achar sem querer.
Depois de quase uma hora, chegou em um lugar repleto de arbustos e mata cobrindo o caminho, entrou, esperançoso que seu objetivo se aproximava Chegando perto, conseguia ouvir sons, como se estivesse sendo mastigado.
Indo contra seus instintos de sair dali, seguiu o som. Se enfiando no meio de galhos afiados e arbustos espaçosos, achou a origem do barulho.
Deitado no chão, seu cervo era devorado com ferocidade. O pior era não ser por animais. Eram grandes, pelos negros os cobrindo e pequenos espinhos saíam de suas costas. Dentes pontiagudos iguais a navalhas e pálpebras grudadas. Caninospinos, monstros que até humanos sozinhos conseguiam matar, mas sabiam disso, por isso andavam em bandos.
San tentou se afastar silenciosamente; eram praticamente cães melhorados, seus olfatos também incluídos. Por sorte, sua concentração era em comer. Voltando de costas, sempre os vendo, conseguiu sair sem ser visto ou ouvido.
Prestes a correr o mais longe possível, um rosnado foi ouvido. Na sua frente, um o achou. “Parece que nem todos tavam juntos ainda.” O Caninospino mostrou os dentes e pulou focando acertar seu rosto; San desviou rolando no chão e imediatamente, pegou uma das suas facas. Aproveitando a investida falha, arremessou.
Acertou, e com isso, um grito horrível ecoou pelo lugar inteiro. San correu o mais rápido possível; sabia ter pouco tempo, precisava ser inteligente. Compreendendo perder em velocidade, passou um tempo procurando e encontrou uma árvore alta e que dava para escalar.
Normalmente, conseguiria subir até o topo em segundos; porém, o nervosismo de ser mordido a qualquer hora o assustou, fazendo quase cair ou derrubar sua besta. Sentando-se em um galho longo, soltou um suspiro. Em segundos, seis Caninospinos o rodeavam, soltando latidos, que doíam só de ouvir.
Em vão tentaram pular, felizmente de nada podiam fazer. Se acalmando, pensou: “Isso é estranho, estamos muito perto da cidade, os monstros nunca se aproximam tanto. Sabem que podem ser mortos facilmente.” Ainda irritados ou com fome, continuaram tentando achar um jeito de subir.
Depois de meia hora, pararam de fazer barulho e ficaram sentados, de algum modo, mesmo suas pálpebras sendo grudadas, o encaravam a todo momento. “Sinistro. Tomara que achem um alimento melhor logo.” Sabendo que poderia demorar, San se deitou no galho, e com o som das árvores ao vento, pássaros cantando e o clima fresco, adormeceu.
Acordando assustado, evitou cair por pouco. Pela cabeça tá virada para cima, viu o sol quase se pondo; com medo de ter de ficar preso ali de noite, se virou para baixo e viu que nenhum deles havia ficado, só pegadas indicando terem ido embora.
Comemorando internamente por estar perto da cidade e nada o atrapalharia, desceu. Antes de começar sua corrida, analisou as pegadas por um tempo. “Elas estão estranhas, visíveis demais, e é como se todas tivessem ido para lados diferentes.”
Uma lâmpada acendeu na sua cabeça, percebeu na hora o que aconteceu, e pulou de novo na árvore. Quando já estava alto, um Caninospino surgiu do nada, pulou e, mesmo sendo alto, conseguiu morder na perna de San com uma força monstruosa.
A dor era péssima; os dentes eram pontudos e queriam ir mais fundo. Sabendo que outros viriam e com suas mãos o prendendo no galho, chutou o seu focinho com a outra perna. Usando toda a força, os dentes só se prendiam, e pior, seus braços se cansavam, ameaçando-o de cair. Sem outra ideia, arriscou e soltou uma das mãos, vacilando um momento. Pegando suas facas, arremessou nele, nem conseguindo mirar, o que só o fez ficar furioso a cada corte recebido. Desesperado, teve de jogar várias facas.
No chão, os outros parados, observando com as bocas abertas, babando incessantemente.
— Me solta! Cachorro do capeta. — gritou a plenos pulmões enquanto atirava.
Depois de inúmeras facas se prenderem no seu corpo, o Caninospino finalmente soltou e caiu no chão. Seus parceiros começaram a cheirá-lo e, vendo estar morto, uivaram para cima.
“Merda, e agora? Já vai anoitecer e não vão embora.” pensou subindo a um galho alto. Antes de tratar o ferimento, deu uma última olhada pra baixo. Sua raça era fraca e comida difícil de achar, por isso, se olharam e começaram a comer o companheiro caído.
Aguentando o nojo daquela cena, San tirou de sua bolsa um spray e bandagens. Teria de fazer isso rápido, o cheiro de sangue podia atrair outros. Passou o spray no machucado e usou sua camisa na boca, para evitar gritar. Depois, aplicou as bandagens, enrolou bem firme. “Talvez eu fique bem, estou perto da cidade, os monstros talvez nem vir.”
San sabia que suas chances eram baixas; a noite era imprevisível, qualquer coisa poderia acontecer. Escalando até o fim da árvore, torceu para que, se um monstro passasse por baixo, escolhesse seguir em frente.
Afastando as folhas da frente, San conseguiu ver o sol se pondo. Quando a noite caiu, tudo mudou. Todos os outros sons foram embora: animais ou insetos sumiram. Quanto mais escuro ficava, pior era; podia-se ouvir constantemente sons de pegadas, uma hora algo correndo e, outra, algo sendo mastigado.
Um pouco aliviado de nada ser atraído pelo seu cheiro, ficou um pouco melhor. Nem se importou com o que sobrou do Caninospino no chão; sangue de monstro era completamente preto e fedia. O de humano atraía cada besta, como uma luz no meio da escuridão.
As horas se passavam, vários monstros iam e vinham: grandes, pequenos e os que fariam pessoas normais desmaiar só de olhar. Por conta disso, não conseguiu dormir nem por um minuto.
San nem sabia que horas eram, ligar a tela do seu relógio faria luz, e preferiu continuar esperando ao arriscar. Numa hora, a situação tava calma, de repente, ouviu uma voz vindo do fundo da floresta, de uma mulher, ótima de se ouvir, dizendo para se aproximar.
Sem questionar, começou a descer, utilizando as pernas para se sustentar. Ao utilizar a perna machucada, sentiu uma dor horrível se espalhando, o acordando imediatamente.
Atordoado, olhou de onde vinha a voz; pela luz da lua, viu a aparência da mulher: usava um vestido branco lindo, cabelos negros descendo como uma cascata, e um corpo ótimo, mas seu rosto desfigurado. Marcas de garras por toda a parte e a mandíbula sendo segurada por um pedaço de pele podre.
Vendo sua presa recusando a descer, a mulher se aproximou a passos graciosos e tentou falar de novo. Faltando pouco para se hipnotizar, San usou a perna ruim e conseguiu se acordar.
A mulher se irritou com isso; sem hesitar, se jogou na árvore, batendo compulsivamente. A cada segundo, San rezava para nada a ouvir e chamar a atenção de outro monstro, ou pior, que conseguisse subir.
***
No primeiro raio de sol, os sons de monstros sumiram, tornando-se uma floresta normal. Por garantia, usou sua perna para sentir um pouco de dor; tinha de ter certeza estar acordado.
Confirmado que estava tudo normal, desceu com a besta nas mãos; se visse um Caninospino, daria um tiro. No entanto, nenhum restou, e voltou para a cidade mancando. “Agora entendi o motivo de só os mutantes se arriscarem a ficar fora dos muros à noite. Deve ter um jeito de sobreviver, com certeza vou descobrir.”
Durante seu caminho, se ouvisse o mínimo de som suspeito, apontava sua besta. Chegando nos portões, os guardas ficaram surpresos e tentaram puxar conversa; San os ignorou e foi para casa. Não precisou guardar a sua bolsa com as carnes; jogou-a fora quando os monstros sentiram o cheiro.
Só se jogou na cama, com seus equipamentos e o resto. Dormiu o dia inteiro, só acordou à noite e tirou o que incomodava; após isso, voltou ao sono.
Acordando de manhã, tomou um banho e se arrumou para ir ao trabalho.
Demorou mais do que o normal por mancar. Ao chegar, havia pessoas olhando com espanto; alguns até admiração. Ignorando, foi se trocar.
Arrumado e indo ao balcão, o chefe o esperava. Era um homem de quarenta anos, uma barriga grande, barba castanha e a parte do meio da cabeça era careca. Avistando San, abriu um sorriso.
— Bom dia, garoto, como está?
— Bem, obrigado. Me desculpe por faltar ontem.
— Que isso, tudo bem; até voltou rápido.
— Rápido?
— Sim, geralmente quem passa a noite lá fora demora um tempo para voltar ao normal.
Surpreso por já ter sido descoberto, perguntou:
— O senhor sabe?
— É, um dos guardas que te conhece veio beber; naquela noite, disse ser uma pena você ter ficado para fora e, se nossa cidade não fosse tão isolada, poderiam enviar um grupo de busca.
— Ele tá certo, em outras cidades é até normal passar a noite fora.
Percebendo faltar alguém, San perguntou:
— E a Sarah?
Mostrando um pouco de tristeza, respondeu:
— Ela tava trabalhando nessa noite. Sabendo que você tava para fora, ficou branca como papel; faltou no dia seguinte, mas recebi uma ligação dizendo vir hoje. Mudando de assunto, percebeu a diferença no bar?
Dando uma olhada ao redor, tava normal, logo se lembrou: o bar tinha uma tradição. Aqueles que sobrevivem a uma noite lá fora têm a foto pendurada na parede. Virando-se para a parede ao fundo, seis quadros com os rostos dos sobreviventes presos na parede: quatro homens e duas mulheres. Embaixo de cada foto, uma plaquinha com o nome da pessoa escrita. O da ponta, o rosto de San.
— Como conseguiram uma foto minha?
— Nem me diga! — deu um tapa forte na mesa. — Você não tem redes sociais nem tira fotos de si; por isso peguei a do seu currículo, por sorte tá recente.
“Desde pequeno me ensinaram a chamar pouca atenção em mim, mas acho que dessa vez dá.” O chefe foi embora ao seu escritório, onde só sairia de noite, e San continuou trabalhando.
Pouco tempo depois, Sarah apareceu; evitou conversar e mal deu oi. Enquanto trabalhavam, San recebeu elogios de clientes; outros perguntaram como foi, receberam respostas vagas.
Perto da hora de sair, Sarah o chamou; disse que o estoque precisava ser organizado. Fez com prazer, estava cansado de ficar andando, sua perna o matava de dor.
Enquanto arrumava as caixas, Sarah entrou fechando a porta e, com uma pequena maleta, disse:
— Senta aí e me mostra a sua perna.
— O quê? — Mostrava um sorriso confuso.
— Tá óbvio que você não foi ao médico; deve ter posto um curativo para parar o sangramento. Me mostra a perna.
San fez, sabia que Sarah tinha uma irmã médica, talvez pudesse ajudar. Quando ela tirou as bandagens, fez uma cara de espanto, porém, continuou. Borrifou produtos e tirou uma agulha e linha da maleta.
— Deixe a perna imóvel, tenho que dar ponto no machucado.
— Você sabe fazer isso?
— Pareço não saber?
— Que isso, imagina. Tem até um ar profissional ao seu redor.
— Bom mesmo.
Enquanto dava os pontos, falou:
— Por que vai para fora dos muros?
— Dinheiro. — Respondeu, segurando-se em uma prateleira.
— Se quer dinheiro, arranje um emprego de verdade; você trabalha meio período aqui e faz outros bicos em lugares diferentes.
— Gosto de caçar; ficar muito tempo nos muros é sufocante. Será que tem anestesia aí? — Perguntou enquanto agarrava uma caixa de doces a esmagando.
— Se você gosta tanto de caçar, deve aguentar a dor; engole o choro.
— Entendi, tá brava pelo meu trabalho.
— Podia ter morrido.
— Mas to aqui, vivo e melhor que muita gente por aí.
— Por quanto tempo?
Sem uma boa resposta, permaneceu quieto. Após terminar e ver estar tudo bem, ela respondeu:
— Evite colocar peso na perna, depois de uns dias, ou vem pra cá e eu tiro os pontos, ou tira você.
— Valeu, te devo uma.
— Deve mesmo! Viciado em economizar, só iria ao médico se sua perna estivesse caindo. Ajudei bastante, quero uma recompensa.
San já imaginava o que era, sorrindo, falou:
— Só pedir.
— Amanhã à noite, no novo restaurante, às 19 horas. Duvido trabalhar à noite com uma perna assim, sei que tá livre.
— Tá bem, desde que a gente divida a conta.