Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 11: Fuga

A pessoa era da minha altura e usava um capuz. Talvez fosse ele.

— Encapetuzado? — questionei no meio da fumaça.

— Encapetuzada pra falar a verdade — falou. Sua voz era fina e agitada.

Não pude trocar mais palavras com ela, pois meu pulso foi agarrado e começamos a nos mexer na confusão.

Uma silhueta biodemônica apareceu. Por um momento, pensei que a Encapetuzada me entregaria aos seus aliados, porém passei a confiar nela quando paramos.

Ela tirou uma bola carnuda da roupa e tacou ao lado. O objeto imitou uma voz de criança pedindo socorro e a silhueta se afastou aos poucos de nós.

Devagar, seguimos em frente enquanto os gritos e gemidos de dor continuavam. Rezei para Esmael e Sisa estarem bem.

Infelizmente, eu pioraria a situação ao procurá-los, então foquei em ficar de pé.

Pelas distrações da Encapetuzada, as minhas chances de permanecer vivo aumentavam a cada passo.

Conforme desviávamos de diversas silhuetas, a luz dos cristais entrando nos meus olhos ficava mais forte.

A fumaça estava acabando. Saímos dela antes do cheiro de óleo queimado parar.

— Agora corre — cochichou a Encapatezuda. Já dava para ver seu capuz bege, surrado.

Entramos em uma fenda apertada. Uma escada nos esperava, assim como alguns esqueletos e roedores.

Ouvi um último grito atrás de nós e apressei o passo. Quase cai de cara no chão descendo dois degraus de uma vez, mas consegui chegar em uma área apertada.

Era um comércio aberto, porém morto.

Paredes faziam companhia a barracas decadentes, mercadorias cheias de moscas e estruturas quebradas que clamavam misericórdia por uma reforma.

O local virou a morada de criaturas rastejantes e de pessoas que não ligariam para duas crianças correndo desesperadas, assim seguimos entre as barracas e por dentro delas.

Cheguei em uma barraca estilo cartomancia. Haviam objetos empilhados e uma variedade de tecidos rasgados no seu interior.

A Encapetuzada me pegou pelo pulso de novo para me guiar entre os panos.

Bati minha cabeça diversas vezes em toalhas devido seu passo apressado. Quando tirei uma teia da cara, ela parou.

— Eles nos perderam por enquanto. Na verdade, acho que todo mundo da fumaça morreu antes de pensar em nós. — Vi um brilho por baixo de seu capuz.

— Morreram é uma palavra muito forte — falei fraco.

Se Esmael e Sisa estavam na confusão, quem garantia que resistiram a ela?

— É mesmo, aquela árvore ambulante e o cabelo de palmeira eram seus amigos. Foi mal. — Deu tapinhas nas minhas costas. — Não se preocupe com eles, ficarão bem.

— O cabelo de coqueiro e a Sisa não estariam nessa se você…

Shhhhh! Vamos conversar quando chegarmos na minha casa. Ainda estamos na corda bamba aqui. — Pegou um tapete.

Com o pano nas mãos, ela moveu uma mesa e um buraco apareceu.

De imediato, me afastei e balancei a cabeça.

Fenda por debaixo de alguma coisa nunca foi uma notícia boa para mim.

Da última vez que entrei em uma, duas partes de mim foram embora e deixaram feridas.

Infelizmente, eu teria que tampar o buraco do meu peito por alguns minutos, pois ouvi vozes furiosas saindo de fora da barraca.

— Anda logo. — A Encapetuzada me chamou com a mão.

Olhei para o buraco. Era fundo, porém as paredes não eram espinhosas; eram lisas como um baiacru sem medo.

Ela colocou o tapete rente a borda da fenda e pediu para mim sentar nele.

O som das vozes furiosas aumentou, então agarrei o pano sem pestanejar.

Com os pés, a Encapetuzada nos moveu e descemos pelo buraco. Não era uma queda profunda. Estava mais para um escorregador hardcore.

Agarrei o pano do tapete até encostar uma unha na outra. O vento tomou conta da minha cara e uma escuridão também. Estávamos velozes demais.

O pior veio quando paramos de escorregar em uma única direção.

Uma claridade azul apareceu.

Dentro do buraco que me enfiei, haviam outras fendas.

A Encapetuzada pegou as bordas do tapete e virou à direita. Entrei em modo terceira pessoa nessa hora.

Para piorar tudo, pedras apareceram no caminho e tivemos que fazer loops para desviarmos delas.

Quase bati o cotovelo no segundo encontro com as rochas. Pelo menos não haveria um terceiro.

Entramos em um buraco e batemos direto em uma parede, almofadada. Cai observando uma cama, um guarda-roupa quebrado e uma cozinha improvisada.

Bati de cara no chão; enquanto a Encapetuzada caiu leve como uma pena.

Desgrudando o rosto, tive uma surpresa. O solo começou a tremer e quando fui tentar ver o que era, laços vivos vieram de todos os lados da casa.

Tentei desviar, mas fui enrolado. Fiquei parecendo uma múmia.

Enquanto eu tentava resmungar com a boca tampada, a Encapetuzada tirava seu capuz. Finalmente consegui vê-la.

Era uma biodemônia, porém nunca vi alguém com aquela face. Ela tinha chifres diferentes do demais e seu corpo era muito felpudo.

— Surpreso com uma fauna? — questionou limpando seu vestido de farrapos cinzas como seus pelos.

— …

— Casinha, dá uma moral pro menino — gritou alto.

Os laços saíram da minha boca, mas se apertaram ainda mais no resto do meu corpo.

— Dá pra me soltar? — questionei, me remexendo.

— Depende se você me disser onde está o Frepe, Frepe. — Apontou uma faca para mim.

— Muita calma nessa hora. Eu sou o Frepe. Não lembra daquela vez em que brincamos ou falamos sobre… peixes… — Estiquei a sobrancelha.

O xenoprago dono da minha aparência era de Linfrutes. Segundo Elideus, ninguém conhecia o moleque, então eu não teria problemas. Ele estava enganado.

A Encapetuzada balançou a cabeça e a apontou para meus olhos.

— Nunca conversei com ele. — Abaixou a faca. — Até tentei uma vez, mas ele não respondia nada. Só chorava quando eu tentava me aproximar dele.

— Tá bom não sou o seu Frepe, mas me chamo Frepe ainda — falei rápido, tentando desenrolar os laços vivos.

— O que aconteceu com ele? — questionou meio tristonha.

Engoli a saliva. Dizer a verdade talvez a deixasse com mais arranhões ainda, porém a mentira poderia me colocar em uma situação irreversível.

— Ele morreu no evento da bomba de pragas, né? — ela acertou em cheio infelizmente.

— Foi o que me disseram. — Fiz sim com a cabeça.

— Vi ele saindo com aqueles dois idiotas. — Rangeu os dentes. — Talvez tenha sido melhor assim.

— Sinto muito.

— Não sinta. Sabe o que significa seus olhos cinzas, né? — Piscou.

— Claro que sei… Que xenoprago de olhos cinzas não sabe de tal informação?

— Se sabe está bom então, mas sabe o porquê de você está em Linfrutes? — Apontou a faca novamente.

Comecei a desembuchar tudo que Esmael me ensinou além de 108 formas de xingar alguém em Inferno.

Na minha origem como Frepe, eu era uma mercadoria que cresceu em um lugar abandonado e esquecido. Quando a água dos rios locais foi contaminada por uma criatura invasora, fui vendido por meus pais.

Os meus parentes me trocaram por dois pães e fui parar nas mãos de uma senhora. Antes de conseguir chegar na casa da velha, Esmael apareceu para me salvar.

Infelizmente, ele me roubou ao invés de comprar, então precisei de uma identidade nova para poder viver em Inferno. Frepe estava disponível.

Viemos a Linfrutes apenas para organizar a papelada.

Hmmm! — Pegou seu capuz de volta e mexeu nele. Saiu algo dele. — Esse ovo comprava tudo.

Ei! Para de roubar as pessoas. — Sorri um pouco.

Chegou a minha hora de jogá-la contra a parede. Em nenhum momento eu esqueci da multa do Croc.

— Você está devendo dinheiro pra mim e o meu pessoal. — Dei um pulo e fiquei em pé.

— Eu? — Olhou para o teto.

— A comida que você roubou do nosso barco-vivo estava boa? Porque ela arrumou uma confusão no porto e nos deixou com uma multa gigantesca.

— Uma delícia. — Fez um joinha.

Dei pulos para cima dela, mas laços saíram do teto para me conter. Fiquei de ponta-cabeça e com ódio da fauna.

— A minha casa não vai deixar você me machucar. — Ela recostou na parede.

— Vai me deixar aqui pra sempre? — gritei enraivecido.

Na na ni na não! — Estralou a língua. — Carne de xenoprago não é minha praia, então deixar você no meu armazém seria ruim e esconder corpos dá um trabalho danado.

Arregalei os olhos. Se ela detestava colocar a sujeira debaixo do tapete, tinha experiência na área dos assassinatos.

— Tenho uma ideia melhor pra você. — Arregalou os dentes.

— Fala logo. Minha cabeça tá doendo, sua maluca. — Eu estava rodando que nem um espeto nos laços.

— Já vi o seu Esmael passando pelas redondezas e sei que ele pode me ajudar em uma coisinha. — Estendeu o braço para abrir seu Meliodes. — Convence ele a me ajudar que eu te dou o dinheiro da multa.

Ela nem sabia o valor, mas a quantia de falsos era suficiente para pagar quantas multas eu precisasse.

De imediato, fiz sim com a cabeça.

— A minha ideia inicial era te capturar. O dinheiro vai servir também. — Senti os laços se desafrouxarem.

Cai de cara no chão. Talvez eu tenha ganhado um pescoço de titânio no meio da transformação para Frepe.

— Temos um negócio fechado. — Apertou a minha mão sem permissão. — Prazer, meu nome é Bila e preciso que seu amigo Esmael convença aquela árvore ambulante a matar alguém pra mim.



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