Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 17.2: Lobisomem

 Como a chuva tinha parado, fomos até a casa da Crane. Ela não estava se sentindo especialmente bem, então ela tinha faltado o serviço naquele sábado. Para dizer a verdade o próprio departamento a havia dispensado do serviço.

 Mas estávamos especialmente curiosos para saber o que ela achava do depoimento dos dois recém-capturados, principalmente porque ela foi a única quem viu de perto os três que assaltaram a central na semana passada. Por isso havíamos combinado de passar na casa dela depois do serviço.

 Crane morava entre Cheawuld Garden e High Cheawuld Garden. Não era muito longe de carro.

 — Agora estou com fome. Será que a Emma tem algo para comer? — Perguntou casualmente Joey enquanto dirigia a viatura.

 — Vamos lá para ver como ela está passando e você vai pedir comida? Por que não pediu aquela porção quando estávamos no Marina’s?

 — Eu acho ela muito gordurosa...

 — Eu não... É uma das melhores porções da região... Se importa se eu acender um aqui no carro?

 — À vontade, tenente.

 Acendi. Abri a janela para jogar a fumaça. Embora Joey tenha deixado não acredito que ele goste muito da fumaça no ambiente.

 — Falando em gorduroso... O que o Jabes estava fazendo lá na frente?

 — O Jabes?

 — É. Ele estava lá no DCAE quando eu cheguei. Ele não veio até aqui só para falar do lobisomem, veio...? A Ewalyn iria acabar dando a notícia de qualquer jeito. Ou vai me dizer que ele também está brigando para passar o caso para o DEA?

 — Não. Ele sabe muito bem que o Sanford é um caso especial. Ele é o único que sabe o que está acontecendo. Nós só contamos para ele porque ele é o policial do DEA que sabe a verdade sobre os seres paranormais. Inclusive ele está ajudando a manter segredo da imprensa.

 — Que bom que ele sabe o que está acontecendo, porque eu não faço ideia.

 — Eu não quis dizer que ele sabe quem é o serial killer da mordida, só quero dizer... Ele sabe diferenciar um ser paranormal de um serial killer nesse sentido. Mas o que motivo de ele ter vindo é outro.

 — Que outro motivo? E creio que você tinha que ter virado ali, não?

 Joey titubeou entre uma freada busca e continuar seguindo enquanto bufou arrependidamente.

 — Pfft! Segunda vez que eu erro o caminho.

 — Você pode fazer a volta na próxima quadra... Que outro motivo?

 — Ele estava com um pedaço de ferro com sangue. Ele achou na cena do McMiller. Sabe? Onde nós dois fomos procurar o Sprohic naquele dia.

 — Joey... O que você está fazendo?

 — Você não disse para virar na próxima?

 — Na de antes... Essa é contramão. Agora você vai ter que pegar a Howling St e fazer a volta...

 — Ah...

 Inclinei meu banco para trás porque pelo visto aquilo ainda ia demorar um pouco.

 — Na cena do McMiller? Um pedaço de ferro? E o que tem de tão importante?

 — Estava sujo de sangue. Ele disse que teoricamente foi usado para abrir a janela. Você lembra de termos achado um ferro na cena?

 — Certamente não. Não é algo que passaria despercebido em uma inspeção... O que quer dizer? Crê que alguém colocou lá depois para dar a entender que o serial killer não era o Sprohic?

 — Deve ser. Só pode ser. Mas ainda não entendi o que se ganha com isso.

 — Isso, agora vire ali à direita. — Apontei.

 Joey fez conforme o instruído.

 — Eu creio... — Continuei — Que deve ser alguém relacionado ao caso da sexta passada. Ou aquele negro que venceu vocês ou alguém relacionado. Afinal ele estava buscando silenciar o Sprohic. Significa que o Sprohic sabe alguma coisa. A ideia de jogar o DEA na pista errada é que eles não queiram que eles entrevistassem Jeffrey Sprohic. Se eles tivessem feito isso provavelmente teriam ficado sabendo que o irmão dele ainda estava em Sproustown e teriam ido atrás? Deve ter sido por isso... O DEA poderia ter descoberto Alexander antes da sexta-feira se alguém não tivesse feito alguma coisa... E assim aquele sujeito que te derrubou com um pedaço de pau não poderia ter sequestrado Sprohic na sexta. Então tudo deve ter sido armado premeditadamente para evitar que ele revelasse seja lá o que for que ele sabe.

“Se alguém não tivesse feito alguma coisa...” Isto é: Se “alguém” não tivesse colocado aquele ferro lá... Felizmente o Jabes foi quem achou o ferro então não deve ter falado nada para o DEA, mas veio mostrar direto para nós. Tudo indica que tem alguém que não quer que a polícia saiba alguma coisa que Alexander sabe. O que será essa coisa?

 — Tenente... É aqui, não? A do muro amarelo.

 — Isso. — Desvencilhei-me do cinto.

 A casa de Crane era pequena e ela a mantinha toda escura. Ela morava sozinha ali, sem nenhum familiar, animal de estimação ou sequer vaso de planta. Apenas ela e a mobília, trancadas na casa eternamente escura, da qual não se abriam as cortinas por muito tempo.

 A porta encontrava-se aberta.

 — Oi Crane. Oi Ewalyn.

 — Oh, vocês estão aí? — Disse Ewalyn surpresa.

 Elas estavam sentadas no sofá da sala.

 — Viemos ver como você está. — Disse Joey à Crane.

 — Agora estou melhor... Acho que não vai acontecer de novo. Mas ainda não consigo lembrar de nada...

 Uma cópia do jornal “Underground Citizen Report” estava aberta no sofá, no colo de Crane. Era a página que dizia sobre o caso do lobisomem. Crane me pegou olhando o artigo de canto de olho.

 — Isso? Ewalyn me mostrou... Mais uma pessoa foi atacada... — Crane entregou o jornal para eu ler e deitou-se em seu assento. Ela parecia ainda exausta.

 — Droga... E eu deixei a casa toda trancada por fora na quinta à noite...

 Alguns lobisomens quando estão no período de transformação acabam cometendo atos violentos sem se dar conta. Há relatos de casos onde eles saciam sua fome e só então voltam a si, alegando que não se lembram de nada do período quando estavam transformados.

 Na maioria das vezes um lobisomem, entretanto, não se alimenta de carne humana. Um lobisomem pode se alimentar de qualquer tipo de coisa, contudo ainda assim comete atos inconscientes em um estado fora de si durante a época da metamorfose. Esses atos cometidos inconscientemente podem ser de caráter violento ou não, dependendo do estado psíquico do indivíduo.

 Você já deve ter adivinhado, mas sim... Emma Crane é um deles. Crane é um lobisomem.

 E durante aquele mês em especial, a cabeça dela deveria estar uma coisa que só. Ela foi atacada por aqueles três alienígenas vindo a ficar hospitalizada, depois ela sofreu tentativa de assassinato por envenenamento, e na sexta passada ela acabou por deixar Sprohic ser capturado.

 Não estou dizendo que deixar o homem ser capturado tenha sido uma grande falha, digo... Certamente foi ruim para nossas investigações, mas o pior de tudo foi ela ter sido vencida numa luta corpo a corpo e ter sido atirada no chão. Isso deve ter contribuído mais para o estresse. Imagine: Aquele sujeito negro, seja lá quem for, poderia tê-la matado uma vez que ela estava no chão se ele assim quisesse...

 — Minha nossa... E ali diz que pessoas ficaram machucadas.

 — É mentira, Crane. Diga para ela que é mentira.

 Joey concordou complacentemente:

 — O Underground Citizen Report é um jornal sensacionalista, Emma…

 — Não comece. Vocês só estão dizendo isso para me fazer sentir melhor...

 Eu e Ewalyn nos entreolhamos sem saber ao certo o que dizer. Eu podia dizer que ela estava enfrentando aquele tipo de atitude desde sabe lá que horas ela estava ali. Por um lado ela queria que Emma não se sentisse culpada pelo que ela não é (já que tudo que ela fez, fez de modo inconsciente), mas por outro lado Crane não conseguia perdoar a si mesma.

 Crane, contudo, já não estava em estado tão deprimente. Já tinha passado do estado da depressão e estava caminhando ao estado da conformidade.

 — Ah... Vamos mudar de assunto? Vocês querem beber alguma coisa? Comer alguma coisa? — Crane perguntou em tom quase que autoritário enquanto se levantava.

 Joey deve ter se segurado perante o convite à refeição.

 Não era novidade que Crane ficava especialmente irritada antes e depois de seu estado transformado, ou seja, ao redor do mesmo. Você se lembra como eu e o Joey às vezes brincamos com ela sobre “o período do mês”? Quando fazemos isso estamos falando sobre seu estado lobisomem e não de outra coisa.

 — “Ahem...” Então já que é para falar de outra coisa... Nós gostaríamos de saber sobre os nossos recém-capturados — Eu me referia a Pierre e ao Bad Boy, que capturamos na quinta.

 — Henry... — Ewalyn quis dizer algo sobre minha falta de tato ao ir direto ao ponto perante a situação de Crane, mas não conseguiu expressar-se em palavras a tempo. De qualquer maneira Crane pareceu nem se importar:

 — O que têm eles dois? — Ela dirigiu-se à geladeira e pegou algum tipo de bebida destilada e com sabor artificial que desconheço.

 — Você chegou a vê-los... Falar com eles pessoalmente, certo?

 — Sim... — Ela trouxe a bebida e copos.

 — E algum deles era daqueles outros três?

 — Do ataque da segunda-feira? Não... Não reconheci a aparência e nem o ductu. Se eu tivesse reconhecido teria avisado. Acho que o que eles disseram deve ser tudo verdade. Eles pareciam especialmente assustados com a possibilidade de serem levados para a Arena ao invés de Silverbay. O Alexander Sprohic realmente se encontrava no lugar que eles disseram e a descrição do outro ser paranormal batia com a descrição daquele desgraçado da sexta-feira — Ela proferiu a palavra pejorativa com mais gosto que as outras — Então é de se pensar que o resto da história seja verdade: eles não trabalham para nenhum dos três que eles deram o nome em específico e foram contratados por aquele homem pela primeira vez.

 — Isso é de uva? — Perguntou Joey em mistura de espanto e curiosidade.

 — Por que a pergunta? — Ela dirigia-se à “minha” pergunta.

 — Não sei... Apenas estava curioso.

 Um baita eufemismo para alguém que veio ali só para perguntar aquilo. Estava tão ansioso para obter alguma coisa que relacionasse Pierre e Bad Boy ao incidente daquele dia que nem pude esperar a segunda-feira.

 Infelizmente nem tudo é como a gente quer... Crane tem razão: provavelmente nada nesses dois eventos está relacionado.

 — Por que vocês estão me olhando? — Dirigi-me a Joey e Ewalyn — Crane tem razão. Só o que podemos fazer é seguir em frente e mudar de assunto. Isso só aconteceu por causa da soma das circunstâncias. O pico do mês já passou. É o tipo de coisa que acontece... E não vai acontecer de novo.

 Tentei esclarecer-me da forma mais casual para que pudesse deixar Crane o mais à vontade possível. É claro que sabíamos que embora nada de muito ruim tenha ocorrido durante a morfose existia a possibilidade de ter acontecido. Mas não é algo que se possa controlar. Quando não há nada a ser feito o melhor a fazer é não fazer nada.

 — Eu só penso... — Crane suspirou enquanto enchia seu copo com aquele líquido rosado — Parece que eu mais atrapalho do que ajudo com essa...

 — Claro que não, Emma! — Objetou Ewalyn.

 — Não mesmo. — Concordei eu — Sem sua habilidade você seria tão útil como um mero guarda humano comum. E se for verificar... Toda raça paranormal tem suas fraquezas. Veja o lado bom. Pelo menos você não tem que ficar viciada em SPP e se auto-mutilar regularmente para manter sua força. — Olhei rapidamente meu celular — Falando nisso tenho que tomar as minhas de novo.

 Escapando daquela parte hipócrita da conversa, saí da sala e fui até a saída lateral, que dava para o quintal da Crane. Apesar de ter bastante espaço ela não tinha nada de lá. Nem plantas, nem um jardim, nem sequer grama... Nada.

 Tomei a liberdade de usar daquele espaço para a cena grotesca que era o uso do SPP. Como eu já comentei não era apenas pegar o comprimido e tomar. Só se pode tomá-lo se ele for agir sobre alguma ferida que o corpo tenha, e por isso infligimos as feridas nós mesmos antes de engolir o comprimido.

 Arregaçando as mangas encarei amargamente minhas cicatrizes. Um aglomerado delas, manifestando-se como em dégradée, algumas velhas, outras novas, todas amontoadas na mesma região.

 Peguei minha faca esterilizada e rasguei mais um corte horizontal, de mais ou menos três centímetros. A dor embora costumeira é ardida e penetrante. A ferida se abriu e começou a sangrar, chegando a pingar no cimento do quintal de Crane por cinco ou seis listras que correram avidamente fora de meu braço. Diante daquela cena lamentável nada compensa o eretismo, que treinei tantos anos no treinamento beta. Salve ao eretismo.

 Eu fui ali não só para o SPP, mas também para aproveitar e fumar um cigarro. Nada como o cigarro para ajudar a aguentar a dor do ferimento.

 Ewalyn apareceu atrás de mim. A primeira coisa que ela fez foi estender a mão, pedindo um cigarro para ela.

 — Crane parece menos culposa agora que vocês chegaram.

 — Ah é? Que bom. — Disse engolindo a pílula.

 — Então quer dizer que quando você quer, você consegue lidar com ela melhor do que o esperado. Eu estava aqui desde as seis e meia...

 Ambos saímos da entrada e fomos até o centro do quintal.

 — Estou acostumado, eu diria. Crane é mais racional do que emotiva. É igual a mim. É de se esperar que as palavras que mais façam efeito nela são as que fazem sentido racional, e não as de efeito emocional.

 Ewalyn manteve-se em silêncio.

 — O que eu disse não é mentira, entretanto. O caos mensal de um lobisomem é um preço pequeno a se pagar se comparado ao das drogas.

 — É? Eu nunca me importei muito.

 — Você provavelmente nunca tentou ficar sem elas por um tempo para ver o que acontece.

 — E por que faria isso? Fomos instruídos a nunca ficar sem o SPP no treinamento beta.

 — Você não faria por vontade própria, lógico. Mas eventualmente chega o dia em que somos capturados pelo inimigo e... Ah, sei lá. Tudo pode acontecer.

 — Já aconteceu com você?

 Acenei afirmativamente, meio que a contragosto.

 — Já? Mesmo? Por quê?

 — Digamos que... Eu não exatamente era o homem que mais pensava antes de tomar suas atitudes há alguns anos atrás. Era daqueles que achava que podia fazer o que quiser sem enfrentar consequências.

 Ewalyn desatou a rir.

 — O que?

 — O que foi isso? “Não exatamente era?” “Anos atrás?” Essa é justamente a impressão que eu tenho de você agora!

 — Como?

 — Eu quis dizer... Esse homem que não pensa antes de tomar as atitudes. Isso é tão... atual.

 Enrubesci.

 — Ora... Não é verdade... Creio que amadureci, eu apenas...

 — Henry... Tão adulto e tão criança... 

  Ewalyn começou a acariciar meu ombro amigavelmente.

 Me encarou novamente com seus olhos claros enquanto o fazia. Cada vez que contemplava seus olhos por acidente eu lembrava mais e mais da falecida Betty.

 No mesmo instante Joey chegou, vindo da sala.

 — Hã... Estou atrapalhando alguma coisa?

 — Não... O que foi?

 — É que já estava na hora. Eu e o “outro eu” temos que dormir cedo... — Eu havia sim prometido dar a carona de volta para o Joey porque eu queria usar a viatura no dia seguinte.

 — E aí está outro preço a se pagar por ser paranormal. — Disse à Ewalyn.

 — Preço? Eu queria ter uma desculpa para dormir cedo. — Ela brincou.

 Todos voltamos para dentro e nos despedimos de Crane. Ewalyn estava com o carro dela, e ela morava em Glen Meadow, que era do lado oposto. Eu fui embora com o Joey.

 Ele morava lá perto de casa, mas por um motivo eu nunca realmente fui até a casa dele. Ele sempre me diz para deixar na rua, até mesmo porque a rua dele é sem saída, então ficaria contramão para mim.



Comentários