Volume 1
Capítulo 1: A luta contra os espíritos
Os magos morreram.
Uma frase que muitos temiam ouvir estava sendo repetida sem parar. Mesmo quem nunca se importou com a necessidade deles no vilarejo de Prospéria, passou a entender o peso dessas palavras ao encontrar-se completamente indefeso.
Aos poucos, as verdejantes luzes dos círculos de magia eram visceralmente apagadas por criaturas enormes e horrendas banhadas em sombras e sangue. Os Demônios Internos.
Bastou que alguns dos civis perdessem o controle do que era chamado de paz espiritual para que essa rebelião começasse. De dentro dos corpos dessas pessoas saiu a podridão de seus pensamentos negativos, tomando controle de suas vidas.
A tragédia dessa noite fez com que, pela primeira vez, a gigante muralha do Oeste fosse abandonada, deixada de lado pelos vigias para ser a testemunha de um massacre que surgiu bem debaixo do nariz deles.
Destruição, gritos de desespero e muita dor preencheram o ambiente. Àquela altura, a estrutura que havia sido responsável por assegurar a vida nos vilarejos do Leste Continental poderia ser a única coisa que restaria de pé no dia seguinte, perdendo seu propósito por completo.
— Abandonem os postos e desçam pelas plataformas! — ordenava o comandante enquanto corria pela extensa passarela com sua espada presa em uma bainha feita de rocha vulcânica. O brilho das veias de lava que passavam pelas imperfeições dela marcavam a presença de seu portador. — Cheguem o mais rápido possível até o vilarejo, evacuem todos e matem qualquer criatura à vista, sem hesitar! Eles não são mais seres humanos.
Alguns guerreiros de classe mais baixa que estavam fazendo a patrulha dos vilarejos haviam se juntado à batalha, mas poucos restavam de pé. Quando tudo já parecia perdido, a maioria dessa humilde resistência que estava espalhada pelos distritos simplesmente passou a correr por suas próprias vidas.
Era hora de ignorar quem não era capaz de lutar para se salvar.
O desejo de continuar a viver superava qualquer senso moral, pois por pior que pudesse ser considerado esse tipo de pensamento, seja para um guerreiro recém promovido ou não, a voz de comando mais arrebatadora vinha de dentro.
Quem falava mais alto era o instinto de sobrevivência.
Em meio à essa catástrofe, um bravo senhor ainda mantinha esperanças de conseguir salvar alguém em especial.
— Isabel! Vamos, filha, responda!
Albert andava pelos escombros de um antigo centro de cura em chamas que parecia uma cena de guerra. A fumaça nos corredores destruía sua garganta bem mais do que seus próprios gritos desesperados.
Em cada sala que entrava em busca de sua filha, só encontrava corpos pendurados ou soterrados nos escombros. Era impossível saber se ainda poderiam ser salvos ou se tudo que restava ali era a metade do que um dia já foi uma pessoa.
O tempo estava correndo, a fumaça o sufocava e achar a sua filha era tudo o que importava. Era necessário seguir em frente.
— Você precisa voltar, Isabel!
Nenhuma resposta.
Ele olhava preocupado para uma pequena esfera que segurava nas mãos, emitindo uma luz esverdeada bem sutil. Dentro dela estava um bebê com um corpo frágil, respirando com dificuldade.
— Eu vou tirar você daqui, Oliver. Você vai viver e nós três vamos voltar para casa. — Tentava tranquilizar a criança, que mal reagia à sua voz.
As chamas não paravam de consumir o local e era difícil saber se as pessoas do lado de fora também já estavam todas mortas ou se o estalar do forro de madeira queimando era simplesmente barulhento demais para ouvir suas vozes.
Ao passar pela porta que levava até a ala principal, o local também estava vazio. O chão começou a estremecer e um grito avassalador ressoou, vindo da outra extremidade dos escombros.
Um Demônio Interno de cerca de cinco metros entrou no centro arrebentando as paredes.
Seu corpo era deformado, com braços e pernas desproporcionais entre si, porém muito fortes. A criatura corria raivosamente e de maneira desajeitada em linha reta, derrubando tudo no caminho enquanto gritava como se estivesse no ápice da sua dor. Ao chocar-se com uma das pilastras, acabou decretando sua própria morte, fazendo tudo desmoronar.
Albert tinha que correr, mas não conseguia. Seus pés cansados e corpo machucado não obedeciam mais ao que sua mente queria que fizessem. Nem mesmo conseguia dar seu último berro de desespero ou abrir os olhos, já cegos pelas centelhas.
Só restava aguardar pela morte enquanto segurava a criança em seus braços com toda sua força.
De repente, silêncio...
Quando abriu os olhos novamente, encontrou-se envolvido pela escuridão. Angustiado e sem saber se estava mesmo vivo, voltou a gritar. Ainda sem conseguir correr, começou a arrastar seu corpo na direção de um facho de luz que brilhava à sua frente com esperança de que a criança havia sobrevivido.
Seu coração em idade avançada aos poucos voltava ao normal. Albert ficou de joelhos e levou as mãos à cabeça.
— Essa maldita noite outra vez — reclamou enquanto se dava conta de que tudo havia sido um sonho. Uma lembrança implacável que o perseguia. — Isso já aconteceu há anos. Maldita caverna sem iluminação.
Ele olhou para trás e viu fiapos de seu humilde monte de palha que ele arrastou para fora. Tratou de levantar-se e arrumar tudo outra vez, mas não tinha condições de tentar adormecer de novo depois de um terror tão intenso.
As dores no corpo, no entanto, eram bem reais, então ele fazia tudo lentamente, escorando-se nas irregularidades das paredes que já conhecia muito bem.
Saindo novamente, viu um garoto se aproximando pela beira do córrego que passava logo em frente de sua morada. A expressão do jovem era de felicidade.
— Chegou o dia, vovô! Hoje eu tenho certeza que vou poder começar a nossa trajetória de volta ao topo — disse ao perceber que Albert olhava para ele. Era Oliver, que dezessete anos depois, além de estar crescido, apresentava um corpo bem saudável.
— O dia não começa até comermos alguma coisa, garoto — respondeu ainda atônito. — Depois falamos sobre isso.
Morar em uma fronteira entre vilarejos tornava fácil o trabalho de encontrar árvores frutíferas que não tivessem nenhum dono. Chegando na base de uma macieira, ambos pegaram seus bambus, que sempre ficavam escondidos em montinhos de folhagens, derrubaram algumas maçãs e começaram a comer e conversar.
— É tão legal ver a luz do sol batendo na muralha quando ele nasce. O pôr do sol deve ser incrível também — disse o neto olhando fixamente para a gigante estrutura.
— Você sabe que lá do outro lado não tem só o pôr do sol, não sabe?
— Tá, eu sei — respondeu revirando os olhos. — Têm assassinos, torturadores, ladrões e mais um monte de pessoas perigosas, mas isso não me preocupa. Nós não estamos tão longe da área central da muralha e lá tem vários guerreiros vigiando ela.
— Deveria se preocupar justamente por estar na área com maior risco de invasão! Ainda mais se continuar com essa ideia de juntar-se a eles na Guarda de Prospéria.
Albert havia levantado a voz. Percebendo que estava exaltado, suspirou por alguns segundos e voltou ao normal.
— Olha, eu te conheço e sei que você não dura um dia naquele lugar, garoto. Temos uma ótima vida do jeito que ela é. Prospéria conquistou de volta a perfeição no convívio aqui nesse lado do continente, vamos aproveitar isso! — Sorriu.
— Todos vocês acham que eu não sou bom o suficiente para enfrentar os perigos do lado Oeste? — perguntou irritado.
— O que eu acho é que no primeiro desentendimento com alguém lá dentro do quartel, você vai querer sair no braço contra todo mundo.
— Eu não sou desse jeito — disse cabisbaixo.
— Infelizmente, é. — Havia pena e uma ponta de remorso na fala do avô. — Talvez... se as coisas tivessem sido um pouco diferentes, eu poderia ter tentado colocar você para viver ao lado de outras pessoas, mas...
— Mas nunca fez isso! — Oliver o encarou com seus olhos azuis, que naquele momento pareciam um tsunami de inconformidades. — É sério que justamente o senhor vai ficar com medo porque eu desenvolvi habilidades de mago? Isso faz parte da nossa família e a energia espiritual é sim uma habilidade da Natureza como qualquer outra, não é o que dizem por aí.
Depois de toda a contestação, não houve nada além de silêncio das duas partes por alguns minutos. No máximo, ouvia-se os sons da faca de Albert descascando as frutas. O neto tentava fazer o mesmo, mas seu pedaço de pedra pouco afiado não conseguia acompanhar o ritmo. Enquanto o vento passava pelas árvores, o avô sentiu uma leve voz ecoar em seu interior.
"Daremos uma nova chance a ele", foram as palavras que ele ouviu, causando um arrepio em seu corpo. Era como se alguém conversasse com seu pensamento, mas em um som impreciso, variando entre tons femininos e masculinos.
"Isabel sonhava que ele tivesse um futuro, não quero voltar a ter que me preocupar com isso", respondeu em pensamento para a voz. Cada palavra trazia de volta as imagens da noite do massacre e Albert se esforçava para buscar memórias de tempos mais simples.
"Olhe para ele, já está sem futuro. É como se tivesse morrido naquela noite de qualquer forma. Te dou o direito de continuar sendo quem é, mas ele tem o direito de ser melhor", insistia a voz.
Albert ouvia enquanto observava Oliver mordendo raivosamente a última maçã, entendendo o problema de sua decisão. Uma vida isolada do mundo não faria bem ao garoto que logo seria o último da família Rivail vivo no continente.
— Pelo jeito, está com sorte. Eles vieram aqui de novo — disse pausadamente, com uma voz cansada e parcialmente arrependido do que viria em seguida. — Não tenho dúvida que você pode ser um mago excepcional, Oliver, mas se conseguir passar dessa vez, não use suas habilidades para violar as regras lá na Guarda. Sua presença não será tolerada se não souber se comportar.
— Isso quer dizer que o senhor vai me apoiar? — A animação do garoto voltou quando recebeu a notícia.
— Sinceramente, só estou fazendo isso porque tenho medo das coisas serem piores se eu disser não, além do mais, você já falhou tantas vezes, o que custa tentarmos de novo? Agora, levanta, em posição!
Oliver deu um salto de alegria e não parecia ter ouvido uma palavra sequer depois de "eles estão aqui", mas Albert não pôde evitar de sorrir também ao ver o garoto tão empolgado enquanto se preparavam.
Lentamente, o avô foi apagando. Era como se voltasse a dormir, mas seus membros continuavam em movimento, dando início a um combate. Quando todos os impulsos passaram a acontecer fora da sua vontade e as dores musculares não eram mais sentidas, tranquilizou-se.
Um dos espíritos que falava com ele havia estabelecido total controle.
Nessa condição, bastava que Albert esperasse a luta acabar. Sua própria alma continuaria no corpo durante esse tempo, mas inativa e sem noção do que acontecia ao seu redor. E, de um idoso, passou a agir como um homem no auge de sua capacidade física.
Não era esperado que o garoto vencesse o confronto, seria praticamente impossível. Oliver estava exposto ao delírio de uma multidão de espíritos diferentes lutando na tentativa de afastá-lo.
A cada minuto havia uma troca de quem o enfrentava. Sempre um estilo diferente e alguém mais forte.
Porém, bastava um movimento certeiro. Bastava que o neto encontrasse, em meio a todos eles, a conexão de Albert, o laço que o ligava àquele corpo, e fixar essa conexão outra vez para botá-lo de volta no controle.
Por ter perdido temporariamente todos os seus sentidos, o avô nem mesmo podia imaginar quanto tempo havia passado, ele era obrigado a esperar que a luta acabasse para satisfazer sua curiosidade. No entanto, aos poucos, começou a perceber as sensações do corpo voltando, até que sentiu uma espécie de solavanco.
Albert viu-se de pé com uma mão segurando seu rosto com força. Olhando por entre os dedos ele notou um brilho que marcava um círculo no chão, começando a se desfazer. A conexão de alma e corpo havia sido estabelecida novamente.
— Eu avisei... que hoje era o dia — disse Oliver, ofegante, enquanto tirava a mão do rosto do avô. — Agora, se me der licença, tem um certo quartel onde preciso me apresentar.
Mal sendo capaz de dar alguns passos à frente, além de cambalear bastante, não demorou para que o garoto desmaiasse.
— Isso aqui foi só uma parte do que você será capaz de fazer — disse abrindo um sorriso verdadeiro, finalmente aceitando o destino do neto. — Além disso, você tem que se preparar para lutar contra alguém vivo, então precisa continuar melhorando. Lembre-se de que viver é a arte de persistir e resistir.
Tudo o que ele pensava era em Oliver criticando-o por ter que ficar ouvindo essa frase centenas de vezes.
— Esse garoto vai honrar a chance que recebeu, com certeza.
***
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