Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 76: Decepção

Lucas acordou com diversos barulhos atolando sua cabeça. Era coisa quebrando na parede, gritaria, como se o mundo estivesse caindo e Lucas não pudesse fazer nada para evitar.

Era difícil mexer o corpo, e demorou até para se dar conta que estava dentro de um quarto na sua cabana, olhando fixamente para um teto de madeira e coberto por diversos cobertores.

Ele jogou os cobertores para longe e com muita dificuldade se levantou, tendo que apoiar a mão nas paredes para andar apropriadamente pela casa.

Uns corredores depois, avistou o cômodo da sala com diversas luzes acesas, e assim ficou mais discernível as vozes das pessoas.

— Nem pense em tocar no meu homem, sua mulher de coração gelado — disse alguém com uma voz semelhante a de Lilith.

— Seu homem?! O Lucas não é de ninguém, pare de tentar invadir o quarto dele de noite! — rebateu alguma Solein extremamente irritada.

O rapaz, escutando tudo atrás da parede, passou a mão no rosto e rezou a Deus para que não fosse realmente o que ele estava imaginando.

Deu um passo em frente, virando a cabeça para encontrar a sua sala de estar completamente cheia, tendo desde os generais do rei demônio a Amora bebendo leite numa vasilha de plástico.

Precisou de muitos segundos para processar o porquê havia um minotauro esqueleto sentado perto de dois demônios cadeirantes e um anão velho jogando cartas.

Os dois, inclusive, eram Igibris e Philomeu, os dois estavam sem os movimentos das pernas e eram constantemente ajudados por servos demônios a jogar as cartas apropriadamente.

Pior ainda era olhar para o lado e encontrar seu mestre obedientemente tomando leite enquanto Aegis o acariciava com o maior sorriso do mundo.

Isso sem contar no velho Tremwin conversando com a quimera-toupeira Toper sobre filosofia e tópicos extremamente cultos, enquanto Nictis, o cachorro demônio, se aconchegava na fogueira.

Para finalizar a cena com chave de ouro, existia um epicentro para o caos e barulheira, que eram duas mulheres puxando o cabelo uma da outra e se xingando como se não houvesse amanhã.

Uma parte da parede ficou com tábuas quebradas e uns estilhaços de gelo cortaram a estrutura, e quanto mais barulho faziam, mais as veias no rosto de Lucas se multiplicaram.

— QUE PORRA VOCÊS TÃO FAZENDO AQUI?!?

Todos pararam o que quer que estivessem fazendo, concentrando-se no dono da casa encostado no portal da sala, com olhos flamejantes encarando todos ao mesmo tempo.

A pressão e aura que exalava por meramente tornarem sua casa que construiu com as próprias mãos era gigantesca, traço herdado de sua mãe que possuía uma habilidade muito semelhante.

As duas garotas no canto pararam imediatamente, ainda puxando o cabelo uma da outra, mas saíram de perto e arrumaram as próprias aparências.

Elas desviaram os olhares e assobiaram, cheias de vergonha por terem sido capturadas no meio de uma briga infantil como aquela. 

Lucas passou a mão no rosto e respirou muito fundo para manter a calma, o caos instalado ao seu redor o fazia querer se jogar pela janela e sair correndo.

No entanto, necessitava de algum traço de autocontrole, do contrário realmente reviraria a casa e o tumulto causado seria muito pior do que só eles estavam fazendo.

— Por favor, quem não tem nada a tratar comigo, saiam daqui e voltem para casa… — Ele virou o rosto na direção do ancião elfo e em seguida para os generais demônios. — Levem a Lilith e Solein nem que seja a força, eu seriamente não quero elas aqui dentro.

As respectivas pessoas acenaram com a cabeça e agiram para tirar as icônicas figuras caóticas de perto.

— Pai, por que o senhor tá do lado dele? — perguntou a elfa de cabelo de prata, com expressão chorosa. — Eu preciso conversar com…

— Filha, amanhã fazemos isso. Vamos, hora de voltar pra casa. — Em seguida, ele acenou para o mestre Lucas. — Mais tarde conversarei com você, jovem. Desculpe a má educação da minha filha.

Solein continuou com a mesma expressão, mas obedeceu ao pai e seguiu em direção a saída com um passinho muito lento, querendo capturar qualquer momento que pudesse antes de ir embora.

— Me larga, seus malditos! — berrou Lilith, forçando Krevo a segurá-la pelos braços e arrastá-la rumo a saída. — Eu preciso ficar perto do meu amor, me solta, anjo filho da… Humf, humf!

Uma mordaça feita de pedra se formou nos lábios da súcubo, Aegis fez aquilo por pura precaução para não terem mais problemas com a língua afiada daquela mulher.

Em seguida, Toper levou Nictis com uma oleira feita de corrente, fazendo com que Philomeu fosse o último. O homem, ajudado por um serviçal demônio, parou no portal da sala.

— Peço desculpas pelo inconveniente, Lorde Lucas. Tratarei de puni-la apropriadamente como seu superior.

— Faça como quiser. 

Dito isso, o demônio copiador saiu da sala, restando assim somente Lucas, Igibris, Hurrto e Amora. O quarteto se encarou por pouco tempo, até o rapaz, mancando, apanhar uma cadeira e se sentar.

— Certo, o que precisamos conversar?

— Primeiramente: você é um grande idiota — atacou Amora, com palavras mais afiadas do que nunca. — O seu amigo demônio me conscientizou da maioria das coisas, e devo dizer que me enganei do quanto você mudou em relação a antes. Se duvidar, continua tão problemático como sempre, o que é uma pena. Deveria ter esperado a minha aprovação se pretendia realizar um movimento tão arriscado, o que evitaria de cometer uma grande idiotice como a que me foi contada.

— Por que eu tava esperando você falar isso? — Lucas se espreguiçou na cadeira, seus dedos ainda estavam meio dormentes. — Eu sei que fui apressado, mas queria ir.

— É, mas se tivesse esperado um pouco mais, a situação seria amena. Caro Igibris, pode explicar?

— Com prazer… — O demônio virou sua cadeira de rodas para ficar mais confortável. — Como pode ver, estou nessa situação depois da nossa luta. Não se preocupe muito, demônios se recuperam em questão de dias, então não demorará para retomar as minhas funções, o mesmo acontecerá a Philomeu. O problema, no entanto, é por conta daquele evento recente de dois lugares completamente diferentes e opostos entre si se unirem no mesmo lugar…

Para ilustrar, Igibris estalou os dedos e seu serviçal demônio abriu um mapa perfeitamente desenhado sobre como ficou o ambiente geral.

Havia uma linha clara traçando a divisória entre as terras geladas e o vulcão, junto de um desenho de caveira em cima da caverna das centopeias.

— Os residentes elfos ainda estão com medo do nosso aparecimento repentino. O mesmo aconteceu a alguns dos nossos súditos. No momento, eles estranham uns aos outros, mas não acho que demore para ocorrer situações complicadas relacionadas ao caos um do outro, além de que… Hum, como posso explicar?

— Esses demônios também são de outro mundo, como os elfos — explicou Hurrto, cruzando os braços e franzindo as sobrancelhas. — Como conversamos antes, sir Lucas, existem diversos mundos e dimensões, as masmorras são como espaços que foram isolados dessa dimensão e criados de maneira artificial, ou seja, é completamente anormal a situação que nos encontramos agora. 

O ferreiro então passou a mão no rosto, analisando a expressão em parte perplexa que o tal garoto demonstrava, como se estivesse cheio de dúvidas e não entendesse direito o que estava acontecendo.

— Para resumir. — O anão fez um desenho no ar em formato de círculo. — Imagine que existe uma esfera cheia de elementos que não se tocam. O normal é eles se manterem isolados, e juro que é a primeira vez que vejo duas dimensões se conectando, o que significa que…

— Que posso acabar me deparando com a dimensão deles hora ou outra — concluiu Lucas, como se tivesse acabado de realizar uma descoberta gigante. — E que também pode acontecer a mesma coisa com outros lugares, ou seja, qualquer espaço artificial pode acabar se conectando a este dependendo de como ele é.

— Isso mesmo. A masmorra na qual encontrou aquele representante desprezível da entidade não teve tal acontecimento, o que dificulta um pouco entender como esse tipo de coisa funciona exatamente.

— Entendi… Por sinal, por que Igibris tá tão amigável com a gente?

— Porque eu não estou em nenhuma posição em que possa me opor, e pensando de maneira muito mais lógica, ter o apoio de lorde Lucas para retornarmos ao nosso mundo parece o mais sensato. Muitos demônios trabalham para mim e estão ao meu lado para sobreviverem juntos, no entanto, ainda querem muito retornar aos seus devidos lugares. Quando minha raiva passou e pensei de forma mais lógica, não fazia sentido manter raiva e perder a oportunidade de ter os seus favores.

Lucas acenou com a cabeça, e ficou meio acoado com aquelas palavras. Eles realmente estavam perdidos no meio do nada, tendo que ajudar uns aos outros para se manterem por mais um dia.

Quanto mais pensava nisso, mais sua cabeça processava nas diversas formas em poder de algum jeito passar por mais masmorras, talvez tivessem outras espécies e seres na situação deles.

— Não é garantia, sir Lucas, mas há uma possibilidade mínima de podermos ajudar essas pessoas — declarou Hurrto, aumentando o tom de voz. — Como sabe, eu e você podemos retornar aos nossos respectivos mundos e levar qualquer pessoa conosco, e se é assim, há uma chance de também haver pessoas do mesmo tipo que vieram dos mundos deles. Ou seja, se os encontrarmos, podemos fazê-los voltarem.

Essa coisa travou na cabeça de Lucas. Era realmente uma possibilidade se levasse em conta que tanto ele quanto Hurrto foram escolhidos.

Inclusive, surgiu uma dúvida na cabeça do rapaz sobre o motivo do ferreiro não ter retornado ainda. Nada o impedia, então por que ficar naquele lugar?

Guardou o pensamento no fundo da cabeça, o resto da noite foi discutindo sobre coisas que deveriam fazer para amenizar qualquer situação arriscada num futuro próximo.

A reunião durou bastante tempo, o suficiente para até causar sono novamente, e quando terminaram de conversar, Hurrto retornou à sua cabana próximo ao lago.

Quanto a Igibris, seu serviçal demônio carregaria sua cadeira de rodas rumo ao castelo.

— Tenho muito trabalho a fazer, em especial quanto a reconstrução de algumas partes do meu castelo e certas áreas danificadas…

— Me desculpa, não foi de propósito. Qualquer coisa eu posso te ajudar a acelerar isso, tenho algumas funções de construção que são uma mão na roda.

— Mesmo? Eu aceito, não vejo problema em me ajudar, pois sua vinda foi uma benção, mesmo que alguns de meus subordinados precisem carregar cicatrizes pelo resto da vida.

Lucas teve o peso da culpa sobre os ombros ao escutar o comentário, mas optou por esquecer e esperou que o rei demônio fosse embora para ter uma conversa franca com Amora.

O gatinho roxo permaneceu quieto por boa parte do tempo, escutando atentamente a conversa e dando poucos palpites.

Quando a casa ficou vazia, o garoto se deitou no sofá perto da janela. Amora se aproximou e pulou no braço do sofá, olhando-o de cima de uma forma julgadora.

— Quando você ia me contar sobre essas coisas? Sobre essa sua segunda vida que você tinha e nunca contou?

— Foi mal, eu não pretendia dizer em nenhum momento, mestre…

— E por que escondeu isso de mim, a pessoa que você mais deveria confiar, somente atrás da sua mãe?

— Hum… — Ele mordeu o lábio, receoso de contar, mas rendendo-se no final — Porque assim que eu morrer, você vai esquecer de tudo.

— Huh? Que coisa idiota é…

— O meu poder consiste em ser capaz de acumular muitas coisas, mas tem o contra de que toda vez que eu morro, tudo começa de novo, meu mundo é reiniciado do ponto em que comecei. Qualquer coisa que eu te contar, você esquecerá… Bem, você não lembra, mas quem me ensinou boxe foi você, sabia?

Amora ficou em silêncio por um momento. Lucas raramente o encontrou com um semblante tão difícil de entender, era como se seus pensamentos e rosto estivessem desalinhados.

Por fim, o gatinho bateu no meio da testa do seu pupilo, e então arranhou a mesma região.

— Au! Doeu!

— Anote tudo o que fizemos juntos, seu idiota. Por que diabos você não pensou nisso antes?

— Eh?

— Era pra você anotar o que aconteceu nas últimas vezes, cabeça oca! Se esse lugar permanece intacto mesmo depois de você morrer, quer dizer que manter registrado o seu caminho seria a melhor forma de fazer os outros lembrarem se precisar trazê-los pra cá!

De pura raiva, o gatinho saltou em direção a janela, encarando Lucas com uma expressão irritada antes de seguir seu próprio rumo pela floresta de pinheiros.

O rapaz não o havia entendido direito, mas seu pobre mestre estava em dor por saber daquilo. A tal pessoa que jurou proteger morreu, e mais, ela morreria muitas outras vezes.

“Ronaldo se decepcionaria comigo se ainda estivesse vivo…”



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