Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 58: Flores

O retorno de Lucas não foi heróico, na verdade, agora as pessoas olhavam ainda pior que antes.

Ele fez uma grande boa ação, então por que tinham que julgá-lo tanto daquela forma? O motivo era simples: o alvo da fofoca realizou algo totalmente sobrenatural.

A dupla nem sequer precisou chegar na vila para rumores e fofocas se espalharem como fogo, pois existia curiosos que o seguiram escondidos para ver o resultado da luta.

O que eles viram, no entanto, chocou e marcou a mente de muitos, pois esse certo alguém derrotou um elfo completamente corrompido de mãos vazias.

De. Mãos. Vazias.

Ninguém acreditaria nessa história, era absurda demais para trazer qualquer grau de credibilidade. 

A maioria já estava confiante de que não poderia derrotar o garoto por suas habilidades de batalha demonstradas nos diversos confrontos com os elfos de gelo, mas pedir para acreditarem nessa falácia era demais.

Ninguém optou por confrontá-lo, e Solein rapidamente reparou no jeito que o olhavam. Com alguns sinais de mão, ela pediu gentilmente para que parassem com isso.

Além do mais, eles estavam do lado de um salvador… na verdade, chamá-lo de perigo a vila seria uma forma mais apropriada.

Capaz de usar magia, com um físico extremamente aprimorado, uma habilidade em combate corpo-a-corpo desenvolvida e supostamente mais traços desconhecidos, era melhor não causar nenhum problema.

“Ele pode ter parecido legal antes para ganhar minha confiança, mas já fui muito enganada no reino gelado. Eu não cairei nesse tipo de encanto dessa vez!”

O pensamento de Solein corroborava com sua vida antes de parar naquele ambiente estranho. 

Era comum na sociedade dos elfos de gelo haverem traições e atos imprudentes em prol de subir na sociedade, seja por status social ou econômico.

Não à toa que eles, dentre a maioria das variantes de elfos, eram os principais a terem problemas relacionados à corrupção.

A preocupação de Solein ao relembrar disso aumentou. Se um se jogou na loucura, tinha a chance grandíssima de acontecer com os outros.

O conjunto de lembranças nostálgicas e o desejo de rever amigos, família ou até ter sua vida anterior ia lentamente envenenar a mente dos companheiros.

Ela engoliu seco ao se imaginar no meio da tentação de se corromper. Seria o maior sofrimento de sua vida, sua carne se retorceria até virar uma criatura horripilante.

Tremendo um pouco, Solein respirou fundo e empurrou o pano da casa de seu pai Tremwin, dando espaço para Lucas entrar.

Uma vez dentro, ela fechou o restante das janelas e se certificou que não entrasse luz, assim a sala foi iluminada pela luz fraca de uma chama azulada na lareira.

— Opa, voltei, meu bom senhor — disse Lucas, com um leve sorriso e sem temer nada, enquanto acenava e tomava seu lugar no sofázinho. — Ele não foi tão complicado quanto eu pensei. Pela forma como vocês falaram, até pensei que ele ia ser muito forte…

— Pensou…? — O ancião pareceu cético em relação a resposta, até ver o olhar hesitante de sua filha cair sobre ele. — Quer me contar como foi lidar com o elfo corrompido? Acho que seria o melhor agora…

— Ah, claro, sem problema nenhum.

O rapaz descreveu em detalhes os acontecimentos, desde a vez que se deparou com elfo possuído até a parte que o derrotou depois de se livrar de seus pesos.

Aquelas palavras ressoaram na cabeça de Tremwin como um tremendo absurdo, mas a forma como sua filha se comportava era esquisito.

Primeiro que ela parecia sem ar, meio pálida, e quando chegavam nos pontos altos de tensão no meio da luta, seu corpo tremia um pouquinho.

Se o ancião não a conhecesse tão bem, julgaria que tivesse enlouquecido após assistir a luta de perto. 

No entanto, aqueles eram sinais claros de suas emoções, e ela nunca demonstrava nenhum tipo de emoção além de nojo e raiva para mentiras esfarrapadas.

Ironicamente, as reações dela serviram como testamento para a veracidade do que o garoto dizia, mas isso também o fez suar frio.

Se era realmente verdade, então ele não estava na frente de um humano com a habilidade de dizimar qualquer elfo guerreiro num piscar de olhos?

Pior ainda, se tal coisa era provável, não queria dizer que seu nível tinha sido limitado no combate contra os elfos no meio da floresta, e então revelado quando enfrentou o monstro?

“Agora não sei se tirei a sorte grande ou cutuquei um vespeiro. Não sei também das intenções desse rapaz, mas se eu pudesse ser pelo menos amigo dele isso já seria muito…” Os olhos do velho recaíram na filha de novo, cuja apreensão não desapareceu. “Talvez Solein consiga colocá-lo do nosso lado com esforço o bastante, só precisamos conversar antes.”

— E… acho que acabou — concluiu Lucas, sem conseguir se lembrar de um detalhe a mais. — Ah, eu acho que vi umas silhuetas se mexendo nas árvores e queria perguntar uma coisa: há monstros por aqui? Tenho procurado muito, mas nunca encontrei…

— Nã-não! Não há nenhum monstro! — exclamou o velho rapidamente, abanando a mão em discordância. — O que você deve ter visto eram… eram fantasmas! Isso, nós elfos de gelo acreditamos muito em fantasmas, e às vezes os vemos vagar pela floresta. Jovem mestre Lucas, você deve ter visto alguns por ter sido parcialmente influenciado pela nossa cultura, haha…

— Sério? Que parada maluca! Acho que vou andar mais por aí pra ver mais deles… Pode não parecer, mas eu curto muito coisas sobrenaturais e tal. Vivia vendo coisas de terror quando tava na escola, era maneiro!

— Mes-mesmo? Que interessante, esse tipo de coisa não é muito comum entre jovens. Você é mesmo especial, jovem mestre Lucas.

Tentando desconversar, o ancião enrolou a discussão por mais um tempo, querendo a todo custo agradá-lo com elogios.

Não sabia direito se funcionou ou não, mas o sorriso de Lucas aumentava conforme conversava, como se ele — tristemente — não possuísse ninguém para falar sobre aqueles tópicos.

— Ca-ham, jovem mestre Lucas, pode sair um pouco para eu conversar com minha filha? Peço desculpas por pedir isso tão de repente, mas é que…

— Relaxa, eu entendo como é. Minha mãe costuma fazer o mesmo comigo… Bem, vou deixar vocês a sós. Qualquer coisa basta me chamar, vou caminhar um pouco.

O rapaz se levantou e saiu rapidamente da casinha, por um momento um feixe de luz entrou e em seguida ficou eclipsado pelo pano na entrada.

Tremwin passou suas mãos no cabelo e largou um longo suspiro que esvaziou os pulmões. A tensão nos seus ossos velhos estava no limite.

Solein rapidamente acolheu seu pai com uma massagem nos ombros, reconhecendo imediatamente o porquê ele estava assim.

Conversar com um ser forte tinha esses efeitos, ele poderia apagá-lo no momento que achasse melhor e você tinha que agir de acordo para não morrer.

Ou pelo menos foi isso que a elfa teorizou, a julgar pelo quão pálido e cansado seu pai parecia. 

— Solein — chamou, fechando os olhos por um momento —, não importa o que aconteça, você precisa de alguma forma conseguir a confiança e o agrado do jovem mestre Lucas… pelo bem da tribo, por favor.

— E-eu?! Pai, sei que fui a mais próxima dele até agora, mas a relação entre mim e Lucas é… minha nossa, como posso dizer?

— Eu entendo que é difícil, filha, mas não há outro jeito. Você confirmou indiretamente que o que foi falado é verdade, e eu tenho medo da existência do garoto. Os fortes sempre sobrepõem os fracos, é assim na natureza, é assim na sociedade élfica. Por favor, faça o que estiver ao seu alcance, só não permita que ele faça algo extremo.

— Eu... eu tentarei, pai. — Ela desviou o olhar, não querendo demonstrar sua expressão. — O que o senhor aconselha?

— Talvez você tenha que fazer aquilo.

Aquilo?!? Mas eu is-isso é demais, pai! Como uma dama, eu não posso fazer aquilo!

— Mas precisa, talvez se você fizer, possamos colocá-lo exatamente onde queremos!

O silêncio se apoderou de Solein. Ela não podia acreditar que seu pai, de todas as pessoas, estava pedindo para ela fazer isso. A incredulidade em seu rosto não poderia ser discernivel de outra emoção. 

Ela se separou de seu pai em meio a sua própria quietude, e sem nada mais para conversarem, isolou-se no quarto. A luz do lado de fora estava acabando e lentamente havia começado a escurecer.

Pela pequena janela, era possível ver Lucas ainda perambulando, usando seus olhos estufados igual a um baiacu inflado. Ele parecia um grandíssimo idiota, com toda certeza.

Ao menos, a forma como se enturmava com os demais elfos e o jeito que se adaptava era interessante. 

Elfos não se abriam tanto a outras espécies, mas lá estava o grande idiota conversando, rindo, jogando conversa fora e ganhando a atenção de alguns dos seres mais competitivos socialmente.

Solein revirou os olhos. Ela realmente teria que fazer aquilo mesmo contra sua vontade. Remexendo as coisas dentro de seu quarto, ela abriu o armário.

Havia alguns vestidos, todos feitos com bastante cuidado por ela mesma. Suas mãos possuíam pequenos pontinhos pelo tanto de tempo que gastou costurando. 

Ela pegou seu melhor projeto possível, um vestido azul-escuro com detalhes de babados. Não havia tantas opções para os tipos de roupas ali, então precisava ser criativa ou se virar com o que tinha.

Por falta de criatividade, ela ia com a segunda opção. Escolhido sua roupa, suas mãos correram de lá pra cá, em especial com uma flor de pétalas brancas. 

Na verdade, ela acabou juntando um conjunto dessas flores, uma das poucas que nasciam naquele ambiente, e formou um buquê amarrando com uma linha branca.

Ela se olhou no espelho rústico e com uma rachadura, seus olhos ainda estavam péssimos, precisou de uma maquiagem feita de neve para esconder as marcas escuras.

Agora pentear… ela usou um penteado feito de cascas de árvores e puxou ao máximo seus fios rebeldes para que seguissem uma linha natural assim como o cabelo de uma deusa.

Ficou perfeito? Obviamente não, Solein não era uma deusa, mesmo tendo bastante beleza para se destacar em qualquer lugar. Ela demorou para perceber as horas, o tempo voou depressa demais.

Quando terminou de se arrumar, o céu escureceu. Ela saiu às pressas armada com o buquê, sua cabeça girando e se contorcendo em busca de Lucas, mas não achou em lugar nenhum.

Ela pulou a escadaria de sua casa rumo ao chão e puxou um dos elfos zanzando por ali.

— Cadê ele? Cadê o humano, fala rápido!

— A-ah, senhorita Solein! — Um soco embelezador atingiu o rosto do pobre elfo, que havia se assustado demais com a aparência da moça. — Ele… ele…

— Fala logo, maldito! Eu tô com pressa e preciso achar aquele cara antes que o pior aconteça!

— Ele disse que precisava voltar para casa e seguiu a trilha pelas árvores — sua voz saiu, mas ainda falhando um pouco por aquilo.

Com o temperamento mais desagradável possível, Solein dispensou rapidamente aquele elfo e suas coxas poderosas a fizeram quase voar pela vila numa disparada desfreada.

Ninguém ousou ficar no caminho daquela besta desperta, na verdade, queriam entender de onde veio tanta energia e força de vontade.

Só entenderam quando repararam no buquê nas mãos dela. Eles deram de ombros, entendiam bem a situação agora. Certas pessoas ficavam num estado explosivo ao terem que fazer aquilo.

Foi muita sorte tê-lo encontrado a tempo. Lucas estava de costas, as mãos escondidas nos bolsos e muito desconcentrado para escutar as pisadas fortes atrás de si.

Quando Solein se aproximou um pouco demais, ele enfim reparou na descabelada atrás dele. Uma risada se conteve, porque além do cabelo assanhado, o vestido estava um pouco manchado.

“Meu Deus, isso é um caos…” Ele coçou o cabelo e mordeu o lado da boca para evitar cair na risada. — Ola, Solein… Tá com pressa? O que você veio fazer?

— Eu… eu vim te entregar isso! — Ela estendeu o buquê e forçadamente colocou nas mãos deles, em seguida escondendo o rosto. — Na-na-não venha atrás de mi-mi-mim!

Lucas recebeu aquele presente sem entender direito. Ele olhou para as flores e cheirou, parecia menta… Não gostava tanto do cheiro, mas o que valia era a boa intenção, não era?



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