Volume 1
Capítulo 20: Traumas
A grade do bueiro ergueu-se com um gemido, cuspindo ar úmido dos túneis para a viela mais baixa do bairro dos Estivadores. Lucan saiu primeiro, curvado, capa de marinheiro escondendo o ombro deslocado que latejava desde o Cais Fantasma. Atrás dele surgiram Icarus, Gabi e, por último, Liam — o gesso improvisado do braço chiando quando raspou no metal.
A noite de Velaris Noctem parecia mais viva do que qualquer dia no resto do Império: lanternas verde-pálido balançavam sobre portas empenadas, guindastes gemiam içando redes cheias de carcaças marinhas, o ar misturava maresia, serragem e algo mais agudo — sangue fresco. Icarus sentiu a garganta contrair.
— Capuzes — murmurou Lucan. — Três travessas até o cais comercial. Nosso veleiro está por lá.
Liam puxou o gorro até as sobrancelhas. Gabi ajustou a manta sobre as costelas quebradas, engolindo o gemido que teimava em escapar. Icarus abaixou o queixo na gola, tentando ignorar o zumbido que lhe martelava o peito: fome.
A viela era um corredor de pedra suada. Barris empilhados traçavam labirintos improvisados; ratazanas gordas disputavam ossos descartados por tavernas. Passaram por carroças cobertas; de uma lona pingou um fio rubro que caiu na bota de Icarus. Ele fingiu não ver.
Logo adiante, o símbolo de duas presas cruzadas — insígnia da Guilda dos Ossos, monopolista do comércio de sangue — estampava caixas seladas com lacre quente. Gabi sussurrou:
— Se eles dominam até aqui, cada esquina pode ser uma armadilha.
Lucan não respondeu; os olhos escrutinavam sombras, calculando rotas.
Um estampido seco: madeira contra pedra. Um menino — oito, talvez nove anos — tropeça na curva.
Ele não veste farrapos: veste gaze suja engomada de sangue. Ambos os tendões de Aquiles foram cortados, e os pés arrastam-se como pesos mortos, deixando sulcos na lama. Os dedos das mãos faltam no meio, amputados nos nós — forma de impedi-lo de agarrar grades —; ferros de sutura ainda pendem das feridas, tilintando.
No peito exposto, uma marca a fogo: L-52.
A respiração dele chia; um canudinho metálico, cravado na veia jugular, pinga sangue para uma bolsinha de couro vazia presa ao cinto. Cada tropeço esguicha mais do líquido que vale dinheiro.
E ele não grita — não tem língua; apenas um rasgo cintilante de cicatriz.
Atrás, o capataz vampiro de paletó branco salpicado de vermelho puxa outra criança inconsciente — a pequena está encaixada numa maca com ranhuras, feita para drenar sangue sem erguer o corpo.
Na mão direita, um chicote-corrente de prata; na esquerda, um gotejador de cristal: ainda há vinte mililitros de vida para vender.
— Rua não é viveiro, peste — diz, a voz burocrática, como quem soma contabilidade. — Fugiu de novo? Três extrações sem sedativo quando chegar.
Ele estala a corrente. Os elos batem na carne descarnada do garoto, que cai num baque oco — a bolsa na jugular salta, o canudo rasga um pouco mais e o sangue espirra na pedra com o tique-taque de um relógio macabro.
Icarus sente o estômago virar. O cheiro é ferro quente, recém-servido. As veias dele latejam; o híbrido ergue a mão, garras involuntárias.
Lucan fecha o punho do rapaz.
A corrente enlaça tornozelo e pulso; o capataz arrasta as duas crianças sobre o calçamento, deixando um rastro de sangue que cintila sob a luz verde-pálida. Diante do portão de ferro, um guarda-frete abre a folha com manivela; lá dentro, vê-se um galpão forrado de ganchos e canaletas que vertem sangue para tonéis. Corpos pequenos, nus, pendem como trapos esvaziados.
O portão se fecha com estrondo. O rastro vermelho ainda pulsa, como se se recusasse a secar.
Icarus aperta os olhos; o cheiro grudou na garganta — mais forte que culpa, quase irresistível. Ele engole a fome — ou pensa ter engolido; ela fica ali, arranhando por dentro.
Lucan pousa a mão no ombro dele, leve como pena:
— Anda. Se pararmos para cada horror, nunca sairemos daqui para acabar com eles.
E seguem — a noite de Velaris tão brilhante adiante quanto apodrecida atrás.
Da última esquina, a visão se abriu: o Cais das Luzes erguia-se como ilha de claridade em meio à noite perpétua. Pilares de pedra sustentavam arandelas altas, e lampiões a óleo tingidos de âmbar projetavam círculos quentes sobre o calçamento molhado. Barcos de todos os tamanhos balouçavam, mastros recortados contra o céu sem lua; estandartes comerciais tremulavam ao vento salgado. Pregões misturavam-se a risadas, ranger de roldanas, assobios de estivadores. Um mercado inteiro funcionava ali, indiferente à miséria das vielas.
Lucan parou sob a sombra de um guindaste de carga.
— Ali. — Apontou para um escuna de linhas discretas, casco escuro, nome apagado pela fuligem: Sereia Velada. — Veleiro espião da Ordem. Quando subirmos, ninguém nos alcança.
Avançaram, perdidos na multidão de marinheiros, peixeiras e mercadores. Mas, a meio caminho, Gabi soltou um gemido abafado; o ferimento nas costelas rasgara outra vez.
— Está bem? — perguntou Liam, preocupado.
Antes que ela respondesse, uma voz masculina, melíflua, veio às costas:
— Está ferida, moça?
Congelaram. Todos mantiveram a cabeça baixa. Gabi respirou fundo, tentando afogar a dor.
— É só cansaço — disse, sem encarar o homem.
— Não viram um humano correndo por aqui? — insistiu a voz.
Gabi sacudiu a cabeça.
— Não. Nenhum.
Ela virou-se para retomar o passo. O som da lâmina saindo da bainha foi a única advertência. Rash — o espadachim imperial — avançou num golpe diagonal, lâmina em arco rumo ao pescoço dela.
Lucan puxou-a pela gola; o aço cortou o ar, arrancando fios de cabelo antes de passar reto.
Rash sorriu, olhos dourados brilhando sob o lampião.
— Achei você, lobo.
O capuz de Lucan escorregou, revelando a cicatriz que lhe cruzava a sobrancelha. Em volta, marinheiros recuaram alguns passos, farejando conflito — mas ninguém interveio. A Guarda do Porto vendia proteção, não heroísmo.
Lucan empurrou Gabi para Liam e Icarus.
— Corram — rosnou.
Ninguém se moveu.
— Corram! — berrou, voz que se ergueu acima do tumulto.
Gabi, Liam e Icarus dispararam, mergulhando no vaivém de corpos e caixotes. Rash não os seguiu; olhos fixos em Lucan, girou o pulso, deixando a espada descrevendo círculos preguiçosos.
O ombro direito de Lucan, o Lobo da Ordem, era brasa viva, mas ele ergueu Veritas do mesmo modo que, no templo, encarara Narrus. Rash soltou um sorriso, um indicativo claro de psicopatia.
— Cansei de fingir civilidade. Hoje vou quebrar o Lobo até virar farelo.
— Então tenta respirar depois — devolveu Lucan.
Rash mergulha rasteiro — lâmina raspando o tendão de Lucan. Sangue pinga. Lucan prende o ar, agarra uma corrente, gira e usa o peso para puxar Rash para dentro da poça de óleo. O vampiro escorrega um instante; Lucan aproveita, gira o tronco com todo o resto de força que lhe sobra e traça um arco ascendente.
A lâmina de Veritas entra sob a axila de Rash, atravessa a camada de malha e rasga músculo. O corte profundo salpica sangue negro-rubino que chia no óleo quente da lâmpada caída.
Rash solta um urro de dor — meio riso rouco, meio surpresa genuína.
— Enganar Seraphine já era incrível, humano… — arfou, recuando dois passos — mas ferir-me assim? Você é um monstro. Com mais meio palmo de força, eu seria história.
Lucan range os dentes; o braço direito pende inútil, mas ele mantém a guarda alta com a esquerda.
— Boa notícia — cospe sangue —: não tenho meio palmo sobrando, só tempo pra afastar meus amigos.
Irritado — e agora sangrando muito — Rash arranca o casaco empapado, mostra a ferida aberta.
— Então vamos ver se esse tempo existe!
Os dois pisaram no círculo dourado projetado pelo lampião mais alto. Terreno: piso de paralelepípedo molhado de salmoura, caixas de especiarias formando barricadas, correntes de ancoragem balançando num guincho e uma poça negra de óleo perto da borda do cais — cada elemento uma arma em potencial.
Primeiro impacto. As espadas rangem, cuspindo fagulhas cor de cobre na água. Lucan empurra, mas o ombro luxado recusa força; Rash percebe o sutil tremor e abre um sorriso predador. Ele avança com chute frontal no joelho do lobo, empurrando-o um palmo para trás.
Lucan devolve com o punho da espada no maxilar de Rash, abrindo o lábio do vampiro. Rash lambe o próprio sangue.
— Sabor metálico. Muito melhor que vinho — sibila.
Lucan escorrega de propósito numa poça, fingindo descontrole, e atira uma mão cheia de areia e sal nos olhos do inimigo. Rash fecha as pálpebras a tempo, mas Lucan já se protege atrás de um barril. O espadachim chuta o cilindro, que explode em salmoura e peixe podre; o jato de líquido cobre Veritas, tornando o punho escorregadio.
Rash estoca três vezes em linha reta; Lucan recua entre caixas, usando a madeira para desviar.
Com o braço bom, Lucan puxa uma corrente solta e a arremessa; os elos batem no ombro de Rash, desequilibrando-o.
Rash mergulha rasteiro — um deslizar de víbora — cortando o tendão da perna esquerda de Lucan de raspão. Sangue pinga na pedra.
Lucan estaca numa pilha de sacos de sal; cada inspiração arde. Mesmo assim, ergue a guarda.
— Sempre quis saber se os senhores do império também sangram — provoca, cuspindo rubro. — Vejo que sim.
Rash gira a lâmina como um moinho preguiçoso.
— Lucan, a Lenda… Um mito que venceu vampiros de elite ? — Ele dá um passo, arrastando a ponta da espada pelas pedras, chiado agudo que arrepia a multidão. — Hora de provar que toda lenda morre como gente.
Salta. Golpe descendente na cabeça. Lucan não tem ângulo: ergue o antebraço nu, o aço canta contra os ossos — estalo seco. Mas, usando a inércia, ele bate a guarda curva na clavícula de Rash e escapa para o lado.
Rash gargalha de dor e euforia. A máscara de boa educação está morta: olhos arregalados, pupilas dilatadas.
— Você cheira a derrota, lobo! — grita, cravando o joelho no torso de Lucan e arremessando-o contra correntes suspensas. O metal vibra, o ombro ferido estoura novo lampejo de fogo. Lucan cai de joelhos; Veritas escorrega até parar rente ao óleo derramado.
— Então acabe logo — rosna Lucan entre dentes partidos. — Preciso só de um minuto… para que eles sumam no nevoeiro.
Rash ergue a espada como um carrasco satisfeito.
— Um minuto? — Um sorriso torto, psicótico. — Vou te dar dois. Mais tempo para quebrar cada osso que Narrus esqueceu de trincar.
Ele começa a golpear combinando aço e pés — lâmina, cotovelo, chute na costela, novo corte. Lucan bloqueia o que consegue, usando o ambiente: rola por cima do óleo, levantando respingos escorregadios que retardam Rash; lança um saco de sal aberto, cegando-o por respiradas curtas; por fim, finca uma estaca de madeira solta no chão, criando distância no exato segundo em que Rash desfere a estocada fatal. A lâmina rasga a lona e prende ali, por um piscar de olhos.
Lucan vê a abertura. Mas o braço direito não responde, pendendo inútil. Ele tenta com a esquerda — o ombro bom —, mas Rash já torqueia a espada, libertando-a, e desliza o fio até o pescoço do lobo.
O aço gelado encosta na pele. Lucan ergue o queixo, encara o psicopata:
— Precisa de quarenta cortes para a glória? Eu preciso de três passos de vantagem pra ela.
Ele mira o olhar na traseira do cais, rezando para que Gabi, Liam e Icarus estejam longe.
— Que glória? — Rash sussurra, virando o fio. — Eu só quero sentir você parar de respirar.
E o duelo arrasta-se mais alguns segundos, cada golpe fazendo a plateia recuar. Mas todos — inclusive Lucan — já sabem como terminará.
Sob o guincho metálico das lâmpadas, Gabi rasgava a multidão com Liam e Icarus na cola. O Sereia Velada surgia soberbo: casco envernizado, lanternas beges balançando, marujos humanos carregando sacas de sal, alheios ao caos atrás.
— Lá! — arfou Gabi, apontando.
Cinco passos do convés.
Quatro.
Três.
Um puxão brutal, como mão de gigante, arrancou Icarus do solo. Ele girou, o ar sumiu dos pulmões; quando focou, encarou olhos gêmeos, cheios de dever frio:
— Irmão — disse Smael, erguendo-o pela gola. A mão livre empunhava Frey, a espada negra forjada para Messores.
Liam sacou a sua lâmina com o braço esquerdo e se postou entre Smael e o convés.
— Larga ele !
Os olhos de Smael — fria determinação — desceram para Frey. Ele tocou o pomo com reverência antes de avaliar Liam: quase respeito, quase pena.
O pavor incendiou o híbrido. Ele debateu-se, mas o messor era muralha viva.
Gabi deu meia-volta, as costelas protestando. A cena gravou-se nos olhos dela: Icarus suspenso, Smael impassível. O mesmo terror refletiu-se em Liam, que já empunhava a espada com a mão esquerda — a direita presa na tala improvisada.
— Vai pro barco! — gritou ele a Gabi, voz forçando autoridade sobre o medo.
— Eu não—
— Gabi! Se Lucan segurou Rash, eu seguro ele. Corre!
Gabi recuou dois passos, depois girou e correu — lágrimas involuntárias misturadas ao gosto de ferro que subia à garganta. Subiu a prancha do Sereia Velada; marujos gritaram para içá-la. Ainda escutou Liam rugindo, espada eriçada, e o estalo surdo de choque metálico quando ele investiu contra Smael.
No fundo do cais, Rash ergueu a lâmina — o último golpe contra Lucan prestes a cair. Sino do porto troou mudança de turno; gaivotas grasnaram. Cada som parecia multiplicado.
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