Em Outro Universo Angolana

Autor(a): Tayuri


Volume 1

Capítulo 19: Frigorífico De Picolé Humano

Nada aconteceu. Astrid poderia facilmente jurar que lia tal frase em qualquer lugar, seja nas paredes, portas e principalmente no rosto das pessoas.

Eles realmente não se importavam. Astrid chegou a tal conclusão após passadas duas semanas desde que foi para guerra. Desde que viu e sentiu as consequências de uma guerra. Desde que finalmente deixou o pânico e passou a enxergar os outros. 

— Astrid! Daqui a pouco irá tocar o sino. Ainda não comeste nada. Tente comer pelo menos um pouco.

— Eu vou! — Sorriu. Levou a mão para cabeça do garoto e bagunçou seus fios loiros. — Você também deveria comer. Você não tem comido quase nada.

— É porque a comida é péssima. — Astrid tentou sorrir.

— Ainda assim você deve comê-la. O... — respirou fundo. — Edward te repreenderia se você desmaia-se de fome. 

Os olhos castanhos de Logan, fugiram dos azuis de Astrid, caindo sobre sua bandeja praticamente intocada. 

— Astrid!! — Chloe chamou-a, em um claro tom de advertência. 

— O que foi? Nós ainda não podemos falar o nome dele? Eles sequer fizeram um funeral para ele. Sequer se importaram em falar sobre todos que morreram. Por que nós...

— Que diferença isso faz? — Jase se intrometeu. — Que diferença faz eles falarem alguma coisa? Sério...eles nos fazem treinar até a morte. Nos jogam em uma guerra e nos obrigam a comer essa porcaria. — Jase soltou a colher. — Acha que nos fariam um funeral?

— Mas…

— Se encontrarem seu corpo já é uma sorte. Imagina...

— Ainda assim...eles deveriam ao menos fingir se importar. Pelo menos a irmã... — Trincou os dentes. — Aquela velha...

— Fica quieta! Não diga mais nada. Vamos parar por aqui — apanhou a colher e tentou focar em sua comida. 

— Isso é tão injusto — Astrid explodiu e Jase largou a colher. — Eles vão apenas continuar nos jogando na guerra sem sequer se importar se podemos sobreviver ou não? 

— Certo! Eles não se importam. Se sobrevivemos ou não, eles estão nem aí. Então...só fique quieta, por favor! — respirou fundo. — Um já foi o suficiente.  — Sua voz soou baixa e olhar para seus olhos vermelhos, fizeram os de Astrid arderem. — Se perder mais um meu coração fraco vai se quebrar. Então...vamos parar por aqui, tudo bem? 

Astrid não disse nada e somente baixou o olhar para sua bandeja, no entanto não segurou a colher.

— Coma um pouco. — Logan insistiu, e Astrid comeu. 

O sino tocou e todos os integrantes do grupo quinze deixaram suas cadeiras. Deram alguns passos e foram parados por um menino. 

Os olhos de Jase se reviraram. 

— Arlo... — Jase tentou, entretanto o menino foi mais rápido.

— Eu não o vi. Perguntei aos outros e eles disseram que também não o viram, então, ele ainda deve estar vivo.

— Quem? Edward?! Está falando do Edward? — Arlo assentiu, sorrindo. — Então...ele pode es... — parou, quando sentiu agarrarem seu braço. Era Jase.

— Vamos! — falou, sério. 

— Edward...

— Por favor, pare! — pediu. Lucky e Aiyslnn se entreolharam.

— Jase. — O mais velho olhou para o lado. — Sei que odeia quando eu falo sobre…Eu não estou falando bobagens!! Ele deve estar vivo. Eles não encontraram o corpo dele. Jun e May verificaram. Ele não estava entre os mortos que foram trazidos. E o Leo também...

— Arlo!! — O menino se sobressaltou. Jase apertou os punhos e comprimiu os lábios, respirou fundo e voltou a encarar Arlo, que segurava a barra da camiseta. — Você se esqueceu sobre o que falei da última vez?  

— Leo…Leonard está morto, então... — seus olhos foram para a esquerda de Jase. 

— Para de olhar para o meu lado esquerdo, não há ninguém lá. 

— Leo está lá — Arlo falou e olhou para o chão. 

Jase soltou um palavrão baixo e saiu, antes que Lucky e Chloe alcançassem seu ombro. 

— É melhor irmos — sem realmente verificar se alguém a estava seguindo Chloe partiu e Logan seguiu atrás, depois de olhar brevemente para Arlo. 

Duas das três integrantes que ficaram para trás, deram um passo em frente, em direção a Arlo. Aiyslnn afagou seus fios ruivos e lhe ofereceu um sorriso antes de ir e de seguida Lucky tomou a frente, se agachou até a altura do menino, sussurrou algumas poucas palavras em seu ouvido, ele assentiu e ela foi atrás de seus companheiros.

Por fim, Astrid e Arlo se encararam. O menino olhou para onde os integrantes do grupo quinze se foram e tornou a olhar para Astrid, a qual ouviu alguém chamá-lo, porém antes de ir Arlo falou: 

— Ele ainda não partiu deste mundo.

.

.

Aiyden tinha razão. Foi  realmente uma sorte. 

Foi uma verdadeira sorte para Astrid, antes nunca ter precisado fazer parte de algo como, um treino de resistência ao frio.

Quatro horas foi o tempo que um dos ajudantes estipulou, antes de entrarem em uma sala, a qual nos primeiros cinco minutos pareceu normal, porém sem nenhum aviso prévio se transformou em um reino de gelo.

O frio que parecia ter passado para o modo congelar até a morte, vinha contra eles sem descanso, e mesmo o casaco que supostamente deveria os aquecer não fazia muito, principalmente quando o dito cujo era apenas um, o que os forçava a ter de dividi-lo, por sete pessoas.

Cinco minutos era o tempo que cada um poderia ficar com o casaco. Mais vários minutos era o tempo que cada um ficava sem ele.

Novamente Astrid se sentiu congelar até aos ossos.

—  Só mais trinca. Só trinta. —  Logan dizia para si mesmo, e como se para constatar a veracidade de suas palavras, Astrid olhou para tela que marcava o tempo.

Mais trinca e a tortura acaba.

Astrid se encolheu e abraçou o corpo com mais força. Com os olhos em suas botas, a soldada sentiu ser observada, levantou o olhar e viu Aiyden a encarando.

De frente para Astrid, entre Chloe e Aiyslnn, Aiyden observou Astrid por mais alguns segundos até que perguntou: 

—  Quer tentar a ideia do Sr.Moore?

Um por um os integrantes do grupo quinze, olharam para Aiyden, enquanto que Astrid ainda parecia processar.

—  O que…

—  Sobre…

—  Pare!! —  Astrid interviu. —  Pare —  pediu, em um tom mais baixo. — Eu estou bem, então esqueça isso.

Aiyden assentiu, ao passo que todos os olhos se voltaram para Astrid.

—  Sobre o que vocês estão falando? —  Logan sussurrou e Astrid deu de ombros.

—  Sei lá. Não faço a mínima ideia —  sussurrou de volta, olhou para o lado e viu Jase a encarando, no entanto ele não falou nada.

Astrid abaixou a cabeça  e sentiu vontade de sumir.

Idiota!!

—  Pode ficar com meus cinco minutos. Consigo aguentar até o tempo terminar.

Astrid olhou para Aiyden, o qual tinha os olhos na neve, enquanto que ao seu lado, Aiyslnn tinha o casaco aberto e uma expressão confusa, como se não soubesse o que fazer. 

— Pode ficar com o meu tempo também — Aiyslnn a encarou e Astrid se sentiu estranha. — Acho…que posso aguentar mais um pouco…então… — Lembrou se de sua amiga Aiyslnn. — Fique com o meu tempo.

— Você treme feito uma galinha depenada — falou Chloe, sem olhar para ela. — Também pegue o meu tempo, não quero…Não posso perder mais ninguém.

Ela disse para não falarmos mais dele.

Todos ficaram em silêncio até que Jase tomou a palavra: 

— Fique com o casaco até o tempo terminar. 

Jase olhou para Aiyden, e depois desviou o olhar para Aiyslnn.

— Nós ficaremos bem, só fique com ele — disse a ela, a qual olhou para todos como se buscasse confirmação. 

— Obrigado!

Agradeceu. Fechou o zíper do casaco, abraçou suas pernas e sorriu.

.

.

Pensar, desestressar. Há muitos métodos usados para isso. Alguns vão para algum lugar que lhes traga paz. Outros correm ou fazem algum tipo de exercício que os deixe relaxados e outros mais extremos sentam no cume de uma montanha ou até ficam debaixo de água.

Eh…cada louco com sua loucura.

Mas Astrid, no entanto, ficava de cabeça para baixo. Ela não tinha uma explicação científica do porquê, mas realmente estar naquela posição a deixava relaxada, calma e a permitia pensar com clareza. Seu pai a achava estranha por gostar de tal posição, afinal como alguém pensaria claramente com todo o sangue subindo a cabeça.

De cabeça para baixo, com as palmas das mãos no chão e os pés encostados à parede, Astrid viajava por seus pensamentos, explodindo em milhões de perguntas que se resumiam em: Como vim parar aqui? Como posso sair daqui? Como tenho poderes e nunca soube? E Por que meu bracelete é igual ao do Centro? Enquanto sua cabeça navegava entre várias perguntas sem resposta, Astrid acabou pensando em Edward e seu pai. 

Os braços tremeram levemente quando sua mente a relembrou de sua casa destruída, e seu pai ausente.

— Por que faz isso? — Uma voz atravessou os ouvidos de Astrid. Era Jase, que estava ao seu lado, de cabeça para baixo e com as longas pernas encostadas à parede.

— Me ajuda a pensar.

— Como raios você pensa nessa posição? — perguntou ele, depois abanou a cabeça desnorteado. — Acho que estou ficando tonto.

Astrid sorriu.

— Sério, você está cada dia mais estranha. 

Astrid riu, alto.

— Olha o sujo falando do mal lavado. No ranking de mais estranhos do nosso grupo, você com certeza está em primeiro lugar.

A soldada abanou a cabeça, parecendo descontente.

— Você deveria primeiro rever sua vida, antes de chamar alguém de estranho — disse e Jase soltou um grande:

— Uooouuuu!! Você está bem afiadinha — falou, Astrid mostrou a língua e Jase abriu a boca, levando a mão a ela  logo em seguida, parecendo abismado. 

Um risada, em um tom realmente alto, escapou da boca de Astrid. E então veio o silêncio e os olhos de Astrid observavam Aiyslnn quando perguntou: 

— O que ela está fazendo? 

Com os olhos atentos, Astrid percorreu o corpo de Aiyslnn que estava sentado, com as costas apoiadas à parede, as pernas cruzadas de modo que a direita repousava em cima da esquerda, as mãos por sua vezes se encontravam em seus joelhos e de olhos fechados ela respirava e inspirava muito lentamente. 

— Tentando não explodir. 

Os olhos de Astrid piscaram, antes de olhar para Jase. 

— Ela pode explodir? 

— Talvez! Sinceramente não faço a minima ideia do que pode acontecer com Aiyslnn, mas dizem por aí que ela é uma espécie de bomba relógio.

— Elis disse isso? 

Jase a encarou de volta.

— Eu apenas disse, dizem por aí…

— Ela não está bem? — perguntou, tão baixo quanto pude. 

— Não — respondeu, após deixar escapar um longo suspiro.

— Mas…ela vai…ela pode ficar bem, certo?!

— Sei lá. Não tenho a mínima ideia — falou, muito baixo. 

Novamente o silêncio se acomodou entre eles. Jase olhava para parede e Astrid para Aiyslnn, que permanecia tentando, supostamente não explodir. 

— Jase…— Astrid chamou, ainda em um tom baixo. 

— Humh!!?

— Esse lugar…é realmente Aquamarine? 

— O que é isso do nada? 

Astrid desviou os olhos de Aiyslnn para Jase, o qual a encarava, não mais parecendo distante. 

— É que…esse lugar não parece nem um pouco com Aquamarine que conheço. Tudo até as pessoas, não…não parecem se adequar…simplesmente muita coisa não tem batido certo. 

— O que isso quer dizer? Seja mais clara!

— Como posso explicar…

— Ah! Explicando?! 

Astrid revirou os olhos. 

— O que estou tentando dizer é que, esse lugar…definitivamente não parece com o lugar onde vivi toda minha vida. Aquamarine que conheço, nunca registrou algo como, neve…

— Do que você está falando? 

A testa de Jase estava franzida enquanto Astrid parecia perdida em seus próprios pensamentos, ou em uma busca por argumentos que a ajudariam a se expressar melhor. 

— Desde… — Jase pareceu pensar. — 19—e alguma coisa, que o reino de Aquamarine passou a nevar, desde aí o clima nunca mais mudou. 

— 19…— Astrid pausou e quando continuou seu tom de voz aumentou um pouco. — Não espera!! Você deve está cometendo algum erro.

— Não! Você é que está errada. É isso que dá faltar às aulas de história. — Abanou a cabeça, em claro sinal de reprovação.

— Mas isso não faz sentido algum. Jase isso não pode estar certo. Aquamarine é um país que só tem três estações, primavera, verão e outono. Não há inverno. Nunca houve e nunca…

O corpo de Astrid caiu, sem qualquer resistência. Ouviu seu nome ser chamado, porém ela não se moveu. 

Sério, onde raios no universo eu vim parar? 



Comentários