Edward The Guide Brasileira

Autor(a): Gusty


Volume 2

Capítulo 10: Chamas amaldiçoadas

Desacordado, esgotado de qualquer resquício de força, o corpo de Edward repousava contra a dureza do concreto. O sangue quente, escorrendo da ferida no canto direito da testa, serpenteava até tocar a frieza da calçada. Finos rastros tingiam de vermelho a pele pálida do garoto, enquanto gotas lentas, uma a uma, formavam sob sua cabeça uma embrionária poça carmesim.

Chris rangia os dentes, tomado por uma constante desaprovação diante do estado da presa que chamava de Edward. Nem mesmo seu grito mais vigoroso fora capaz de provocar o despertar do garoto.

— SEU MERDA! — berrou, elevando ainda mais a voz, no mesmo compasso em que desferia três chutes violentos no lado direito do abdômen do rapaz.

Os movimentos grosseiros, invisíveis ao olhar comum, deslocavam milimetricamente Edward, quase o suficiente para virá-lo de barriga para cima. Em contrapartida, o ato de covardia espalhava alguns de seus pertences pelo chão, objetos que já estavam à beira de escapar dos bolsos da calça.

O celular, junto dos fones sem fio que antes repousavam no bolso esquerdo, fora lançado ao asfalto, bem na linha que dividia a rua da calçada. A carteira, por sua vez, escorregou do bolso direito acompanhada de um colar — presente da mãe de Edward em seu leito de morte — e ambos se posicionaram quase colados às pernas do rapaz.

O simples ato de encarar os itens espalhados sobre o chão interrompeu repentinamente o ranger apertado dos dentes de Chris. O saltear das sobrancelhas denunciava a curiosidade fervilhante que tomava conta de sua mente. Ele checou os arredores com pressa e, ao confirmar a ausência de movimento, tanto de carros quanto de pedestres,  agachou-se em busca da carteira.

Pouco importava ao fantasma encontrar algo de valor no compartimento. O foco estava em qualquer pista sobre o parentesco ou a residência de Edward.

Já de pé, as mãos ágeis vasculhavam cada detalhe da carteira de couro marrom — suas rachaduras revelavam o desgaste acumulado ao longo dos anos. Poucos bolsos estavam ocupados; o menino carregava apenas o essencial: um cartão de crédito, sua identidade e alguns cartões de publicidade.

— Então esse é o seu nome… — murmurou, largando a carteira no chão após retirar o documento. Em silêncio, os olhos de Chris percorriam cada minucioso detalhe do registro.

Idade, nome completo, cidade natal, nomes dos pais — todas aquelas informações dissolveram a raiva e deram lugar a uma alegria genuína. Um sorriso esbranquiçado, banhado por pura maldade, denunciava a perversidade do caçador. Imaginar que o talento de Ed podera ter sido fruto de uma herança provocava um gosto doce na boca do horripilante homem — de uma única refeição, talvez surgisse um banquete.

As expectativas alimentavam o anseio do espírito. Precisava que o garoto despertasse mais uma vez, para então interrogá-lo. Com a identidade presa entre os dedos médio e indicador, Chris caminhou até ficar frente da cabeça de Edward. Longe de qualquer traço de compaixão, ergueu a perna e, com controle para não aplicar força excessiva, pressionou com o pé o topo do crânio do rapaz desacordado.

— ACORDA, EU NÃO TENHO TODO O TEMPO DO MUNDO! — urrou, enquanto aumentava a pressão do pé sobre a cabeça de Edward. Em seguida, lançou a identidade contra as costas do garoto.

Nenhuma alternativa surtia efeito, a falta de gerência de Chris demonstrava ser seu principal rival. Agitado, ergueu a mão esquerda e começou a coçar o próprio couro cabeludo com violência. O gesto, repetitivo e brutal, seria suficiente para fazer sangrar as pontas dos dedos se ele ainda estivesse vivo. 

— SEU MERDA! — esbravejou ofegante, enquanto os olhos vibravam em frenesi, desesperados por qualquer meio que impulsionasse sua empreitada.

Observar o movimento pacato, o celular com a tela apagada e a carteira já explorada, apenas reforçava a certeza: só restava aguardar o despertar natural do garoto. Consumido por uma energia inquieta, Chris pressionava com força os próprios ossos do crânio.

Após 2 longos minutos de batalha contra sua própria mente perturbada, o fantasma enfim chegou a duas possibilidades: a primeira, tentar atingir o emocional do adolescente, caso ele estivesse apenas encenando estar desacordado; a segunda — menos agradável aos seus instintos —, ligar para uma ambulância. Mesmo com o celular bloqueado, chamadas de emergência ainda seriam possíveis. Apesar de detestar essa última alternativa, reconhecia que ela exigiria mais paciência, mas também admitia: uma ida ao hospital poderia colocar os pais de Edward na palma de suas mãos.

Ciente dos novos cenários, Chris cessou as agressões — tanto contra si quanto contra Edward. Retirou o pé da cabeça de seu alvo e voltou a pisar no chão. Fez questão de realizar o movimento com grosseria — a raiva ainda pulsava em cada centímetro de seu corpo.

— Espero que você esteja apenas fingindo… — disse, mantendo os dentes cerrados, iniciando um caminho até a lateral direita do menino. — Caso me atrase ainda mais, matarei você e sua família da pior forma possível! — A voz grave estremecia a cada palavra, carregando a ameaça com um peso sufocante.

Pausava o caminhar determinado ao encarar o novamente o item desejado, este que antes havia sido completamente ignorado. Curvou-se, agarrou o objeto com força e retomou o trajeto até a frente da testa de Edward, ainda marcada pela pressão contra o concreto.

Chris posicionou-se a dois palmos de distância da cabeça do jovem. Apoiou os joelhos no chão e, com a mão esquerda, a livre, agarrou um punhado do cabelo de Edward. Os fios, enredados entre seus dedos espectrais, foram puxados para cima com violência, na clara intenção de arrancá-los do couro cabeludo, fio por fio.

— Ainda fingindo? — indagou, encarando o rosto desacordado e manchado de sangue de Edward. 

Fez questão de manter a voz lenta e grave, um tom muito mais ameaçador que os berros anteriores, e assim prosseguiu com a explicação de seus planos. 

— Ok, não precisa abrir os olhos. Na minha outra mão está este colar... parece ser valioso para você.

Chris ergueu a mão direita, posicionando o colar diante dos olhos fechados do rapaz. O cordão, feito de uma linha marrom-escura e de espessura fina, espalhava-se por entre os dedos do espírito, deixando apenas um trecho pendente diante da face de Edward. No centro, uma pedra azul-ciano em forma de losango brilhava. Presa por um nó firme feito do mesmo material do cordão, as linhas envolviam a pedra como um cinturão.

— Nunca vi este material antes... bastante brilhoso, mas parece meio frágil — comentou, analisando o objeto com desdém. — Deve ser de segunda linha. Mas não é isso que importa, não é? Não precisa ser uma pedra valiosa para ter valor pra você, certo?  Sabe… a cada alma que eu devoro, mais forte eu me torno. E agora mesmo estou fechando a mão. Quer apostar que consigo quebrá-la?

Desceu a mão com lentidão, girou o pulso e cerrou o punho ao redor da pedra. Esperou cerca de 30 segundos em completo silêncio. No entanto, nenhuma reação vinha do garoto, ainda pendurado pelos próprios cabelos.

— Entendi a resposta! —sussurrou, em tom de escárnio.

Sem hesitar, Chris decidiu canalizar toda a energia acumulada ao longo dos anos no ato de cerrar o punho direito. Imerso em sua própria incongruência, o sobrenatural parecia mais vivo do que nunca: o movimento fez o braço estremecer e as veias saltarem com intensidade grotesca.

A recompensa pelo esforço rapidamente surgiu: um som seco e agudo, semelhante ao estalar de vidro rachado, pairou no ar. O estalo foi como música para o agente do caos — suficiente para devolver o sorriso contido ao rosto do causador.

— Ouviu? — perguntou abrindo vagarosamente o punho.

Calmamente, o resultado caiu ao chão. Oito pequenos pedaços, fragmentos do que um dia fora o delicado colar de Joe, emitiram sons distintos ao atingir o concreto — uma melodia dissonante de despedida.

A ausência de qualquer reação por parte de Edward diante do ocorrido apenas reafirmava a necessidade de investir no plano B.

Sem qualquer traço de cuidado, Chris soltou com pressa o cabelo que ainda segurava. Mais uma vez, Edward tombou contra o chão sujo, sem qualquer chance de reação. Por outro lado, o espírito ergueu-se mais uma vez. O nariz empinado, combinado ao semblante fechado, revelava um misto de aceitação e irritação.

Com poucos passos, alcançou o celular de Edward, que havia sido lançado até a beirada da rua. Estava prestes a dar início à segunda estratégia, a substituta, quando algo inesperado chamou sua atenção. Um novo fator, imprevisto, se refletia claramente em seu rosto surpreso.

Uma dor repentina tomou conta da mão direita do fantasma. Ao voltar o foco para o próprio corpo, Chris percebeu o surgimento de um fenômeno atípico: seu membro estava coberto por uma pequena chama azulada. Chacoalhou a mão em rigor, na busca de apagar o fogo ardente — em vão.

O susto inicial rapidamente se transformou em desespero crescente quando notou que a chama apenas aumentava, de forma lenta e implacável.

O que antes consumia apenas a palma da mão agora se espalhava por todo o braço. Ele podia sentir sua carne ser devorada — o fogo consumia pele, osso, músculos. Os gritos estonteantes de Chris cortavam o silêncio da noite. Por falta de controle, todo o barulho podia ser escutado por qualquer ser vivo que estivesse próximo do local.

Tomado pelo terror, o descontrole se alastrava pelo corpo inteiro: tremia freneticamente o braço em conjunto com o ritmo da respiração

Em um ato desesperado, cravou o braço em chamas contra o chão e, com o pé direito, tentou esmagar a própria mão. Com o peso do corpo, firmou o apoio e, em seguida, puxou o braço com bestialidade na direção oposta — tentativa desesperada de arrancar a parte consumida pelo fogo.

— AGHHH! — gritou o ser entre lágrimas, destruindo a imagem segura e perigosa de antes.

A força desesperada rompia o antebraço do restante do braço. Observar seu membro ser cortado, por boa parte do mesmo ter sido desmanchado pelo calor da labareda, tornava o choro ainda mais alto e desenfreado. Dentre todas suas lutas, contra humanos e outros espíritos, nunca havia sentido tamanha dor.

Por fim, conseguira se desvincular do incêndio pegajoso. “Estou seguro. O fogo não vai alcançar o restante do corpo”, pensou, ao observar o antebraço arrancado queimando à sua frente como uma fogueira viva.

Contudo, a falsa sensação de alívio se desfez em segundos. Os olhos trêmulos logo encontraram a terrível verdade: a labareda já havia alcançado seu pé — o mesmo que havia usado como apoio.

Diferente do avanço lento de antes, agora as chamas cresciam com velocidade brutal. Em menos de um segundo, sua perna inteira estava tomada pelo fogo. Sem pausa, sem interrupções, era apenas uma questão de tempo até que o corpo inteiro de Chris fosse consumido.

“O que eu fiz? Eles voltaram para me buscar?" Questionou-se, no exato instante em que desabou no chão, já sem qualquer controle sobre as pernas destruídas.

A mente de Chris, antes afiada e obsessiva, agora encontrava-se despedaçada. E pela primeira vez, a morte, definitiva, batia à sua porta.

— Viktor… Vik…Vi… Vi… Vi — Sem forças para formular sequer uma sentença encarava o inevitável fim.



— Quando acordei, encontrei três pessoas ao meu redor, pareciam ser os donos da casa ao lado de onde tudo aconteceu — disse Edward confuso ao fim do relato sobre aquela noite.

— Espera… você não sabe onde ele foi parar?? — A voz elétrica de Scarlet acompanhava o seu levantar do banco, em um pulo, que antes sentava.

Três dias se passaram desde da ajuda oferecida a Lilly, e consequentemente do embate contra Chris. A tão aguardada visita à igreja Miraclum Iluco havia chegado e de brinde uma longa história pousou nos ouvidos da amiga. Como combinado, Edward e Scarlet se encontraram em uma grande praça que ficava a poucas quadras do local, justamente por a mesma corriqueiramente possuir pouco movimento.

A praça, cercada por grandes árvores, tinha uma linda região central. Diferente dos outros locais, o centro arredondado era quase livre de vegetação, o que favorecia a visão aérea do lugar. Um grande muro circular delimitava, bem no meio da área, um espaço reservado para um chafariz de pedra. A água jorrava para um reservatório repleto de peixes de diferentes cores — tons de cinza a vermelhos vibrantes.

Cerca de 15 metros distante da fonte, dispostos ao seu redor, quatro bancos de concreto esbranquiçados se faziam presentes. A disposição cuidadosamente calculada dos assentos permitia que todos aproveitassem as sombras projetadas pelas árvores plantadas no restante do terreno. O chão de basalto dividia-se em dois setores: um anel externo de cinza mais escuro e um círculo interno de tom mais claro.

Dos quatro assentos, apenas Ed e a invisível Scarlet ocupavam um deles — só outras duas pessoas conversavam próximas à fonte.

O amigo observava a postura de guarda de Scarlet. A menina fazia questão de vasculhar todas as direções, em busca de qualquer sinal da ameaça que mal conhecia.

— Ei, se acalma… Tenho certeza que ele não vai voltar! — Afirmou disfarçando a vontade de rir. 

— Como tem certeza? — Mesmo recebendo a confirmação do amigo, Scarlet mantinha a mesma postura de insegurança.

— Já se passaram 3 dias, ele estava sendento em me matar. Depois de passar um dia inteiro sem dormir, constatei que por algum motivo ele desistiu… Ou outra coisa… afinal me disseram que vieram até mim justamente por escutarem gritos desesperados.

Scarlet encontrou sentido no raciocínio do amigo e assim sentou o mais rápido possível, em busca de tentar esconder a vergonha que antes passara. 

— Certo, faz sentido… — Levava a mão ao queixo no ritmo do cruzar de suas penas.

— Mas duas coisas estranhas roubaram minha atenção — disse Edward mantendo uma voz séria e o contato visual com o rosto reflexivo da garota. — Além dos relatos de gritos, ele chamou por um Viktor antes de tentar me atacar. E meu colar… quando acordei achei diversos pedaços dele no chão, pedaços pequenos… se transformaram quase em pó.

— Viktor? Talvez seja um familiar… ele parecia muito descontrolado e traumatizado pelas cicatrizes, não me surpreenderia ele ter delirado. E agora… seu colar?

— O nome surgiu em uma circunstância nada comum, parecia uma espécie de deus para ele. Sobre o colar… ele era da minha mãe, descobri a existência dele após a sua morte… Eu tenho certeza que Chris tentou me matar… será que de algum jeito eu fui protegido?

— Acha que havia alguma energia de sua mãe junto com você?

— Scarlet… você sabe algo sobre objetos assombrados?

— Muito da teoria e de alguns relatos…

— Entendo… — O garoto cruzava as mãos e inclinava um pouco o corpo para frente. — Sabe, quando fui atacado percebi o quanto não tenho tantas ferramentas para lutar contra espíritos. Eu conheço alguns rituais, mas pelo que deduzo a grande maioria funciona apenas contra demônios e poxa… eu tentei citar um rito de proteção e antes de finalizá-lo fui alvejado… Hoje… precisamos progredir em nossos estudos custe o que custar!

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora