Volume 4
Capítulo 1.5: A Estação que não me Pertence
O Rei da Escória, 71º Rank, Dantalian,
Calendário Imperial. 03/04/1506
Planície de Bruno, Exército da Aliança Crescente
⎯⎯⎯⎯Tudo estava acontecendo como previ.
Paimon era uma traidora depravada. Eu tinha a certeza de que se lhe mostrasse uma abertura, então ela, sem dúvida, aproveitaria a oportunidade. E como planejado, Paimon avançou para cima da Barbatos como um coiote que havia sentido o aroma de sangue.
Fazer com que eu entrasse na Facção Montanha provavelmente era só um pretexto. O verdadeiro objetivo de Paimon era Barbatos. Ao atribuir a culpa do meu erro à Barbatos, ela certamente estava planejando prejudicar a posição da sua rival.
Mais cedo, enquanto solicitava o meu julgamento militar, eu disse isto:
‘Estou, a todo e qualquer momento, preocupado apenas com a honra e segurança de Vossa Excelência Barbatos.’
Isso foi uma espécie de dica.
Insinuando que um julgamento militar era o único método para proteger Barbatos. Inferi de propósito que se fosse executado, então a oportunidade de fazer Barbatos assumir a responsabilidade desapareceria junto comigo. Não foi nada mais do que uma pequena sugestão, mas parece que a Paimon, que estava pensando sobre como prejudicar a Facção das Planícies, compreendeu muito bem.
Não é esplêndido?
Paimon, embora você seja uma traidora que vendeu sua própria espécie, você é uma traidora com um intelecto extraordinariamente inigualável. Se trair fosse um talento, então, sem dúvida, Paimon seria dotada com um talento de mais alto nível. A meu ver, isso era indiscutível. Com toda honestidade, eu gostaria de dedicar uma salva de palmas a ela.
Para começar, na história, originalmente Paimon era uma sanguessuga que havia se grudado no herói e traído o Exército dos Lorde Demônios.
No jogo, o herói encontrava a Paimon por acaso enquanto caminhava por uma cidade fronteiriça. Naquele momento, a Lorde Demônio Paimon se apaixonava pelo herói à primeira vista e começava a aparecer no seu caminho várias vezes dali em diante.
— É a primeira vez que esta dama encontra um homem como você.
— Esta dama conceder-lhe-á o direito de roubar os seus lábios, Sr. Autointitulado Herói .
Fazendo jus ao seu título de Rainha das Súcubos, Paimon se aproximou do herói magistralmente. Apesar de naquele momento, o herói ter tido o seu coração roubado por ela e ter sentido amor pela primeira vez, no fim, eles não conseguiram superar as diferenças entre suas raças e Paimon acabou falecendo pelas mãos do herói. Curiosamente, mesmo depois de seu coração ter sido perfurado pela espada fria do herói, Paimon não abandonou seus sentimentos pelo herói.
‘Demônios e humanos vivendo juntos.Esta dama começou a sonhar com essa possibilidade depois de te conhecer.Só não há nada que possa fazer quanto a isso, não? Como tais sonhos são tão efêmeros quanto frágeis pétalas ao vento, esta dama não te culpará por isto.’
Quando seu último momento chegou.
Paimon sorriu enquanto gotas de sangue escapavam pelo canto dos seus lábios.
— Este meu corpo já está desfalecendo. Não poderia conceder um último beijo a esta dama?
Como se ela estivesse lançando uma maldição.
Como se ela estivesse concedendo uma bênção.
Talvez eu devesse chamá-la de romântica, afinal foi capaz de alcançar seu amor após sacrificar sua própria vida…?
Seria lindo se a morte dela não acarretasse consequências, porém, Paimon era a líder da maior facção do Continente Demoníaco. Com esta instabilidade causada pela morte da Lorde da Benevolência, as ameaças demônicas ao herói atenuaram, e os humanos foram capazes de focar em resolver os seus conflitos internos. E esse conflito interno que o herói teve de enfrentar, a pessoa que havia se libertado recentemente era ninguém menos que…
“Foi por pouco, Senhor. De qualquer forma, esta jovem senhorita nunca fica entediada enquanto assiste Vossa Senhoria. De vez em quando, há dias em que esta jovem acredita que a vida de Vossa Senhoria talvez seja uma grande piada.”
“…”
Ah sim.
Era essa menina atrevida e sem expressões faciais.
A Princesa Imperial Elizabeth, que liderava o Império de Habsburgo, escalou o Herói para a sua vanguarda, e a Rainha Henrietta, que liderava o Reino da Bretanha, nomeou Farnese como general. Os dois heróis do século participaram da guerra para fazer com que sua própria nação conquistasse a supremacia… Essa era uma história que deveria se desenrolar daqui 15 anos. Tendo eu mesmo nomeado Farnese como General, agora tal futuro jamais viria a ocorrer.
“Além disso, o que foi aquilo antes? Sem dúvidas Vossa Senhoria não estava tentando salvar esta senhorita se sacrificando, certo? Honestamente, esta jovem só pode dizer que tal ação foi um incômodo, Senhor. Esta jovem senhorita preferiria ser assassinada por um Lorde Demônio do que ser abraçada por Vossa Senhoria. Apesar desta jovem atribuir um ótima avaliação para o intelecto do Senhor, infelizmente devo informar com toda objetividade que o oposto se aplica para seu físico. Em outras palavras, o seu corpo é um pouquinho péssimo. Quando se é abraçada por ele, parece que há algo de errado, e é até difícil conceber algo tão desagradável quanto a sensação de ser totalmente envolvida por tal corpo. Portanto, se por acaso, esta senhorita estiver em perigo novamente, peço que não nutra a ideia desnecessária de se exibir, e sim que apenas abandone esta jovem e- Ah ah!? Ei, ah ah!”
Interrompendo seu discurso, tirei o chapéu da Farnese e pressionei o redemoinho no topo da sua cabeça. Essa criança, só porque ela aprendeu um pouco com a Lapis como discursar, já ficou tão atrevida assim. Esse tipo de delinquência merece a punição do cafuné agressivo.
Farnese tremia e chacoalhava.
“Senhor! Esta jovem já não lhe disse, já não lhe disse tantas vezes? Uu, aaaa. No redemoinho não. Pode ser em qualquer outro lugar, mas, Aaaaah, o redomoinho, aí nããão…”
“É só você ser obediente e se deixar ser amassada, sinta-se como uma bela massa de pão sendo sovada.”
“Hauh, esta jovem está mole. Esta jovem está se derretendo…”
E pensar que esta menina loira, que esta se transformando em mingau em meio aos meus braços, está destinada a se tornar um famoso general, o arqui-nêmesis do herói, e a calamidade da humanidade. Embora eu já estava bem ciente disso, isso sempre me faz lembrar como esse mundo também é podre.
Pouco depois, capitães filiados à Facção Neutra vieram me escoltar. Não senti nem um pingo de hostilidade ou mau temperamento contra mim por parte deles. Apenas pediram que os acompanhasse enquanto mantinham a sua cortesia.
“Embora humilde, preparamos uma cela de prisão, Vossa Alteza Dantalian. Se, por favor, não considerar uma descortesia…”
“O que poderia ser descortês? Guiem-me até lá. Os seguirei obedientemente, com a mentalidade de alguém que se tornou prisioneiro.”
Então os capitães da Facção Neutra abaixaram a cabeça.
Pouco depois, me deparei com uma cela realmente bem humilde no local para onde os militares me guiaram. Sequer dá para chamar isso de prisão? Lembrava muito mais uma gaiola de ferro usada para prender animais. Tinha só um punhado de palha espalhada dentro da gaiola, não havia qualquer móvel ou decoração.
Vendo o estado daquela prisão, Humbaba começou a rir.
“Ahahah? Isso era pra ser uma pegadinha? Ou foi só uma tentativa de piada sem graça? Certamente você não pretende colocar nosso mestre dentro de uma latrina imunda dessas, certo? Será que deveríamos lançar uma maldição e deixar vocês eunucos pelo resto das suas vidas? Será que deveríamos jogar uma magiazinha que vai fazer com que só consigam sentir prazer com suas bundas? Só estou perguntando por curiosidade, mas vocês devem ter mesmo um grande interesse em uma vida sem mulheres, já que estão querendo adotar o ascetismo, igual monges?”
“M-Minhas desculpas, mas isso é realmente tudo o que temos no momento…”
“Pelo visto vocês consideram que é educado dizer para alguém comer merda, se for a única coisa que podem oferecer. Hum. Uhum. Compreendo Mas, a propósito. No momento, a única coisa que podemos te oferecer agora é uma maldição do eunuco, o que vocês acham?”
As bruxas cercaram os capitães enquanto davam grandes sorrisos. Seus rostos estavam mesmo rindo, mas seus olhares eram mortais. Eu já estava ficando com pena desses coitados. Se repassar a ordem de um superior fosse crime, não podendo nem ter poder de escolha, então esse seria o crime deles.
Deixei escapar um suspiro.
“Humbaba, está tudo bem.”
“Oi? Mas, mestre…”
“Eu já não falei que está bem assim? De qualquer forma, estou prestes a me tornar um prisioneiro. De que forma eu poderia ter qualquer acesso ao poder depois de ser trancado em um lugar minúsculo como esse? Essa cela não ficará mais requintada e nem mais humilde se eu reclamar ou elogiá-la, certo? Se um rei não pode ser tratado como rei, então, sendo um prisioneiro ele deve ao menos se comportar como tal.”
“Não, não é isso.”
Humbaba falou com um rosto repleto de aflição.
“No mínimo, deveria ter uma cama confortável aí para que nós bruxas possamos entrar aí junto com nosso mestre para podermos nos deleitar apropriadamente em meio às nossas relações carnais, não acha? Se ordenar que copulemos sobre essa camada de palha, então, é claro, nós vamos fazer isso com prazer, mas quando você esfrega nossas costas contra a palha incomoda um pouco…”
As bruxas que estavam ao redor concordaram balançando a cabeça e falando ‘Aham’. Em meio aquela situação elas estavam concordando entusiasmadas com as afirmações da Humbaba.
“…”
Sem falar nada, belisquei a bochecha da Humbaba e comecei a puxar. A bochecha da minha querida líder da Guarda Real esticou como queijo derretido.
“Gehuhuhuh! Gahu, gyahuh!?”
É, até o jeito que as bruxas grunhem é anormal.
Sem lhe dar folga, puxei a bochecha da Humbaba até onde era possível. Essa mulher, não sei se é porque ela viveu boa parte da sua vida sendo torturada, mas ela nem pisca o olho ao sentir níveis normais de dor.
“Pare de falar besteiras. Que maluquice é essa de querer entrar nessa cela? Todas vocês vão seguir a Farnese imediatamente rumo à guerra. Obedeçam direito as ordens dela e da Lapis e só voltem para cá depois de caçarem muitos humanos.
“Mas que pena.”
Pelo rosto que a Humbaba fez, parecia que o mundo estava acabando.
“Como nosso mestre já está na prisão, gostaríamos de aproveitar essa confinamento juntinhos…”
“Pare de falar merda.”
“Ah. Talvez, ao invés de agir como prisioneiros, será que se agíssemos como carcereiras isso iria agradar mais os gostos estranhos do nosso mestre? Não se preocupe. Apesar das nossas aparências, somos totalmente proficientes em ambos, masoquismo e sadismo. Não importa quão pervertidos sejam os seus gostos, estamos preparadíssimas para te servir com toda vontade!”
“Meus Deuses. Só está piorando.”
Tsk, tsk, estalei a língua.
Com toda a seriedade, elas são mesmo uma causa perdida. Realmente, não foi à toa que eu as adotei e as dei esses mantos.
“Farnese.”
“Mm. Não se preocupe, Senhor. Esta jovem senhorita não tem nem sequer um milímetro de desejo de entrar nessa prisão com Vossa Senhoria. A única esperança desta jovem é que o Senhor permaneça obedientemente na prisão, completamente sozinho, e desfrute da vida sob cárcere. Se Vossa Senhoria desaparecer, então não restará apenas a Senhorita Lapis me agredindo usando o pretexto de que estão educando? Hmm, que maravilhoso. Se possível, seria ótimo se Vossa Senhoria entrasse aí e nunca mais saísse.
Farnese balançou a cabeça concordando consigo mesma.
“Não se preocupe, senhor. Esta jovem senhorita dará à Senhorita Lapis os seus cumprimentos por ti. Afinal. Esta jovem é a tua súdita eternamente leal. Não importa a quantia de problemas desta dimensão, esta senhorita é capaz de lidar com todos eles.”
“…”
E quando resolvem falar assim, à sua própria maneira, também é extremamente irritante…
Qual a razão para esses ‘meus leais súditos’ ficarem indo de um extremo ao outro? Será que ao nascerem os cérebros delas não receberam os maravilhosos conceitos de moderação e bom-senso? Que tipo de pecado eu, em minha infinita inocência, cometi na minha vida passada para ter que arquitetar todos meus planos envolvendo esse tipo de pessoas?
Não tenho a menor dúvida que a Princesa Imperial Elizabeth está totalmente cercada de pessoas de grande talento, muito bem informadas e refinadas. E no outro extremo, a minha General é uma psicopata completamente insana e a Líder da minha Guarda Real é uma pervertida, guiada única e exclusivamente pela luxúria e com o cérebro repleto de sexo. O mundo é mesmo injusto…
“Certo. O que mais eu poderia esperar de vocês? Só, atuem bem no decorrer da guerra. Aliás, foquem somente em guerrear. Isso já é mais do que suficiente. Não saiam por aí e se deixem apanhar de graça, certo? Se te agredirem uma vez, golpeiem de volta em dobro. Acredito que vocês conseguem fazer pelo menos isso. Entendido?”
Farnese e Humbaba balançaram a cabeça, concordando. Em seguida cada uma falou.
“É claro. Na verdade, esta jovem senhorita planeja decapitar todos os inimigos e construir uma torre feita de ossos. A partir de amanhã, só de ouvir o nome desta jovem… os inimigos molharão suas calças de desespero. A urina deles fluirá incontrolavelmente, até que por fim, toda a planície será coberta pelo líquido, e esta senhorita espera do fundo de seu coração que o fedor chegue até a gaiola de Vossa Senhoria. Quem sabe um pouquinho da monumental lealdade desta jovem estará contida em meio a todo o odor.”
“Não precisa se preocupar, mesmo que o cheiro não alcance até aqui, nós bruxas vamos nos dar ao trabalho de encher baldes de urina e derramar aqui para agradar o senhor. Graças a nossa origem humilde, antes de jurarmos nossa lealdade ao Senhor, trabalhávamos como entregadoras. No passado nós já entregamos fezes, então urina será até mais fácil!”
“Está bem, já entendi o quanto vocês têm de excremento na cabeça, agora, por favor, saiam logo daqui…”
Então ambas me saudaram e partiram.
Assim que elas foram embora, restaram apenas eu e os capitães da Facção Neutra. Eles estavam me olhando discretamente, como se estivessem diante de um louco completo. Embora eu estivesse considerando tentar inventar algumas desculpas pela situação, já estava claro que quanto mais eu tentasse justificar, mais fundo no poço eu cairia, então não restou outra escolha além de aguentar esses sentimentos miseráveis.
“Por favor, me prendam agora.”
“ Sim, Vossa Alteza.”
Como se estivessem esperando por essa deixa, os capitães rapidamente vieram até mim e fecharam o portão de ferro. A cortesia inicial que demonstraram quando me escoltaram tinha sumido. Dava para ver claramente que os rostos deles estavam dizendo ‘Vamos só ter mais problemas se não trancarmos esse pervertido desgraçado logo.’
…
Ok. Sem problemas.
Afinal de contas, isto é todo um estratagema.
Não se destacar aos olhos dos outros e ser lembrado apenas como um imprestável, para que eu possa controlar a todos do continente por trás dos panos, tudo faz parte do plano. Do início ao fim. É verdade. Estou mesmo bem…
Clank.
Ressoou o metal no momento em que a jaula para prender animais foi trancada.
Como se tivesse me tornado uma besta solitária e desconsolada, olhei para o céu impotentemente. O céu, que havia ficado límpido após a breve chuva ao amanhecer, agora estava escuro novamente. Será que ele estava tentando combinar com a terra, que em breve será coberta com uma chuva de sangue?
Uuuuu…
Buuuu…
Pude ouvir o som dos chifres de guerra ao longe. O tocar daquelas trombetas parecia o som de trovões ressoando nas nuvens que cobriam todo o campo. Conforme esses trovões rugiam, eles golpearam pessoas que não estavam relacionadas comigo, e essas mesmas pessoas lutaram entre si, ainda não tendo mais tendo nenhuma ligação a mim. Apesar dessa guerra ter sido começada por mim, agora eu já não estava nela.
“…”
Pling.
De repente, algo caiu através do teto da jaula.
Estava frio.
Olhei para o céu.
Do meio das nuvens escuras, gotas e mais gotas de chuva começaram a cair. Essas gotas, que desapareciam conforme desciam, juntavam-se umas as outras formando a tormenta.
Acredito eu que essa chuva lembrava o derramar de sangue dos soldados que caíam, se juntando no chão deste campo de batalha, com a sua vontade própria sendo ignorada. Não era possível impedir que essas duas coisas acontecessem. Contudo, não seria ruim da minha parte considerar como inevitável algo que foi orquestrado propositadamente?
Woosh, shoooo…
Assim, previ que essa história que eu desenhei, começou a fluir, tal qual o vendaval que acompanhava a chuva. Esta guerra se desenrolando ali é toda minha. Entretanto, assim como o passar do tempo difere entre o compassar dos ponteiros de um relógio e ao ritmo de uma bela música… A tormenta e as gotas de chuva impiedosas que rugiam no mundo fora da jaula, caíam fracamente gota a gota dentro da minha cela. Indiferentemente de como o tempo corria lá, o tempo transcorria silenciosamente em torno de mim.
“…”
Tirei a parte de cima de minhas roupas e deixei a chuva me atingir diretamente. Em minhas vestes, havia uma cinta e um relógio de bolso que já estavam comigo antes. E ali, o relógio fazia a sua contagem vagarosamente.
Barbatos, Paimon, Elizabeth e Farnese se movimentarão livremente nesse campo de batalha. No entanto, quando será que perceberão que este tempo todo, tudo que transcorreu nele esteve estritamente em minhas mãos? Quem dentre elas virá até mim primeiro? A chuva continuou caindo, tirando o pó que estava sobre mim, levando-o à terra. Ela estava longe, mas mesmo distante, essa guerra me pertence.
Mesmo aqui, nesta prisão.