Volume 2

Capítulo 2.1: Ética da Caça aos Macacos

Lorde Demônio mais fraco, 71º rank, Dantalian, Calendário Imperial: 20/09/1505, Reino de Sardenha, Mercado de Escravos de Pavia.

 

“Somente duas pessoas?”

“Sim. Eu e minha esposa.”

“Hm. Aceitaremos duas moedas de ouro pela taxa de escolta.”

Eu entreguei cinco moedas para o soldado da fortuna e ele deu um grande sorriso.

Havia um charme inesperado emanando do sorriso deste mercenário que não tinha dois dentes incisivos.

“Muito, muito obrigado mesmo, Vossa Excelência. Nós mercenários te protegeremos com nossas vidas durante sua estadia aqui. Por favor, tenha um dia muito agradável com sua senhorita. Ooi, escoltem esse casal para o lugar deles! Certifiquem-se de que sejam lugares da mais alta classe!”

“Entendido.”

Nos subúrbios de Pavia.

Mercadores de escravos montaram tendas nos terrenos abertos das planícies da área.

Para evitar que os ladrões cometessem furtos, soldados estavam guardando com rigor e cuidado toda a zona de comércio. Existiam cinco plataformas de vários tamanhos, aproximadamente setenta guardas, e tendas de comércio tão grandiosas que caso você observasse de longe poderia até ser confundido com um campo militar. A maioria dos bandidos sequer ousaria perturbar este mercado.

“Por aqui, Vossa Excelência.”

Mm.”

Seguindo a liderança deste homem, nós prosseguimos até o centro da feira.

Lapis Lazuli e eu estávamos fingindo ser um casal de jovens mercadores. Nós falsificamos cuidadosamente nossos documentos de identificação e nomes. Com isto não teríamos que nos preocupar tão cedo com nossas verdadeiras identidades sendo expostas.

O mercado de escravos estava transbordando com uma atmosfera sombria e úmida.

“Mexam-se logo! Seus jumentos desgraçados.”

“Elfos da neve aqui! Capturados diretamente das remotas montanhas nevadas do reino de Moscou. Nesta ocasião em especial, hoje eu estarei os expondo de graça. Por favor, venham olha-los!”

“Eu disse para você se mexer mais rápido!”

De um lado, um guarda estava brandindo seu chicote e forçando um grupo de escravos a se mover. Uma fila de seis escravos homens acorrentados uns aos outros andava lentamente para frente de pouco em pouco. Parecia que eu estava assistindo a uma lagarta andar.

“Por favor, olhe tanto quanto quiser. Olhar é de graça!”

Do outro lado, uma elfa nua estava presa atrás de barras de ferro. Um promotor de vendas estava anunciando o quão incrível era o seu ‘produto’ enquanto apontava para os seios e costelas da elfa. Havia muitas pessoas aglomeradas ao redor da jaula de ferro, e existiam até mesmo crianças entre elas. Garotinhas enfiavam suas cabeças nos vãos entre as barras e encarando a elfa desnuda.

Eu consegui ouvir a conversa delas.

“Irmãzona, é verdade que os elfos conseguem viver só tomando orvalho?”

“…”

“Uhm, eu não acho que ela consegue entender o que nós estamos falando. Eu não sei como falar à língua que eles usam em Moscou, também…”

“Eles dizem que os elfos tomam sangue puro de crianças todos os anos. É por isso que eles continuam bonitos por cem ou duzentos anos.”

“Sua mentirosa! Pare de mentir!”

O grupo de garotinhas riu. A elfa sorriu suavemente enquanto assistia às crianças. Quando elas esticaram as mãos, a nativa do norte ficou mais do que feliz e esticou o seu braço para deixar que as garotinhas tocassem sua pele. Apesar do braço da elfa estar fino e em estado de puro-osso, as criancinhas estavam fazendo alvoroço como se estivessem tocando algo semelhante ao ouro.

“Essas crianças danadas!”

O vendedor levantou as crianças dali enquanto ria cordialmente.

“Vocês não podem ser tão descuidadas e tocar nos produtos deste jeito!”

Eu assisti só até este momento antes de me virar e afastar.

—Kuaaaaaah…

O som de um chicote sendo açoitado e um escravo gritando pode ser ouvido ao longe, e ainda assim ninguém na feira deu importância. Os únicos que prestaram atenção para os gritos foram às crianças. Cada vez que escutavam um lamurio, elas se empolgavam e perguntavam “Você escutou isso? Você escutou isso?”. Toda vez que escutavam um grito, elas imitavam o som com suas próprias vozes bradando “Kaah!” “Kueeak!”.

Talvez elas faziam isso graças a sua inocência?

Eu murmurei.

“Este é um lugar bastante esplêndido. Todos os mercados de escravos são assim?”

“Sim. Não há muitas diferenças entre eles.”

Respondeu Lapis Lazuli.

“O mercado de escravos com que esta serva teve dívidas por um curto período durante sua infância, tinha a mesma atmosfera deste local.”

“O quê? Você já trabalhou em uma feira de escravos?”

“Para ser exata, esta súdita não trabalhou em um mercado de escravos, mas sim quis se tornar uma escrava. Naquela época, esta vassala estava incrivelmente faminta. Pensava que desde que conseguisse obter uma refeição, então valeria a pena se tornar uma escrava. Já que escravos ao menos são alimentados.”

Lapis Lazuli falou calmamente.

“Entretanto, assim que o mercador de escravos descobriu que esta vassala era uma mestiça, ele me expulsou de lá. Aparentemente, párias não tinham o ‘direito’ de se tornarem produtos para serem negociados. De todo modo, antes que a identidade desta súdita fosse revelada, consegui comer meio pão embolorado. É uma boa lembrança.”

“…”

O passado de Lapis Lazuli era tão sombrio que chegava a ser assustador…

Fiz tudo o que pude para mudar de assunto, eu limpei a garganta.

“A súcubo que costumava vagar por estes terrenos agora é a amante de um Lorde Demônio. Isto não é esplêndido, Lala? O valor de alguém não é determinado em seu nascimento. Você, que conseguiu superar toda sorte de condições desfavoráveis, tem o valor mais belo de todos.”

Lapis Lazuli me olhou de soslaio.

“…Ocasionalmente Vossa Alteza certamente fala coisas surpreendentes.”

“Hm?”

“Não é nada. Vossa Alteza elogiou esta serva dizendo que eu havia alcançado o sucesso, mas isso é algo lamentavelmente inadequado. Quando Vossa Alteza se tornar um verdadeiro soberano dos demônios, quando este momento chegar, eu ter ou não atingido o sucesso poderá ser discutido.”

“Você é uma mulher deveras gananciosa.”

Eu sorri.

“É por isso que eu gosto de você.”

“Não há para quê Vossa Alteza elogiar esta serva, não ganhará nada fazendo isto.”

“Eu não tenho expectativas de receber muita coisa em troca. Eu simplesmente gostaria que nossas atividades noturnas de hoje tivessem mais charme. Em primeiro lugar, quando nós fazemos ‘aquilo’ o seu rosto é tão inexpressivo que chega a ser divertido faze…”

Lapis Lazuli pisou no meu pé direito. A parte do calcanhar do sapato dela estava fincando diretamente no meio do meu dedo então doía bastante, mas em contraste a dor, eu estava muito feliz.

Sim. Era a mesma Lapis Lazuli de sempre. A mesma Lapis Lazuli que era tranquila, calma, e que respondia com moderação às minhas provocações. Sentindo um alívio excepcional vindo deste fato, eu desempacotei os meus pertences nos aposentos que os soldados mercenários nos guiaram.

Naquela noite, nós recebemos um convite para um banquete com os comerciantes de escravos.

Valeu a pena ter dado cinco moedas de ouro para aquele soldado. As pessoas que faziam parte da feira nos reconheceram como indivíduos de grande importância e nos ofereceram um convite.

Pergunto-me se era porque o banquete era para comerciantes de escravos, mas o conjunto de pessoas que ali se encontravam era bem extravagante. Havia vários guardas de prontidão como seguranças e belas escravas nuas servindo comida. Logo eu me integrei ao grupo de mercadores e comecei a conversar com eles.

O álcool circulou pelo banquete de forma apropriada. Era exatamente a quantidade necessária para que as pessoas ficassem embriagadas. Este tipo de noite cheia de cobiça e ambição era o momento mais propício para induzir as pessoas a confessarem seus pensamentos mais íntimos. Agora, vamos ir direto ao que nos interessa…?

“É a primeira vez na minha vida que vejo uma feira de escravos tão luxuosa. Eu já frequentei muitos mercados de escravos mais amplos e de maior escala, mas se você comparar a qualidade dos produtos daqui e daqueles outros, é impossível que eles consigam chegar ao nível de excelência daqui. Meus amigos, isto é maravilhoso. Eu estou realmente comovido.”

“Haha. Você está nos valorizando e enaltecendo demais.”

Os mercadores riram com seus rostos rubros.

Um clima alegre preenchia o recinto. Todos ali passavam uma boa impressão de si mesmos.  Para indivíduos que negociavam escravos, era difícil acreditar o quão inofensivos eles pareciam ser. Elas não sentiam nem um grama de culpa sequer por venderem escravos?

Bem, provavelmente era assim que as pessoas desta época eram. Isto não era um assunto com o qual eu deveria me envolver. Revoluções deveriam ser deixadas nas mãos dos revolucionários e a política deveria ser deixada na mão dos políticos. Este era a minha crença. Contudo, existiam muitas pessoas que acabavam misturando estes dois trabalhos distintos.

“Entretanto, há algo que eu estou um pouco curioso sobre.”

“O que é? Diga-nos.”

“Assim como uma bela e única flor pode conquistar todo um salão cheio de pessoas, não haveria também um escravo com um valor inigualável neste mercado? Quem todos aqui consideram ser à flor desta feira?”

Os mercadores se entreolharam depois de ouvir a minha pergunta.

Pouco depois, eles começaram a fazer alvoroço.

“É claro, esta flor não seria a elfa da neve que eu capturei em Moscou? Eu tive que contratar nada mais nada menos do que vinte caçadores só para capturar aquela criatura. Não há dúvidas que o meu produto é o melhor.”

Pfft. Sinceramente, a moda dos elfos já acabou. Atualmente, ninfas e sereias são a grande novidade. Tendo dito isto, a ninfa que eu passei por dezenas de dificuldades para conseguir…”

“Ha! Como uma mera besta alada poderia gerar algum destaque? Já é duvidoso se você conseguiria ao menos vinte moedas de ouro com elas. Elas podem até ser uma espécie rara e adequada para animar a atmosfera de eventos, mas você não pode dizer que elas são a grande estrela da feira. Eu tenho certeza absoluta disto.”

“Não, é claro que você deve dar uma nota mais alta para elas baseado em sua raridade. Na verdade eu estou pensando sobre colocar em exposição o meu grande ás na manga e leiloar um centauro. Se for um cavalo então as senhoritas nobres iriam…”

Eles bradavam em algazarra.

A discussão de quem tinha o melhor escravo continuou.

Depois de um bom tempo, um dos mercadores apontou para um jovem e disse.

“E os seus escravos, Giacomo? Eu ouvi dizer que você realmente se dedicou para preparar um produto para a feira desta vez.”

“…Não é tão bom como a lista de produtos de todos vocês.”

O rapaz franziu o cenho e respondeu.

Ele era o jovem que esteve bebendo vinho em silêncio durante todo o banquete. Apesar do outro mercador ter tentando trazer atenção para o escravo do rapaz, ele recusou. Vendo como a sua feição havia fechado, parecia que ele estava incomodado com alguma coisa.

“Dizer que não é nada demais! Isto é bem modesto da sua parte!”

“É verdade, Giacomo. Nós não somos surdos, nós escutamos os rumores. Ouvimos dizer que você conseguiu obter a filha bastarda da família de um duque.”

O rosto do jovem se contorceu em uma expressão amarga.

Parecia que ele estava desconfortável com fato de toda atenção do salão estar focada nele.

“…Eu tive sorte. Só isso.”

Então o homem virou a sua taça de vinho.

Os cantos de meus lábios se contorceram discretamente enquanto eu encarava o jovem rapaz.

Eu o encontrei.



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