Volume 1 – Arco 3
Capítulo 42: Tela de Carregamento
Em algum lugar no espaço, fora de ||BASIN-C||... fora do mundo.
PLAYER: [Juniorai]
Acordei em um espaço estranho; aberto, cinza, sem forma ou sem vida.
Um lugar neutro. O chão era uma massa uniforme de... alguma coisa, como cola ou isopor, mas não era necessariamente terra, ou um piso.
Na verdade, era como se eu estivesse pisando em um pedaço molenga de marshmallow.
No horizonte, nenhum sinal de nada — e quando eu digo nada, é nada mesmo — além de camadas em preto e branco, como se o céu e o vazio colidissem no infinito.
— Que desgraça... acho que agora eu morri mesmo.
— Não, não morreu não.
Uma voz atrás de mim me assustou e eu tropecei vários passos até escorregar e quicar a bunda no chão — e isso também não foi modo de expressão.
— Ah! Que... que merda é essa?!
— Não temas, herói. Você está em um espaço intermediário ao plano do qual veio e este plano — explicou uma voz transcendental, como a voz de várias pessoas falando ao mesmo tempo, vindas de uma bola de luz brilhante, flutuando na minha frente. — Sua “aparentemente” morte faz parte de um complexo processo que está afetando as várias camadas de dimensões que atuam em conjunto...
— Ah... desculpa por interromper a explicação, mas na verdade eu não entendendo porra nenhuma — disse, gesticulando com as mãos. — Que tal a gente começar de novo?
A bola de luz aumentou de intensidade, como se aquilo fosse explodir. Cobri os olhos com as mãos até que a luminosidade se espalhou toda a vastidão acinzentada.
Subitamente o céu, o chão, o horizonte... tudo foi tomado por formas e cores e sons. Imagens em todos os lugares formando um filme sobre alguém, na visão de alguém.
— Que aconteceu? — perguntei, me perdendo na confusão de imagens e filmes que se reproduziam em fendas no próprio espaço, espelhadas no próprio ar, estendendo-se até onde a vista alcançava.
— O que está vendo são memórias — começou a voz que nem era masculina ou feminina, mas como de um trovão. — Sobrepostas ao momento presente o qual estamos aqui. Nesse momento, coisas estão acontecendo no mundo, mas ao mesmo tempo não estão.
— Ah, agora vai falar difícil de novo? — Uma exclamação surgiu sobre mim quando pendi a cabeça para os lados.
Quando a luz diminuiu, comecei a perceber formas e distinguir elementos do ser que estava na minha frente; asas, uma cauda e uma auréola, tudo isso unido à uma forma familiarmente esférica.
— Picker?!
— Por favor, herói, me chame de Coruja.
— Ele não merece tanto respeito assim. — Outra voz mais feminina e afinada se destacou entre o mar de vozes, também vindo de Picker. — Herói, herói... blá-blá-blá...
— Não tô entendendo mais nada... — Nunca entendi pra início de conversa.
Coruja... eu já havia ouvido esse nome antes, no dia que conhecemos o Picker. Eu me lembro dele se apresentar com esse nome, mas... por que agora ele estava assumindo essa personalidade?
E ainda com essa puta voz de boss final. Na ocasião ele estava com a voz... a voz de Gallatin.
— Você é o mesmo Coruja daquela vez?
— Precisamente. Sou a existência que partilha do mesmo corpo pelo qual conhece como Picker.
— Se tem tanto apreço por essa porta, devia acompanhar ele. Não sei o porquê me incumbiu dessa tarefa!
Fosse lá quem estivesse falando com aquela voz de loli tsundere, estava claramente me avacalhando.
— Ei! Eu tô aqui ainda, sabia?
— E o quê? Quer receber algum presente, por acaso? — disse ela com voz azeda.
— Basta de distrações! — Coruja estrondou com sua voz etérea. — Concentremo-nos na tarefa à frente. Herói, foque seus esforços na tarefa à frente.
— E que diabo de tarefa é essa? Por falar nisso, eu levei uma surra de uma mulher encapuzada e morri, não é?
— Você não pode morrer para um simples ataque desses — respondeu Coruja.
— Infelizmente... — completou Picker, em um tom ranzinza.
— Suas capacidades vão muito além do que imagina, herói, mas você precisa recuperar os //FRAGMENTO DE ALMA//.
— Que?
— Isso mesmo — Picker rodopiou pelo ambiente projetando imagens através do espaço. — Os //FRAGMENTO DE ALMA// são a chave para que tenha êxito contra o mal que assola o mundo.
Um conjunto de 15 pedras surgiu rodopiando no centro do lugar, cada uma brilhando em uma cor diferente, formando pilares de luz girando em conjunto.
Reconheci a minha em tom fuchsia, seguido do cristal puramente roxo que a mulher encapuzada mostrou. E então um verde claro, azul-turquesa, ciano, vermelho vivo, violeta, mostarda, verde escuro, laranja, amarelo, bege, castanho, caramelo, branco e, por último, um preto.
E por que caralhos aquela mulher tinha um? E ainda conseguiu usar aquele item que, aparentemente, para mim não tinha serventia alguma além de pesar no inventário.
— Essas, meu herói, são respostas que tem que achar por si mesmo. — Ajudou muito, Mestre Yoda em forma oval!
— Isso se o cérebro de ervilha dele funcionar.
Fiz um gesto vulgar para ela, ele ou eles... sei lá o que aquela bola dourada e olhuda fosse.
— E afinal, você ainda não me respondeu onde é esse lugar, já que eu não estou morto.
— Mas eu respond...
— Uma resposta menos confusa, por favor!
— Eu disse, né. Eu disse — Picker riu com escárnio e então acrescentou: — Eu explico se não consegue entender algo tão simples.
Simples pra quem?
— Então, você está em um espaço entre o nossa dimensão que você chama de “jogo” e seu mundo. Uma dimensão intermediária. Seria o que você chama de “tela de carregamento”. — Agora entendi, apesar da sensação de Picker parecer estar explicando isso para um chimpanzé, me incomodar pra caralho. — Nesse espaço não tem nada além de nós e você e podemos ver tudo o que acontece enquanto o mundo está congelado.
— Cutscenes, você está querendo dizer? — As peças se encaixavam pouco a pouco na minha cabeça.
Picker dobrou as asas como se fossem braços, flutuando no ar.
— Algo assim. No entanto, somente para você e para seus amigos o mundo irá parecer congelado, mas para o resto não. E podemos acompanhar as mudanças daqui como em uma cabine.
— Isso parece bem conveniente — comentei. — Eu sei que eu sou uma espécie de deus desse mundo e tudo, mas eu não poderia simplesmente participar dessas cenas junto com os NPC’s, não?
— Não — Picker estreitou aquele olhão gigante para mim em reprovação. — Ao fazer isso, você estaria arriscando interferir na cadeia lógica de acontecimentos que regem essa dimensão e estragar ainda mais o fluxo de causa e efeito do seu querido jogo, deusinho.
Suspirei. Isso parecia algo não muito sensato a se fazer depois daquele argumento, apesar da própria ideia de uma dimensão ou várias dimensões existirem dentro da porcaria de um jogo já não ser lá algo muito sensato.
— Herói. Nesse momento, você irá retornar, mas suas condições não estão boas. Ainda assim, complete suas tarefas e impeça que o grande mal que espreita nesse jogo tenha êxito em seus planos. — Coruja falar aquilo com aquela voz de deus feita de vozes de muitas nações falando, parecia demais para minha sanidade suportar. — Contamos com você.
— Infelizmente... — emendou Picker.
— Mas... para onde eu devo ir? O que eu tenho que fazer?!
— Você já tem a resposta para isso também.
Foi a única resposta que tive de Coruja antes de ser jogado em um branco sem fim, caindo e caindo.
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||CAMPINAS CARAMELO||, do lado de fora dos portões de ||BASIN-C||...
Acordei deitado em um campina do lado de fora da cidade.
Já estava mais do que na hora do jogo parar de me rebolar em planícies e campinas no meio do nada, né?
Meu corpo estava triturado, como se um Snorlax gigante e inquieto durante o sono tivesse rolado em cima de mim.
Muito bem, estava na hora de avaliar minha situação.
HP, check!
Itens, check!
Corpo sem buracos feitos por um machado gigante, check!
Ufa! Nada estava fora do lugar, ainda bem. Abri o inventário novamente para verificar de novo se não faltava nada. Tudo em ordem.
Até a pedrinha roxa — fuchsia — estava lá ainda. Meu //FRAGMENTO DE ALMA//.
Olhei em volta e encontrei Picker planando sobre a minha cabeça, sua cauda de diabo tapeando meu rosto.
— Wiwiwiwiwiiii!
Então esse bichinho é uma mulher? Uma loli tsundere? Hum... acho que não era de perder meu tempo com assuntos tão triviais.
Eu podia notar tropas se aproximando ao longe pela estrada; dezenas, centenas, milhares, uma ruma... não sabia dizer. Só sabia que era soldado até não dar mais.
E todos indo em direção à ||BASIN-C||.
— Merda!
— Wiwiwi!! Wiwiwiiii! — Picker devia estar me chamando de capivara ou alguma coisa assim, ou me indicando algo.
— Que foi, bola de basquete olhuda?!
Ele apontou para um outro caminho que cortava a floresta. Uma porta dos fundos? E como se respondesse ao meu questionamento, o sistema me manda uma mensagem.
Não... não uma mensagem. Uma missão.
|– MENSAGEM DO SISTEMA –|
– NOVA [MISSÃO PRINCIPAL] DISPONÍVEL! –
– CHEGUE À BJORN! (TEMPO RESTANTE: 15min) –
|– MAIS DETALHES... –|
O QUE?!
15 minutos?! Para chegar até a ||FORNALHA||? Aquela ||FORNALHA||?
Sorte que eu já tinha desbloqueado o mapa daquela área, mas mesmo assim, só a caminhada até levaria muito mais que 15 minutos.
E aquela bola rabugenta queria que eu fosse contornando a floresta?
— Wiwiwiwiii! Wiwiwi!
De repente, por algum motivo, aquelas linhas... sim, aquelas linhas verdes clarinhas, se tecendo no meio do espaço como fios que se ligavam a tudo, apareceram novamente.
Fios translúcidos que pulsavam e cintilavam.
Eles indicavam a mesma direção que Picker mostrava com sua cauda.
Eu não tinha lá muita escolha, né?
Então preparei meu machado e segui com Picker pela trilha escondida que cortava a parca massa de arvores perto dos muros de ||BASIN-C||.
Por sorte, a trilha não era tão difícil, mas cheia de vinhas e cipós insistentes que serviam de armadilhas naturais para desavisados e cegos. Arvores retorcidas, umas com folhas e outras não, formavam um corredor natural até um área em declive.
— Onde está me levando, caramba?
Andamos e andamos mais, mas chegamos à uma bifurcação na trilha com umas três placas, indicando três estradas que levariam a outros mapas.
||POVOAMENTO DE JELLA||à esquerda.
||MOSTEIRO RURIS|| para cima.
||BASIN-C|| seguindo para direita.
Sim, eu já sabia para onde ir.
Mas queria não ter descoberto o porquê de termos escolhido aquele caminho.
Ao pegarmos a direção da direita, nos deparamos com o muro que cercava a cidade; alto, majestoso, sólido e fortificado.
Mas acoplado ao muro estava um cano. Um cano tão largo e enorme quanto malcheiroso.
Pelo amor dos deuses, meus olhos lacrimejaram como uma cascata e minhas narinas queimaram ao sentir o odor daquela passagem. Um líquido gosmento que eu sabia muito bem o que era escorria de lá.
— Tá de brincadeira, né?
Picker rodopiou e depois voou até bater nas minhas costas para me empurrar, como se dissesse “deixa de frescura e vai logo”.
É muito fácil quando você não tem nariz, né?
Enquanto isso, o tempo corria. Sons de explosões podiam ser ouvidos; espadas retiniam ao longe; gritos e mais gritos estrondavam de fundo, abafados pelos sons maiores do maquinário dos rebeldes.
— Que droga...! Você ainda me paga, Picker...
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Já dentro da cidade...
A caminhada foi um inferno. E não só porque atravessei um cano de esgoto gigante, atolado até a canela de merda...
Mas também porque tinha que fazer aquilo rápido. Quantas e quantas vezes passei perto de mergulhar naquele mar de excrementos e lixo? Quantas e quantas vezes senti que iria vomitar só de tentar respirar lá dentro?
Ao sair de lá, meu estômago tinha revirado de cabeça para baixo umas 3 ou 4 vezes. Mas que infernos aqueles anões comiam, afinal?!
Mas o terrível atalho deu certo. Eu saí em um buraco a céu aberto, talvez um banheiro “comunitário”, em um distrito praticamente vizinho da grande cratera, a ||FORNALHA||.
Ainda faltavam 9 minutos para mim. Tinha que ser rápido.
Corri o mais rápido que pude pela rua, tendo cuidado para não me expor desnecessariamente. Não queimaria meu tempo costurando o caminho por becos e terrenos.
Não... o tempo não estava ao meu lado. E eu não queria arriscar saber o que poderia acontecer se eu falhasse naquela quest.
Alguns destacamentos de soldados podiam ser visto em ruas distantes, marchando em grandes fileiras e carregando estandartes.
Não consegui distinguir sua bandeira ou as cores dos uniformes, mas eu tinha certeza de que não eram soldados de ||AMINAROSSA||.
Que péssima hora para uma invasão!
Estalei a língua e tive de esperar que o grupo de soldados passasse. Cada segundo tiquetaqueava na minha cabeça.
Passando e passando e passando...
Cruzei a retaguarda deles assim que o último soldado se foi, pegando um beco transversal que cortava aquela avenida. Mais corrida e pulos e manobras por passagens estreitas e abarrotadas de lixo.
Logo, outro pelotão se aproximava pela avenida perpendicular que separava aquele quarteirão onde eu me encontrava do seguinte. O próximo era o penúltimo antes do quarteirão que dava acesso à ||FORNALHA||.
Andem! Só passem logo, caralho!
Aquele devia ser o principal, pois a quantidade de guerreiros montados era bem superior, todos avançando em conjunto; um só corpo, um só espírito, um ritmo só.
E quem os liderava era um grande e imponente minotauro. Vestia uma armadura de placas reluzente e um elmo com dois chifres nas laterais, uma camada de cerdas vermelhas correndo da testa até a parte de trás da cabeça. Ele estava armado com uma lança enorme de gume sinuoso e um escudo.
Esse deve ser o cabeça por trás de tudo, era o pensamento mais óbvio.
Enfrentar esse cara e esse exército imenso era a última coisa que eu queria agora. Além de me fazer falhar na missão, eu poderia acabar morto.
Apenas contornei a marcha, apesar de ter torrado dois preciosos minutos para tal.
7 minutos... e acabando.
Depois de uma volta gigantesca, fui por outra rua deserta, com alguns dos [LEGIONÁRIOS DE AÇO] de Thor-ardd espalhados pelo chão.
Claro que agora faziam parte de um cenário arrasado; cada casa, loja e esquina estavam em ruínas e sangue alagava o chão. Os corpos, ao invés de sumir, se amontoavam ao largo da rua. Rebeldes e soldados.
Não dava para interagir com nenhum deles. Uma breve descrição subia e dizia a mesma coisa sempre que eu tentava fazer isso: Soldado morto ou Rebelde morto.
Continuei avançando, driblando conflitos e evitando o resto da batalha que se desenrolava na cidade, até que avistei de longe o grande espaço aberto, as máquinas que faziam a extração dos recursos e minérios, bem como outros maquinários, totalmente parados.
A ||FORNALHA|| parecia intocada, isolada de toda a confusão que tomava cada rua e esquina da cidade dos anões.
Dependendo de quanto tempo faltasse para chegar até o fundo da grande cratera, eu teria que saltar diretamente até lá. Pensar nessa possibilidade fazia o suco gástrico virar chumbo dentro do meu estomago.
Já estava correndo colado às grades que delimitavam o espaço do buraco, procurando a entrada. O joelho já começava a protestar, um claro sinal que me lembrava, além do relógio ameaçador no canto de minha visão, que eu não podia passar muito tempo para encontrar a entrada.
Alguns sulcos e relevos de esteiras na terra batida me guiaram até a entrada; o portão gradeado, que estava semiaberto, se mostrou para mim metros depois.
Um elevador de cordas engenhoso, servindo como uma plataforma, estava estacionada ali, um pouco depois dos portões. Algo que eu não tinha percebido antes em minha primeira visita lá.
Pelo tamanho daquilo, julguei que fora usado para levar os tanques dos rebeldes do interior da ||FORNALHA|| para a superfície, além de vários grupos de anões e equipamentos.
Devia servir para me levar até Bjorn. Picker assentiu, seu olho reluzindo e confirmando que eu estava na direção certa quando olhei para ele.
— Certo. Ainda tenho 5 minutos e meio. Dá tempo...
Só que antes de entrar, eu escuto alguns grunhidos vindos da outra esquina mais para frente e rapidamente saquei a //WINGSLASH//, rezando para qualquer que fosse a entidade que programei naquele jogo para que não fosse um inimigo.
E para meu alívio, não era.
— Você...! Você é aquele senhor bebum que nos mostrou a passagem subterrânea.
Acho que era... Asta? Astorius... Arlindo?
— Arnaldo?
— Astholf, seu moleque! — corrigiu, irritado.
Ele não parecia estar nos melhores dias. Sua pele estava pálida, quase dar cor de sua barba e cabelos grisalhos, e os olhos estavam fundos.
— O que está fazendo aqui? Não devia estar escondido?
Ele reuniu algum fôlego, cambaleando até o portão gradeado, se apoiando na cerca. Devia estar bebendo em algum lugar de novo, escondido.
Eu não ficaria surpreso.
Mas por que eu tinha um mal pressentimento quanto àquilo? Picker também pareceu compartilhar do pensamento, se revirando inquieto debaixo da brafoneira.
E então, ele respondeu com dificuldades:
— Há algo... que eu tenho que fazer... no [TEMPLO DE MAGMA].