Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 136: Mutação
— Hnnnngh… — Ansiosa, a jovem de fios rosados andava de um lado para o outro. — Hnnngh!
A inexistência de estranhos a passarem pela rua quase deserta de casas era uma coisa boa — não para ela e sua impaciência, mas sim para eles e suas vidas.
Afinal de contas, Anastasia não desistiria tão fácil da grande paranóia que lhe ocupou a mente por todos aqueles dias.
— Eu sei que tem alguma coisa faltando…! Eu sinto, dentro de mim…! Os meus orgãos estão gritando… e eu não consigo fazer parar…!
E conforme ela se remoía de agonia, a ponto de tentar arrancar os próprios cabelos, sua companhia se espalhava de modo quase inocente pela paisagem.
Quem olhasse para os três sob a sombra da árvore sequer pensaria estar diante dos verdadeiros monstros por trás da recente tragédia de Elderlog High.
— Você não tem nenhuma pista? Geralmente as partes de seu corpo conseguem retornar naturalmente, não é isso? Sem falar que… a julgar pela altura do campeonato, já devem ter até se regenerado.
A voz vinda de um grosso galho na copa citou um fato. Com a velocidade da regeneração de seus tecidos, a rosada já haveria de ter perdido a necessidade das células pelas quais buscava.
— Isso sem falar que… — saltou, a fazer os pés conectarem quase sem barulho com a terra. — Se houvesse de fato algum problema, seu corpo teria dado sinais… O que é, em essência, impossível.
A rapaz de longa franja negra, a quase cobrir ambos os olhos, amassou a latinha de refrigerante a qual esvaziou a pouco tempo, o breve sorriso no rosto indicando a satisfação quanto a algo desconhecido.
— Heh — gargalhou, breve. — Os seus tecidos devem estar em algum lugar por aí… Lembra de todos aqueles tiros? As balas devem ter levado.
Ele se referia a um episódio passado, distante por alguns dias.
— Não… Não é isso…! — rebateu ela, ao encher as bochechas de ar. — Elas deveriam ter voltado… ou ao menos, morrido…! Mas elas estão…
— Presas? — Ele ergueu a sobrancelha, em indagação.
— Isso…! Presas…! — energizou-se com a descoberta, a ponto dos olhos azuis brilharem de alegria. — Você é muito inteligente, querido…!
— Eu já te disse para não me chamar desses nomes — suspirou, soando cansado. — E deve ser óbvio, não? Eu sou o mais inteligente. Você não é ninguém sem mim, Anastasia.
A passagem de um microssegundo marcou seu desaparecimento ao puro nada e, junto dele, foi a latinha amassada, transportada a algum lugar desconhecido pela força de seu poder.
— Voltei… e segundo os meus cálculos, se passaram dois segundos e meio… Talvez eu esteja ficando um pouco enferrujado.
Nenhum sinal do objeto se fez visto, tampouco ele diria onde o colocou ou o que fez. Porém, por mais que os detalhes fossem permanecer como mistérios, uma conclusão se fez certa.
— Estão estudando as suas células, Anastasia, e digamos que, sim, tenho uma ideia bastante plausível de onde irá encontrá-las.
Ele vaidosamente arrumou os cabelos, sem se preocupar com o fato de terem acabado por ficar do mesmo jeito de antes e, na mais clara representação do próprio orgulho, olhou o mundo ao redor com desprezo.
— São os agentes da CIA. Eles estiveram bem ativos na cidade ultimamente e fizeram bastante bagunça… Não que isso vá ser preocupação, mas, minha cara Anastasia, gostaria que você os deixasse um aviso. Aproveite que, possivelmente, as duas coisas estão no mesmo lugar: o hospital dessa cidade.
Somente um deles já pisou no local em questão e a menção serviu de leve alerta à mais distante, afinal, ela jamais toleraria a perda de um grande trabalho.
— Certo, certo…! — A aparente garota quase saltitou no lugar, tomada pelo mais novo senso de dever em fazer acontecer. — Vou acabar com todo mundo lá dentro…!
A menção a fez tomar um passo à frente, tomada por uma profunda emoção, invisível no semblante neutro, porém, antes do pé tocar o chão, retrocedeu, diante das novas diretrizes apontadas por ele.
— Eu preciso que você faça algumas coisinhas — anunciou. — Em primeiro lugar, é de urgência que visite uma certa moça. Vai entender de quem estou falando quando a encontrar, mas a única coisa que quero é: não a mate. Vai saber o que fazer ao achá-la.
Menos mal. Qualquer um podia morrer, com exceção de tamanha promessa…
… e de tamanho amor.
— Em segundo, vai deixar uma mensagem para alguns amigos nossos… Essa é a parte mais fácil. Basta matar quantos quiser.
O reflexo das lâminas dos canivetes guardados nos bolsos da calça jeans se fizeram visíveis pela primeira vez e, no canto de uma delas, viu-se as claras marcas dos restos da tintura verde da lata rasgada em mil pedaços.
— Positivo…! — assentiu exageradamente, a simular um soldado a receber ordens. — Mas… O que eu preciso fazer quando chegar lá…? E quem é essa pessoa especial?!
— Bem… ela é um caso e tanto — respondeu de forma propositalmente vaga. — Digamos que seja um pequeno experimento, fruto da nossa curiosidade. Acho que vai se surpreender ao saber de quem estou falando.
— Huuh… Espera aí…
A menina de marias-chiquinhas fez diversas caretas para ele, quase como em uma análise de detetive; curiosa, o olhou de cima a baixo, de um lado ao outro, sempre com o polegar no queixo e a encarada inquisitiva.
— Suspeito…! Muito suspeito!
Anastasia podia não demonstrar ser uma das lâmpadas mais brilhantes na estrada, porém sua intuição feminina a disse algo importante e, de certo modo, preocupante.
— VOCÊ TEM UMA NAMORADA?!
A exclamação a quatro ventos reverberou vários metros ao redor, capaz de chamar a atenção da terceira integrante, agora visivelmente interessada no tópico.
— Ridículo…! — começou, lágrimas já formadas e prestes a cair. — Quantas outras vezes eu já te disse que não precisa de outra mulher?! Você já tem a mim…!
E sua falta de atenção aos detalhes, na continuação da reclamação, se extrapolou para o grande sinal vermelho a crescer em sua frente, mais brilhante ao fim de cada palavra.
— Eu sempre faço tanto por você… Me sacrifico, me coloco na reta… E é assim que eu sou paga… sendo substituída por uma qualquer, que com certeza não é nem tão bonita, nem tão forte quanto eu…!
A terceira, por mais atenta, sequer se mobilizou para reagir. O sentimento a queimar nas feições dele não era de sua alçada e acima de tudo…
— … Isso é injusto… injusto…!
Ninguém em sua sã consciência se colocaria no caminho dele quando sua paciência se aproximava do tão perigoso final.
— Anastasia.
Subitamente, ele a puxou pelos cabelos.
— Argh…! — Em resposta à excessiva força empregada, ela gritou. — Isso… do…!
GUSH!
— Já chega — disse ele, pisando no grande lago de sangue formado em questão de segundos sob seus pés. — Vá e faça o que te mandei, sua incompetente inútil.
— Haaack…! Haaack! — Ela respirava com dificuldades, muito mais atenta ao enorme corte sangrante sob o queixo.
— Será possível que tanto tempo se passou e você ainda não aprendeu algo tão simples quanto isso?
A bochecha esquerda entrou em contato com o próprio sangue quente sobre a terra, pressionada com mais força pelo sapato a empurrá-la mais baixo.
A falta de sangue trazia consigo muito frio e a agonia de sequer poder respirar se reparava nos tremores e espasmos.
— Você não é igual a mim, sua macaca de laboratório. Não se refira à minha pessoa como se estivéssemos no mesmo nível e nem cogite se referir ao meu ser como se ambos fôssemos comparáveis — anunciou, frio.
A agarrou pelo moletom antes rosa sem dificuldade alguma e ao elevar o peso da garota no ar, o clique da língua deu o sinal do anúncio ríspido e impaciente.
— Ouça bem, sua inútil… Eu tenho organizado esse espetáculo no decorrer de anos, todos os dias pondo o máximo de mim nesse trabalho meticuloso de arranjar peça por peça…
O início do monólogo marcou o princípio da regeneração do grande corte. Devagar, o volume de sangue desceu até se resumir a meras gotas e a multiplicação das células tratou de preencher as falhas residuais.
— Tenho meus contatos, meus agentes, coisas pelas quais batalhei muito para conquistar e, já que é idiota e acéfala demais para compreender, eu vou dizer com todas as palavras…
Músculo se fechou em torno da traquéia, liberando a passagem regular do ar e com o sobressalto de sua consciência, Anastasia tremeu ao vê-lo, face-a-face, sustentada pela única mão no queixo.
— Você é só uma peça, sua energúmena… inútil no plano geral como qualquer uma das outras, embora cabível ao seu próprio modo descartável, então rasteje no chão que é seu território e faça somente o que eu te mandar fazer.
— Ugh…! — A menina foi fortemente jogada na terra, lançada longe pela força extrema e inesperada de seu “líder”.
— Limpe esse sangue nas suas roupas… ou não faça. De qualquer forma, eu só preciso que deixe uma pequena mensagem para o pessoal cuidando das investigações… algo que os informe que, nesse parquinho, eles jogam pelas minhas regras.
Os passos dele começaram a tomar distância, em retorno à sombra confortável e para as proximidades do membro mais silencioso da equipe.
— Você e eu vamos dar uma volta. Eu tenho uma visita para fazer e preciso que fique de guarda.
A receptora da mensagem não reagiu por meio de expressões ou fala, mas prontamente deixou o encosto confortável das costas contra o tronco e, estóica, admirou o horizonte enevoado das montanhas.
— Muito mais agradável — cumprimentou, ao manter um largo sorriso. — Sua eficiência nunca deixa de me impressionar. Quem dera todos os meus grandes amigos fossem desse jeito!
Posicionado ao lado da acompanhante na viagem, deixou-se olhar pela última vez para a derrotada rosada, preocupada com tirar o excesso de terra e lama das vestes.
— Você é a mais apropriada para o trabalho, Anastasia. Não me decepcione.
E, em um piscar de olhos, desapareceu, deixando-a sozinha no grande campo verde.
— … Ehehehehe…
Ela se levantou, a largar camadas de pele superficiais, logo regeneradas ao ponto prévio, vendo-se livre da sujeira a cobrir o corpo.
— Ehehehe! Ele disse que eu sou a mais apropriada…!
O sangue, rubro e praticamente impossível de se esconder, foi logo resumido a igual piada, quando, como uma página rasgada, o monte de células mortas se separou do tecido, cedendo ao chão na forma de pó.
— Ele precisa de mim…!
Os eventos prévios e as palavras maldosas foram reduzidas ao nada pela última proclamação, transformadas em puros raios de graça e animação, mediante a redescoberta de seu lugar.
De um jeito tão fácil, a coisa se reverteu ao princípio.
— Eu não vou decepcionar…! Não vou! Ahahahaha!
A fala dele trouxe um norte em como sentir as células perdidas e agora com a consciência plena da localização, chamá-las de volta acabou de se tornar um pouco mais fácil.
— Mas eu ainda vou ter que tirá-las de lá…! Ahahahahaha!
[...]
— Incrível… Simplesmente incrível…!
O laboratório de análises do necrotério sequer de longe lembrava o local meticulosamente limpo e organizado que um dia foi.
— É magnífico…! — O especialista gritou aos quatro ventos, enquanto arranhava as laterais do próprio rosto. — É a maior mudança até o momento…!
Pryce ajoelhou diante daquilo que julgava sua maior obra; desnutrido e visivelmente privado de sono, o pesquisador se sustentava somente na própria empolgação crescente, fruto da novidade que revolucionaria o curso da biotecnologia.
— Eu descobri… Eu descobri o segredo…
Ao redor dele, muito além dos limites da placa de petri, fios de carne e tecido, unidos em tentáculos, se enraizavam nas paredes e aparatos.
Os montes de células pulsavam com corrente sanguínea própria, reagiam a estímulos e formavam estruturas a cada segundo mais complexas, documentadas erraticamente em registros ansiosos.
De início, criou órgãos essenciais, a desenvolver um próprio coração e aparelho digestório e, com poucos dias, passou a contar com membros articulados, um torso rudimentar e, mais importante, o esboço do que, um dia, viria a ser sua face humana.
— Uma forma de vida imortal…!
E ele cavou, cortou, queimou e analisou os segredos por trás da forma tão intrigante e que sempre, sempre voltava para mais, a cada segundo mais próxima de adquirir sua plenitude consciente.
— Me mostre…! — suplicou, enlouquecido pelo progresso. — Me mostre mais…!
A figura aparentava entrar em um novo estado de evolução, a ganhar novos movimentos imbuídos de algum propósito. Grudada no lugar, parecia estudar os arredores, movendo o projeto de cabeça de um lado para o outro, observando.
O único olho azul, um tanto rudimentar, se dividiu em dois mais complexos e similares ao padrão humano, dentro de meros segundos.
— É… consciente… Se tornou… uma forma de vida consciente…! Só pode ser isso…!
Apressado, ele prontamente tomou nota da mais nova observação: ao notá-lo, travou a atenção nele e, de imediato, sorriu com a boa semi-vazia, onde alguns dentes já rasgavam a carne, em crescimento veloz.
E a coisa só ficava um pouco mais humana a cada segundo passado.