Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 134: Inexistência
— Eu não preciso saber ler a sua mente para saber que já chegou à uma conclusão sobre isso tudo… Mas, o que você planeja fazer?
No meio de um corredor sem cor, existia uma porta fechada.
— Isso… Isso não era parte do plano… ISSO NÃO ERA PARTE DO PLAN…!
— Então, a gente não vai discutir aquilo… Nunca mais. E, se você quiser…!
Devagar, ele arrastava o corpo exausto pela imensidão infinita, cheia de contornos e limites indefinidos, o objetivo de tocar a maçaneta servindo de único motivador para vencer o chão grudento, a forçá-lo a seguir.
— Hehe! Típica indecisão sua…! Sempre esperando alguma coisa acontecer…!
— Desta vez, podem acreditar no que eu digo. A nossa viagem chegou ao fim.
Não havia ar para respirar ou algo a se sentir. Ali dentro, os limites do impossível correspondiam ao zero, e os esforços se arrastavam e prolongavam e se deterioravam, só para começar de novo.
— Então foi você que fez ela chorar…! Ha! Que reviravolta de eventos! Cara… Eu me pergunto que tipo de merda você falou com ela para deixá-la daquele jeito…! Puta que pariu, você é podre!
A única coisa junto dele e da óbvia porta era sua própria sombra, agarrada em suas pernas para forçá-lo a parar e, por baixo dela, o frio incompreensível do conformismo.
— NINGUÉM LIGA PARA O QUE VOCÊ PENSA, SEU MERDINHA!
Ele, porém, somente continuava, marchando sem fim aparente.
— Me explica… Por que logo comigo?!
As mãos corriam pelo corpo e o atravessavam, arrancando, sem dor, aos pedaços da pele por onde as garras se fincavam.
Sem hesitação ou sequer questionamento, ele continuou andando.
— Você é um idiota.
Os olhos roxos refletiram o branco dessaturado. Ali dentro, serviam de única fonte de cor. Então, levou a mão à maçaneta e a abriu.
… … …
“Huh?”
Escuro.
À frente, para os lados, para trás, preto sem fim se espremia em torno de si próprio, moldado em redemoinhos, enquanto ondas baixas o empurravam de um lado para o outro, guiando ao destino.
Ali, bem diante de seus olhos, se erguia uma parede de tijolos compostos de vidro transparente.
Ele sabia já ter vindo ali várias vezes antes e, no peito, queimava a familiaridade de compreender o que se daria depois, manifestada em ansiedade.
O mais simples movimento de seus pés, invisíveis, abriu as águas escuras, revelando chão a cair infinito, tal qual o interior de uma sala de espelhos.
E ele se viu de todos os lados, ângulos e projeções e, de novo, percebeu não se tratar de nada, pois embora o coração sentisse, a mente sequer dava sinais.
A mente não queria se enxergar.
“Hmm…”
Paredes inexistentes foram erguidas entre ele e o muro. Seguir seria o único caminho óbvio e assim o fez. Lento, andou sem som, até o ponto de poder sentir a rigidez a poucos centímetros da frente de sua cabeça.
A parede era tal qual as várias outras coisas ali: sequer podia ser vista, e se havia qualquer traço de sua real existência, essa talvez não passasse de mais um devaneio. Ilusão ou não, porém, estava ali.
E ele podia experienciar.
“...”
Esticou a mão ausente de dedos — talvez até ausente de si mesma — e tocou para se deparar com o nada; click e o cenário se alterou, e foi a outro lugar… um lugar lindo.
Pela primeira vez, o mínimo de coerência fez questão de marcar presença. Ao olhar para si, percebeu ter um corpo e, acima de todo o resto, uma forma verdadeira.
“Hmm…”
Ter sentido, porém, não significava afirmar qualquer nível de solidez ou confiabilidade nas leis erráticas do mais novo ambiente.
O ar tinha um cheiro estranho… Não lhe lembrava algo em particular, mas algo a mais o dizia ser conhecido e o jeito como se agarrava na garganta tornava a respiração difícil.
O chão se quebrava e remendava a cada passo, espatifando como um vidro frágil com a bizarra propriedade de se consertar sozinho. Andar ali deixava marcas sem fim, sempre seguidas de um crack.
Cores se misturavam e revertiam em um céu ausente de estrutura, mudando de pontos para listras e de listras para formas tridimensionais variadas, desmontando nos antecessores e regredindo, em ciclo.
O cômodo não se estendia ao fim da vista, ao contrário dos outros, e os limites predefinidos mostravam não ser grande. No canto esquerdo, existia uma única passagem sem porta, pela qual cores sangravam.
Ele entrou e sua forma só pôde admirar o qual pequeno acabara de se tornar diante da imensidão do salão de tons e luzes à frente.
A arquitetura se elevou, similar à de um castelo, porém, no lugar do trono que costuma ficar no meio, existia uma grande cachoeira de tonalidades.
As cores, imiscíveis entre si, cediam lugar para uma forma ao seu centro, que o notou com aparente satisfação, feliz ao vê-lo de novo, mesmo que pela primeira vez.
O semblante sem face sorriu — as cores mudaram ao fazê-lo — e, sem espera, desceu entre os rios de dourado vivo, carmesim e ciano, para seu cumprimento habitual.
O coração dele o avisou para afastá-lo, mas a mente, curiosa, o paralisou de tentar qualquer manobra, e o inevitável aconteceu, como em todas as várias nenhumas vezes de seu comparecimento.
Sem aviso, a forma esticou uma mão ansiosa e arrancou seu olho esquerdo.
— Ugh…!
Caiu de joelhos e a gota rubra do sangue coloriu a cachoeira. O quarto ficou vermelho das paredes ao teto e a coisa ficou ali, orgulhosa de seu trabalho.
— … Ora, você…!
Desviou o golpe de modo ágil, alterando o próprio ambiente para um estado de inversão; do ponto de vista prático, foi como se ele houvesse socado para trás.
— Me devolve isso…!
A forma correu e pulou na cachoeira. Sem hesitar, fez o mesmo, afundando no mar vermelho, que outra vez se alterou ao contato da mais nova cor.
— Huh…?!
A piscina roxa o empurrou para baixo, de forma contrária ao esperado pelo corpo e, ao enfim chegar ao fundo, percebeu se tratar, na verdade, do topo.
— Eh…?
O fluido secou, revelando um quarto negro. As linhas brancas nos cantos determinavam os seus limites, e fora as paredes, existia mais algo: um grande espelho.
A superfície quase líquida não o refletiu, embora mostrasse perfeitamente qualquer nada que existisse atrás dele. Curioso, deu passos até quase tocar o vidro com o rosto e estendeu a palma aberta.
— … Aí tá você…! Me devolve o meu olho…!
Fechou o punho e socou o vidro, mas a recém-descoberta consistência borrachuda o devolveu com um rebote de igual intensidade.
O ser sem cores do outro lado somente, exibindo o olho roxo em sua própria mão esquerda.
— Me devolve…!
Quase como se zombasse de sua incapacidade, um imperceptível sorriso se abriu na feição ausente de expressões e, ao fim de vários segundos, encaixou o olho e o chamou de seu.
— Ei…!
A pintura de puro branco mudou de comportamento e passou a ativamente imitá-lo.
— Huh…? Uh… — deu três passos para trás e um para a esquerda. — Eeeeh?
O ser, agora desprovido de expressão, fez o mesmo. Por um segundo, saiu do enquadramento no espelho quando ele também o fez e, ao voltar, lá estava novamente.
Levou pouco tempo para ser percebido se comportar como o reflexo perdido.
— Haaah? — confuso, cruzou os braços. — Coisa estranha…! Seja lá o que for, você é esquisito demais!
A repetição perfeita dos gestos chegava a ser incômoda e, em realidade, recuperar o olho perdido seria só mais um capricho, pois ao pular na cachoeira, a dor sumiu e a visão voltou ao normal.
— Então, se eu me aproximar, você também se aproxima… — deu três passos à frente.
A falta do órgão ainda se notava e embora não mais sangrasse ou fosse até irrelevante de ser recuperado, o buraco no lugar onde deveria ficar o incomodava.
— Hmm… Já que vai ser assim, então eu…
Por dentro, se julgou inteligente como nenhum outro pela simples tarefa de ter “enganado” um reflexo. Decidido, aprontou os dedos em direção ao olho esquerdo roubado e o tocou pelo reflexo.
— … Quê…?
Em susto, pulou para trás, presenciando o mesmo gesto sendo repetido pela criatura sem expressões.
Foi como se ainda estivesse lá, mesmo se tratando de só uma órbita vazia. Quando as pontas dos dedos fecharam em torno do globo, sentiu a própria carne a cada passo que fazia.
— Você…
Reservou tempo para encará-lo, quase imóvel, deixando-se notar o quanto ambos existiam em pé de igualdade naquela caixa de sombras.
— O que é você? — perguntou, mesmo ciente da possibilidade quase certa de não receber resposta.
Pela primeira e única vez, falou, e as coisas que disse fugiram no infinito, incompreendidas pela limitada percepção humana.
— … … …
Ao fim, uma ravina sem fundo se abriu no centro da sala.
— Ei…! — entrou em pânico, sem saber como reagir ao fenômeno pelo qual seu corpo passava.
À menção, a criatura inverteu os papéis e assumiu o controle e em um piscar de olhos, o controle de seus membros já não mais o pertencia.
— … Espera aí…!
O ser ausente de detalhes o guiou rumo ao buraco.
— ESPERA…!
E o fez pular.
[...]
— Haaaaagh…!
No meio de já tão rotineira madrugada vazia, Ryan despertou.
— Haaah… Haaah…
Entre respirações ríspidas e o choque de temperatura com o frio da noite, o adolescente fez correr as mãos pela face, trêmulo a ponto de quase se arranhar no processo de descobrir estar inteiro.
— Pesadelo… — suspirou. — Foi mais um… pesadelo…
Levantou da cama besuntada pelo suor gelado a cobrir-lhe o corpo, foco em um único destino. Antes de sair pela porta, apertou o botão do celular novo, momentaneamente cegado pelo clarão.
Eram 2:23 AM. Ágil, plantou os pés no corredor escuro, abriu a entrada de outro cômodo e se deixou ir.
— BLUERGH…!
O eco da descarga cruzou as paredes do andar de cima e ao sair, piscou para perceber o quão diferentes as coisas passaram a ser naqueles últimos dias.
Dos pés à cabeça, dores musculares e fadiga deixaram suas cicatrizes. Os treinos se tornaram mais intensos, por mais contraproducentes que fossem, na grande maioria das vezes.
Raramente ele tinha a oportunidade de aprender algo novo, mas, para que não fosse de todo mal, houve sim algum progresso significativo, tal qual o nascimento de importantes descobertas.
“Já chega de ficar esperando.”
O céu escuro acrescia ao terror ocasionado pelos movimentos das árvores e ali, no centro do mar de trevas, um pouco ao longe, o aglomerado de luzes azuis e alaranjadas se destacava.
“Preciso ir.”
Uma certa história precisava acabar, e quanto mais cedo, melhor.
Vestiu um moletom e desceu, novamente sem se preocupar com luzes, e o simples fato de não ter levado uma queda feia só podia ser puro milagre.
Antes de sair, tocou o bolso para se certificar da presença do importante objeto quadrado. Seria uma pena total se esquecer de uma das peças mais cruciais do improviso que resolveu nomear de “plano”
— Já passou da hora de ter feito isso.
A singela ventania úmida acertou-lhe com o cheiro de madeira molhada.
Graças à chuva, o poste da avenida ganhou pequenas gotas de decoração e o barulho da água empoçada contra o solado dos sapatos rompeu o quase perfeito silêncio.
Tirou a bicicleta da garagem — pneus menos cheios em relação ao ideal — e junto dela, a segunda metade da empreitada tecnicamente criminosa, quase recostada no canto da parede, e se foi.
E a viagem ao local determinado foi a mais pesada de sua vida.
“Hora de acabar com isso.”
A bicicleta ficou do outro lado da rua, a aguardar. A partir das memórias ainda vívidas, notou sequer ter se alterado alguma coisa no forte de madeira decrépita.
“Ninguém mais vai colocar os pés aqui dentro.”
O risco era grande demais, logo, despejou o conteúdo do que trouxe — um galão de gasolina — pelas paredes externas, iluminadas pela eventual fraqueza dos raios lunares.
Ao menos, evitaria-se o risco de lidar com alguma sombra viva.
— Isso acaba aqui — riscou o palito de fósforo, atirando-o numa pilha de madeiras localizadas no fundo.
O alaranjado queimou firme, mesmo em face da umidade e com tanto fogo à disposição, bastou começar a espalhá-lo por dentro das janelas quebradas.
“Ninguém vai se esforçar para salvar esse lugar. Ninguém quer ver mais um dia dessa casa em pé.”
As toras em chamas foram jogadas em pontos estratégicos: sobre tapetes, mobílias, ou o mais próximo quanto possível de qualquer coisa inflamável.
Por fora, a casa podia estar molhada e não seria destruída tão facilmente, porém, por dentro, manteve-se ainda seca, a propiciar as melhores condições para a queima.
— Serviço acabado.
Depois de sólidos dez minutos, pôde espanar as mãos calejadas e admirar o lento, porém certo, progresso das labaredas, a já cobrirem grande parte do andar de baixo.
— Meu trabalho aqui acabou.
Por incrível que soasse, assistir ao fogo e se deleitar na destruição de algo tão perigoso não contou como “boa ideia”, então, sem mais, virou de costas e começou a caminhada de volta.
Não seria um bom final de noite e, muito possivelmente, os pesadelos constantes sequer o deixariam dormir mais que meia-hora seguida, porém, algo o disse para não ficar ali.
— Huh? — olhou para cima, bombardeado por uma onda de som e luzes.
E Ryan se amaldiçoou por não ouvido essa voz antes.
— Opa, e aí…!
Uma figura ofuscada pela luminosidade desceu por uma corda como um aventureiro, somente segundos depois deixando a origem clara: um helicóptero, e um bastante silencioso.
As hélices espalhavam o vento do modo mais selvagem, porém, o barulho podia, no máximo, ser comparado ao de um enxame de abelhas, e, sem intenção, acabaram o prestando apoio.
— Foi um trabalho e tanto, esse aí que você fez… Uma casa onde ocorreu um crime, lendas urbanas… Enfim, tudo, um dia, tem que acabar, né? É assim que funciona.
As ondas de vento impulsionaram o fogo e espalharam faíscas mais longe no interior da estrutura, em poucos segundos levando o escaldante fulgor a triplicar.
— Então você é o tal…! — ele sorriu, mãos nos bolsos e cabelo desgrenhado pela ventania. — Se importa da gente ter uma conversinha? Eu bem que queria saber mais sobre você… diretamente!
Ao admirar aquele sorriso, sequer teve como demorar para compreender.
“Ah… É mesmo.”
O helicóptero desligou o holofote, o possibilitando de ver os reflexos das dezenas de pares de olhos mecânicos, o definindo e marcando, à distância.
“Eu já tinha antecipado que isso ia rolar em algum momento…”
Logo, ele só levantou as mãos para alto e resignou-se à nova posição sob a qual passou a existir.