Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 115: Liberdade, Consequências
— Tô aqui. Depois de tanto tempo, eu finalmente tomei coragem… Eu sei, eu sou um descarado.
Ao sentar ao lado da fotografia empoeirada no memorial, Ryan deixou o conteúdo da sacola plástica na frente da pilha de flores secas, deixadas por aqueles que vieram no tempo certo.
— Mas, agora, não tem nem porque ficar me importando com isso.
A ausência de outras pessoas servia de lembrete para a realidade que decidiu ignorar pelas últimas semanas; o instante das homenagens e das lágrimas pesadas já havia passado.
Outras pessoas não mais visitavam os memoriais da primeira tragédia na Elderlog High, focando suas atenções no novo evento maior e bem mais recente, enfim deixando de lado os poucos perfurados.
E esse compunha o motivo de estar ali, pois, por mais que o tempo se passasse e as prioridades mudassem aos olhos dos outros, ele nunca permitiu que o peso cedesse como deveria.
— Merda… o que eu tô fazendo da minha vida…? — levou a mão ao rosto e suspirou. — Falando com um morto como se pudesse me ouvir…?! Desde quando eu fiquei tão estúpido?!
Quis rir de si mesmo, mas as gargalhadas doíam no pescoço repleto de marcas. No fundo, tinha plena ciência de não ser essa a resposta, mas preferiu acreditar assim.
— E além do mais…
Afinal, seria paradoxal e hipócrita demais — até para os próprios padrões — querer se arrepender e voltar atrás depois da condenação de tudo o que o trouxe até tal ponto.
— … Por que eu tô agindo como se isso fosse alguma diferença agora…?
Sob o calor crescente de um verão próximo, o picolé sabor manga sob a grama iniciava o derretimento, derramando sobre o verde e fazendo uma bagunça no memorial perfeito.
Caso ela estivesse ali, não deixaria que isso acontecesse; era seu sabor favorito, afinal.
Só dessa vez, decidiu engolir o orgulho e a profunda sensação de inadequação e vergonha.
— Eu ferrei com tudo. Foi mal, Ashley.
A imagem sorridente da adolescente de longas ondas castanhas e gemas quase douradas se via coberta de poeira e gotas de chuva, protegida do desgaste pela frágil vidraça do porta-retrato.
— Fiquei procurando desculpas. Não sei porque, mas parte de mim não quis aceitar que você pudesse ter sido uma boa pessoa, então, fiquei sendo infantil, mimado…
Olhou a palma da própria mão esquerda, envolta em ataduras literais, mas de extensões metafóricas ao longo de toda a sua pessoa — arrependimento.
— Me empurraram numa luta que eu não queria participar, me jogaram no meio da droga de uma realidade que eu passei tanto tempo sem querer aceitar, mesmo estando bem na frente dos meus olhos.
Os dentes, uns contra os outros, refletiam dor pelos cantos do crânio, dando luz a algumas fracas câimbras.
— Mas, agora que eu tô comparando, sei porque odiava tanto ter que participar disso… Eu só não queria que isso acabasse. Não queria ter nada pelo que me responsabilizar. Antes, minhas ações não tinham consequências.
Engoliu, e a dor pela passagem da saliva o fazia querer vomitar e cuspir de volta.
— E eu queria que fosse assim para sempre — admitiu, em pesar. — Contanto que as lembranças pudessem ser apagadas depois, ninguém ia sair prejudicado. Eu ia poder fazer o que quisesse, sem necessariamente interferir com a vida de ninguém… Soa ótimo, né?
Relembrar tais tempos o trazia ondas de nostalgia, de quando não precisava se preocupar com gente vindo caçá-lo ou assassinos superpoderosos devastando várias dezenas de vidas.
Seja de roubar algo simples, até fazer pessoas esquecerem de coisas para tomar os mais diversos tipos de proveito, no fim, foram ações de intenções inocentes, nascidas da pura impressão de se poder fazer o que bem desejasse.
— Eu só queria continuar vivendo isso o que chamam de “liberdade”.
Aí, porém, surgia a falha na lógica tão fragilmente emotiva do rapaz de dezessete anos, pois, onde há liberdade de ação, juntamente se recebe a carga chamada “consequências” por tais atos.
— Ele também fazia aquilo que queria e, olhando hoje, pensar no passado me dá nojo.
Os risos de Keith Webb ao perfurar pessoas ressoaram com o âmago do Savoia, confrontado com a pura satisfação derivada da mesma liberdade que também perseguia.
— Porque eu e ele… éramos praticamente iguais.
Keith negou as consequências até seu último suspiro, assombrado ao limite quando, inevitavelmente, elas vieram e lhe tomaram o bem mais precioso: sua própria existência.
— Tive raiva deles... do Mark, da Lira… Tinha raiva porque eles existindo significaria que eu perdi a minha liberdade… Ou ao menos, é o que pensei de primeira.
Ryan Savoia aprendeu tarde demais que não se pode evitar pagar o preço.
— … Quando, na verdade, eu odiava eles porque me lembravam que eu não ‘tava fazendo nada de certo.
Era como ter aquele colega de trabalho perfeito — o que consegue as promoções porque faz quarenta minutos a mais todos os dias e no topo disso, ainda consegue dar “bom dia” para os demais e ser gentil —, enquanto você só faz o mínimo, para conquistar o salário e ir embora.
— Eles me fizeram sentir inadequado de um jeito ruim — abraçou os joelhos. — A vontade de fazer algo maior, de se comprometer com uma causa… Eu não queria ter que pensar nisso; só queria viver a minha vida.
O altruísmo e o compromisso com os outros, legítimos ou não, acertavam no ponto onde mais doía.
Somente após ser vitimado pelas consequências, entendeu a real mensagem por trás do profundo desconforto que sentia ao vê-los, tão determinados, discutindo planos nos corredores da escola.
— Eu sabia que isso ‘tava errado, só não queria aceitar. Eles dois me lembravam disso o tempo todo, e eu odiava essa parte de mim que insistia em me obrigar a ser como eles!
Algumas poucas formigas garantiram espaços nas gordas gotas de açúcar saborizado, levando à terra ao que a ela pertencia.
— Aí eu afundei na minha negação… e fiz o que fiz — pausou. — Quis me enganar, me fazer pensar que podia só ignorar eles e continuar fazendo o que eu quisesse… Afinal, se eles eram tão bons assim em defender a cidade, se eu não me metesse em enrascada séria, eles não se envolveriam.
Mas o destino, irônico, colocou no curso dele alguém com o mesmo princípio, embora sob uma luz-guia por completo distorcida.
— … Eu sinto muito, Ashley… Do meu jeito mais egoísta, eu sinto muito.
Sem mais a capacidade para sustentar qualquer superioridade aparente, pouco faria diferença, mas se qualquer coisa, talvez retirasse uma fração do peso imenso em seus ombros.
— Se pudesse voltar e fazer alguma coisa diferente naquele dia…
Deitou na grama, encarando o céu azul tão raro na cidade.
— … Teria considerado os seus sentimentos do jeito certo, ao invés de ter dito aquelas coisas horríveis.
Até imaginou a possibilidade de ficar ali e refletir sobre seus atos e palavras, mas o destino não lhe daria tamanha mordomia.
— Você aí.
Pois, logo ao fechar os olhos e sentir a brisa tranquila, sons de passos o interromperam.
— Não deveria estar por aqui, garoto.
“Huh?!”
Movido pela entonação pesada e súbita, elevou o corpo inteiro de uma única vez, se erguendo-se sob os próprios pés em um quase-pulo.
— Ah…! — Sem saber o que dizer, gaguejou. — Eu…! Eu só…!
— Imagino o que esteja fazendo e não o interromperia se não fosse importante — assegurou o visitante extra. — A questão é que você deve ir agora, garoto. Não é interessante ficar nas ruas em meio a tanto perigo.
O homem transparecia uma óbvia aura de autoridade, formada por ambos seu imenso tamanho e proporções físicas, como pelo fato de trajar um terno, inclusive acompanhado de óculos escuros.
Era claro se tratar de um homem da lei — ou seja —, o pior tipo de sujeito para se querer discussão.
— Existe um criminoso na cidade, possivelmente terrorista, rondando pelas ruas e invadindo residências. Se não quiser ser confundido com ele, sugiro que vá para a casa e se tranque lá dentro, imediatamente.
Ele mostrou um distintivo, do qual se lia “Agente Walker” e cujas credencias apontavam algo ainda mais perigoso.
“... Ele é do FBI…”, pensou, se esforçando para conter qualquer reação abrupta.
A revelação levou o Savoia a comprimir a mandíbula com força; se policiais comuns costumam ter suspeitas, esperar diferente de agentes treinados seria tolice.
Desde o incidente na Elderlog High, as autoridades de justiça do país se tornaram mais cautelosas em decorrência dos ânimos aumentados.
Qualquer um poderia ser componente da tal “organização terrorista” e mais do que nunca, os olhos da mídia se tornaram mais incisivos na busca de respostas.
E se de uma coisa o jovem sabia, é que não hesitariam em fornecê-las para tentar trazer um mínimo senso de tranquilidade aos civis, independente de serem ou não mentiras.
Afinal, mesmo em meio ao caos, o status quo deve ser soberano enquanto o problema não for resolvido pela raíz.
“... Preciso manter a calma…”
Só podia rezar para que o grande agente não notasse as respirações pesadas e carregadas de ansiedade que se esforçava para conter.
— Eu poderia te dar voz de prisão agora, por desobedecer a ordem de recolhimento… — anunciou, firme. — Mas vou deixar você passar com uma advertência.
Contemplativo, tomou um par de segundos para dissecar o contexto, seus escuros olhos profundos escaneando o picolé derretido, em meio às rosas secas.
— Trinta segundos para você sumir da minha vista, contando a partir de agora.
“...!”
Tomado pela pressa e o súbito aumento na pressão de seu sangue, Ryan catou a bicicleta do chão gramado do parque da cidade e começou a pedalar com a própria vida.
— É melhor não parar até chegar em casa! — exclamou, não tão alto. — E quando chegar, é melhor que não saia!
O garoto, ao topo dos pulmões, alcançou a esquina em questão de um piscar de olhos, feito capaz de arrancar certa surpresa do combatente treinado.
Contudo, a coisa que mais o impressionou, foi o fato de mesmo após tanto esforço físico, aquele pirralho ainda poder gritar.
— … Obrigado…! — exclamou, antes de desaparecer na esquina.
Pouco mais e demais sinais de barulho deixaram as imediações, com exceção das sirenes. Como ele, porém, devem haver outros vários desavisados que não souberam da notícia.
— Esses tipos de operação nunca são um serviço perfeito…
Mastigou o resíduo do sabor de sangue dos golpes levados mais cedo, na casa um pouco mais acima na rua em questão, e vacilante entre saber o que encarar, optou pela fotografia no meio do memorial.
— … Caso “Perfurador de Elderlog” — mencionou para si mesmo, ao vento. — Se tivéssemos chegado mais cedo, haveria mais o que investigar e aprender.
O “cadáver” obtido por Pryce não contava muitas coisas. Incendiado, a maior parte de seu material genético foi desnaturado, dificultando a pesquisa.
— Bem, ao menos agora vamos ter algo um pouco mais vivo para estudar…!
A aquisição de Mark Menotte elucidaria diversas perguntas e o tempo para respondê-la se tornava cada vez mais curto. Em resposta a isso, adentrou o carro e se preparou para cuidar dos detalhes.
— … Hmm…
Contudo, conforme girava a chave de ignição e ajustava os pés, grandes demais para os pedais, uma pequena paranóia se manifestou.
— Aquele moleque… Os olhos dele eram roxos, ou foi só impressão? Talvez eu só esteja ficando alerta demais por causa do Menotte e vendo cores estranhas nas feições das pessoas…
Em verdade, sequer conseguia se lembrar bem, tendo posto muito mais foco no cenário do que no jovem em si, e em qualquer caso, não podia perder seu tempo precioso.
[...]
— … Cheguei…!
Exausto e coberto em suor, a primeira coisa que Ryan recebeu ao abrir a porta de entrada foi o maior susto dos últimos dias.
— Ryan…!
O abraço firme o fez pensar que um pouco mais de força o faria ter vários ossos esmagados.
— Uh… Hannah… Que foi?
— Eu pensei que algo pior tivesse acontecido…! — desfez o abraço. — Como você sai sem levar o celular, Ryan?! E se eu estivesse certa?! Tem um criminoso perigoso na rua…!
A profunda encarada perfurante das íris roxas o despertou para a realidade com um choque interno.
Sem dar maiores explicações, fugiu para lá-se-sabe-onde, para fazer lá-se-sabe-o-quê; era óbvio que ela se preocuparia.
— Eu tentei te ligar, mas você não tinha levado o telefone! Não me preocupa mais desse jeito, irmão!
Aceitar o segundo abraço, bem mais suave, foi a coisa que restou para o irmão mais novo.
— Tem um louco perigoso andando pelas ruas… — disse, mais aliviada. — Ele já matou gente e sabe invadir casas… Felizmente, não tá escondido por aqui, mas o centro da cidade foi todo isolado. Tive muito medo de te perder…
Tais palavras, carregadas de tamanha emoção, acertaram fundo.
— Foi mal, Hannah. Eu devia não ter me descuidado assim — admitiu.
— Devia mesmo…!
Hannah quebrou o novo contato e ao fazê-lo, notou enfim o detalhe peculiar no pescoço do seu irmão.
— Ryan… O que são essas marcas?
A tentativa de escondê-las foi facilmente percebida e afogada em preocupação, o segurou pelos ombros, impedindo a fuga.
— Não minta para mim — exigiu. — Eu tô cansada de te ver assim e não vou aceitar desculpas. Isso foi claramente obra de alguém. Quem foi?
— Ah, sobre isso aqui…
O adolescente esboçou um sutil sorriso, e devagar, tocou o braço direito da enfermeira, afastando-o lentamente.
— Digamos que o meu plano para hoje não foi tão suave quando eu pensei… Mas mesmo assim, deu certo! E é isso que importa.
A palma, muito maior que a dela, tocou o topo da cabeça, em um gesto de carinho.
— Não vai acontecer mais. É uma promessa.
Se desfazendo dela tão facilmente, Ryan rumou para a cozinha e sons de água ecoaram alto, em meio às ondas tumultuosas no coração da mais velha.
“Irmão…”
E então — CRACK!
— Uhh… Hannah, me responde uma coisa…
Ela engoliu tais pensamentos revoltos, trancando-os na profundeza de si própria.
— Que foi, irmão?
— Quando foi que a Joanne comprou esses copos?
— Os copos de vidro? Eu acho que há uns dois anos… Por quê?
Dali, podia sentir o turbilhão de dores, vindas do coração dele.
— Ah, é que…
Seu irmão apareceu na porta, a mão direita coberta com o pano da pia, já repleto de sangue e pingando.
— Então… o copo meio que estourou na minha mão… Tem curativo aí para isso, né?
E somente o tempo poderia fazer algo a respeito, por bem ou por mal.
— Hunf… Senta aí! — ordenou, apontando o sofá. — Eu vou lá em cima, pegar umas coisas para cuidar disso… Enquanto isso, liga na televisão e vê se vai passar mais alguma notícia!
— Tá certo.
— Já volto…!
A subida pelas escadas foi ágil, parte pela preocupação física com o ferimento, parte fruto do tumulto afogado em sorrisos.
“Me desculpa, irmão…”
Uma lágrima solitária caiu sobre as bandagens na gaveta.
“Me desculpa, de verdade…”