Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 96: Reminiscência, Ato 1

Água, fria e escura.

— …ark…?

Sem ar, afogando.

— … Mark…!

Peso incidente sobre as costelas, ininterrupto.

— Mark, para de me ignorar…!

Braços avulsos, pernas dançantes ao ritmo quebrado; desespero.

— Depois não me diz que eu não te chamei tantas vezes…!

E então, houve dor.

PLAFT…!

— Ow…! — O rapaz reclamou. — Olha só, qual foi a necessidade disso?!

— Para de bancar o idiota, Mark! Eu tô aqui faz um tempão te chamando…!

Olhar para a direita o revelou a conhecida face da garota de cabelos castanhos, arranjados em ondas. Desapontada, ela o encarava, julgando com frieza a atitude com a qual foi — ou não — recebida.

— Sério, dessa vez foi longe demais, Mark! Quero saber como foi que tu nem deu uma risadinha comigo te chamando…! Tá ficando tão bom assim em zoar com a cara dos outros?!

A postura de braços cruzados indicava impaciência. Não existiam outras pessoas na sala e o relógio na parede marcava, bem claramente, já terem se passado sólidos três minutos e meio do fim da aula.

Em outras palavras, ela tinha total razão para estar brava.

— Ah…! Olha, foi mal! É que eu tava pensando aqui em uma coisa e… quer saber? Deixa isso para lá. A gente já tá meio atrasado mesmo, né? Melhor só ir embora daqui.

Sem mais delongas, ele catou a mochila e a jogou sobre as costas. O dia não corria da melhor maneira e em meio a tantos pensamentos, sentia esquecer um detalhe importante.

— Ei, onde pensa que vai?

A jovem a seguí-lo puxou-o pelo tecido do casaco cinza, enviando a informação como um choque intenso o bastante para puxá-lo de onde estivesse.

— Não lembra do compromisso que fechou com ela? Você se comprometeu a levar a Sophia para o refeitório.

De repente, o mundo passou a fazer sentido.

— Putz, é verdade! — Ele se estapeou, surpreso com a própria falta de noção. — Merda, ela deve estar me esperando até agora…!

A promessa o retirou do mundo dos sonhos, garantindo-lhe nova energia e, ao tomar um grande gole de ar, estalou o pescoço e se prontificou para ajudar.

— Vou dar uma corrida até lá! — disse, com um leve sorriso. — Pode ir sem mim, Julie! A gente se encontra lá, na mesma mesa de sempre…!

— Ah, tá bom — respondeu, de jeito descontraído. — Mas só toma cuidado para não deixar essa tua cabeça de vento te tombar da escada e acabar deixando um rombo no chão quando a testa dura acertar o último degrau!

— Tu gosta de me zoar, né, garota?

— Alguém tem que deixar esse teu ego um pouquinho mais baixo, ó senhor “Rei da Escola”...! — brincou, em deboche. — Agora vai, vai! Vai ajudar a Sophia a descer as escadas. Já deixou ela esperando tempo demais.

A falsa atitude ignorante da colega de classe o fez morder a ponta da língua, em divertimento. Ela podia agir daquela forma o quanto quisesse, porém o importante é que sempre viria por bem.

— Pode deixar! Vou trazer ela que nem uma princesa…! — rebateu, ganhando os corredores semi-vazios e chamando-os de “seus”.

De determinação renovada, Mark se pôs ao trabalho, saltando pelas paredes, sobre armários e lixeiras, focado na promessa feita à pessoa no segundo andar.

“Agora, ela vai precisar da minha ajuda mais que nunca…”

No caminho, recebia variadas reações e expressões, desde professores levemente desapontados, até estudantes satisfeitos ao cúmulo com a fama anti-heróica acumulada nos últimos meses.

— Yo, Mark…! Tá de boa, mano? Pega essa…!

A bola de basquete jogada por Peter Jenkins foi capturada sem esforço pelos apurados gestos acrobáticos do Menotte.

— Opa! Arremesso bom…! — quicou a bola duas vezes, antes de saltar no ar, extravagante. — Por enquanto, tudo na santa paz, meu cria!

O objeto logo se viu de volta ao centro do peito do arremessador inicial, atirada com precisão milimétrica, sem força demais para doer, mas não fraca o bastante para se perder no caminho.

— Ei, Jenkins…! — O chamou, após duas cambalhotas. — Sábado, no cinema! Chama a tua trupe para a gente ver aquele lançamento!

Pondo do jeito mais simples, o jovem pálido e magro adquiriu status de celebridade, dentro e fora daqueles corredores.

— Tá beleza! Vou levar geral, a Melody e a Katie também…!

— Tá fechado demais, meu parça! — lançou um sinal de joia para cima, desaparecendo no corredor para a esquerda.

Afinal, o serviço fornecido por esse rapaz era único e distante da alçada de quaisquer outros, ausentes da mesma coragem e determinação que levava no seu sangue.

“Partiu resolver todos esses problemas…!”

Tão logo entrou, Mark Menotte assumiu o importante manto de ser o herói necessário de tantas pessoas. Ao contrário dos demais, decidiu confrontar a estrutura e conquistá-la, de dentro para fora.

— Yahoo…! — exclamou em ânimo, girando no ar.

Os passos rumo ao andar de cima marcaram os poucos segundos de sua chegada e embora julgasse uma infelicidade que o sujeito procurado tivesse aulas do outro lado da construção, decidiu olhar pelo lado positivo de que pôde aproveitar um bom parkour pela instituição inteira.

— Vamos lá… Sala 1-F, onde rolam as aulas de história no horário dela…

E, acima de tudo, havia um motivo maior: a garota que buscava era uma amiga de longa data e em sua condição atual, abandoná-la à própria sorte seria, no mínimo, agir como um terrível melhor amigo.

— Ah, tá ali — tomou nota da porta no terço médio do corredor à esquerda. — Vamos lá olhar!

Infelizmente, Sophia caiu das escadas de casa e fraturou o tornozelo, a obrigando a usar uma muleta para melhor locomoção, e enquanto subir não era tarefa ruim, descer em tais condições trazia grandes riscos.

Afinal, ele jamais se perdoaria por permití-la dar de cara com o chão lá embaixo, por consequência de um escorregão ou algo do tipo.

Então abriu a porta da sala, preparado para convidá-la animadamente ao mais perfeito almoço entre amigos e…

— Sophia…? — A única coisa que saiu foi uma pergunta mal-entonada, que ecoou pela sala vazia, rebatendo nas paredes de verde morto.

Nem mesmo um espírito fazia do ambiente a morada e a falta de vida o levou à imediata frustração. Imediatamente, qualquer animação sua definhou e o rapaz se viu plenamente sozinho.

— Então… Acho que ela já deve ter descido… — falou para si próprio, desapontado.

De fato, ele demorou demais. Sophia teria o completo direito de se cansar de esperar e cair nos braços do primeiro que aparecesse; uma pena.

— Hunf… É isso — fechou a porta, dando costas para o ambiente de aspecto sombrio e largado. — Quem sabe ela já tá lá embaixo, almoçando com o tal de Bobby Dilan…?

Ultimamente, ela tem recebido algumas mensagens de um cara do time de futebol, repleto de intenções e bem insistente nos desejos.

— Eu só espero que ele não esteja incomodando ela demais…

Sabia não se tratar de uma criança e muito menos desejava restringi-la de viver a própria versão do romance adolescente ideal, porém…

— Tô bastante incomodado com esse mano.

Vinha um agarro ruim no fundo do peito ao pensar nela namorando aquele maluco.

De novo ao andar de baixo, não encontrou em si a energia para continuar saltando, então enfiou as mãos nos bolsos, arrumou a posição das alças da mochila e andou, confiante, até a área de convivência.

“Esse solzinho tá até forte… Olha só que novidade!”

Procurava por ela de forma inconsciente entre os vários estudantes na área aberta, cheia de árvores. Sem nuvens, o céu azul se destacava, banhando-os com o calor tão raro e bem-vindo.

“O clima tá até bonzinho para jogar um basquete.”

As tentativas de se entreter e enganar deixaram de funcionar quase imediatamente, quando notou ser incapaz de encontrar qualquer amigo ou conhecido no meio de tanta gente.

— Porra, hoje eu tô sem sorte mesmo… Perdi até a Julie…!

Os estudantes pertenciam em seus próprios grupos e tal conjugação costumava ser obedecida; na realidade da escola americana padrão, quem não se encaixa, não tem vez.

— Eh… Bora ver o que a gente tem aqui, então… Quem sabe dá para matar uns minutinhos, até começarem a servir aquela gororoba que chamam de “macarrão com queijo”... — fez aspas com os dedos, sem entusiasmo.

Alguns caras mais altos jogavam basquete na quadra aberta, queimando sob o sol. À princípio, até cogitou se juntar e marcar uns pontos, mas um importante detalhe o parou de último segundo.

“Do jeito que eu sou branquelo que nem um floco de neve, cinco minutos e eu tô parecendo um peito de frango grelhado.”

Resolvendo deixar isso para lá, olhou mais na frente, para debaixo da sombra de uma das maiores árvores. Ali embaixo, protegidos de quase tudo, um grupinho jogava algo multiplayer nos celulares.

“Ah, sem chance. Minha bateria tá meio morta. Vai acabar em uns dez minutos se eu ficar usando junto com dados.”

A esperança não podia ser perdida e na incessante busca por um lugar onde se enfurnar como um tijolo e fazer parte da parede, detectou mais dois grupos similares em paradoxo, ao longe.

“Eh…? Sério que só tem esses…? Que merda, hein.”

Do lado um do outro, em guerra silenciosa, porém sem interferir diretamente, lançavam estratégias venenosas para implantar, com tentativas fúteis, ideias nas mentes umas das outras.

“Nossa, que disputa emocionante…” riu por dentro, em sarcasmo.

À direita, jovens esbeltas, loiras e bronzeadas, cujos únicos tópicos variavam entre tratamentos de beleza, celebridades e os rapazes do time de futebol, cheias de risadinhas exageradas e deboches.

Para Mark, era surpreendente ainda existir a “patricinha” no ano de 2024.

— E eu aqui pensando que a Julie era sangue ruim… — suspirou, deixando os ombros caírem. — Se bem que… ela me disse que quase ficou daquele jeito. Ainda bem que não rolou.

Não formavam o tipo dele, seja para amizade ou romance, e tinha plena certeza do oposto, pois a popularidade que buscavam em um homem vinha com nome e sobrenome: “atleta musculoso”.

“E eu nem tenho um bíceps que mostre… Boa, genética!”

Ao menos uma boa coisa a experiência trouxe, permitindo-o rir de sua própria pessoa e deixá-las de lado para admirar a complexidade do outro grupo, bem mais profundo e erudito: as meninas estudiosas.

“É… melhor só não entrar lá… Já tá tenso demais como está.”

Elas raramente conversavam entre si, de caras enfiadas em livros, juntas sob o acordo de afastar o bullying das demais e embora soasse definitivamente melhor, as entrelinhas lhe eram claras.

“Olha só como agem, mostrando serem melhores que as outras porque lêem na escola…!”

Conhecia as origens do orgulho como mais ninguém e isso o capacitava para identificá-lo em outros; elas jamais se permitiram dizer abertamente, mas “nossa, você é muito inteligente” é o que mais desejariam ouvir dos mesmos caras desejados por suas rivais.

“Heh! Melhor deixar elas com essa fantasia… Talvez atraiam um nerd de óculos que acha que vão enxergar ele como um igual…?”

A boa risada o preencheu de certo divertimento, dando-lhe um belo minuto e meio de entretenimento com os resultados da situação hipotética e justo ao pensar ter ficado sem opções, um som o chamou a atenção.

— Huh?

Detectou movimento de relance, fugindo entre o verde com bastante velocidade, sem fazer muito barulho. A princípio, imaginou ter visto uma bola ou coisa parecida, mas a teoria caiu por terra ao captar que ninguém abandonou a posição para ir atrás.

— Hmm… — Na ausência de algo melhor para fazer, Mark optou por seguir a fonte do som.

A falta de algo para fazer tornava qualquer experiência no evento mais interessante do universo e nesse caso, não podia ser diferente, pois nunca antes prestou tanta atenção no mato e nas pedras do chão terroso.

E o dia chato expandiu sua perspectiva, agraciando-o com trilhas de formigas, trabalhando sem parar, carregando folhas em fluxo constante, imóveis perante ao devir e as adversidades.

As coisas continuam e a vida segue, diante de amarguras e espinhos, altos e baixos, e no fim da grande e laboriosa caminhada…

“... Tem uma garota…?”

Não dessa forma quis finalizar a profunda viagem filosófica, contudo, foi como aconteceu. No fim da jornada, sentada em um banco de madeira, estava uma adolescente solitária.

“Mas o que…” Não pôde concluir a linha de pensamento, tomado em choque pela presença tão alheia daquele humano solitário, tão abandonado quanto ele.

Ela assistia aos raios solares penetrando entre os vãos das folhas, atingindo-a em cantos diferentes com intensidades variadas; parecia deslocada, vivendo no próprio mundo, isolada na bolha invisível da mente.

E ele não parava de se questionar a razão por trás de tamanho isolamento, buscando soluções óbvias, sem encaixe no final.

Bem, que mal faria perguntar?

— Uh… Hey!

Teve de evocar o próprio espírito da coragem e se permitir à possessão para sair dentre as folhas secas e abordá-la diretamente, e quando os pés tocaram concreto outra vez, deu entrada em outro mundo, opressor e alheio, guiado pela encarada afiada da resposta.

— Tempo bom, né? — O julgamento interno por essa pergunta tão boba demandou de toda a energia para ser suprimido. — Eu sou o Mark! Qual o teu nome?

Bastava sorrir e lançar uma pose confiante… Essa estratégia nunca falhou.

“Uh… diz alguma coisa… por favor, diz alguma coisa…!”

Por vários segundos, ela o fitou com violenta e muda intensidade, o fazendo questionar, pela primeira vez, se o “joinha” o fazia parecer um idiota.

Posto isso, o coração sorriu de alívio ao ouvi-la falar.

— Não. Vai embora.

A resposta fria, seguida da ignorância consciente no olhar o trouxe de volta ao chão, desacelerando a bomba no meio do peito. Não foi de longe ótimo, mas ainda melhor em relação aos cenários hipotéticos a cruzarem a mente.

— Ah… Tá bom — envergonhado, desviou o olhar. — Olha… foi mal.

Não houve resposta, entretanto a careta repleta de contrações o ordenou a costurar os lábios e jamais dirigir-se a ela de novo.

“Caramba, que atitude…!”

Mark podia ser bobo ou brincalhão, mas “estúpido” não estava na lista, então tentou não deixar claro o descontentamento com tamanha frieza, tratando de sair tão depressa quanto possível.

“Tch…! Esse pessoal, eu vou te dizer…!”

Tomou o segundo passo, rumo à realidade que seus olhos e ouvidos jamais esqueceriam. Os gritos vindos de cima soaram conhecidos e a imagem, tão vívida, mais ainda.

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!

“O que…?”

PLAFT!

… … …

Silêncio — ensurdecedor, cheio, incômodo ao limite do impensável — e o mundo se calou, diante da tragédia tão mundana.

“Mas… O que…?”

Quis gritar, com todas as forças, aos quatro ventos, mas nada saiu.

“O… que…?”

Nem a muleta se salvou de acabar coberta com sangue, repousada a poucos centímetros do corpo retorcido e agora irreconhecível daquela que chamou de “amiga” por tanto tempo.

“Sophia…?”

Os dentes batiam uns nos outros, o tempo pareceu parar, deixando somente a trilha rubra fluir, sem fim, sobre o concreto do passeio.

“Sophia…!”

De tão aterrorizado, as pernas falharam, deixando-o para se arrastar, desesperado. A ficha demoraria a cair.

“Não pode ser… Não…!”

Novamente, forçou a garganta a funcionar, sem resultado. Ele tinha de estar sonhando.

“Isso… Não é real…!”

Não demorou para vir outro detalhe à mente: ela, a garota no banco, e quase automaticamente se virou, em busca de aconchego, ou ao menos uma declaração de loucura.

— Hmm… — Um leve suspiro sonoro deixou aqueles olhos análiticos, mirados em um ponto distante, embora nada alheio.

Por puro reflexo, seguiu a direção selecionada por ela, inclinada superiormente, rumo ao prédio escolar e, mais especificamente, uma das janelas do terceiro andar.

— Hkkk…!

E lá ele viu, por um lapso de segundo, a face de quem tão cedo aprendeu a tratar como inimigo e odiar, desaparecendo como um raio na escuridão vasta e vazia da construção.



Comentários