Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida

Capítulo 31: Interrogatório, Flashback

— Mas primeiro…

A encarada fria e sem qualquer traço de piedade de Lira tirou seu foco de Keith. Ela olhou para sua esquerda, mais especificamente para a região das arquibancadas na quadra abandonada.

— Ryan Savoia, venha mostrá-lo a verdade de tudo o que aconteceu.

Sua demanda não vinha acompanhada de qualquer chance de perdão e Ryan sabia disso, dado o quanto que isso foi mostrado pelo próprio trajeto, até que chegassem ali.

Mesmo com dores de cabeça vindas do inferno e uma agonia pulsante em seus dois olhos, o rapaz exausto de tanto lutar levantou-se e foi até os dois tão depressa quanto podia.

Ele tirou a toalha molhada que cobria a visão, e duas pequenas gotas de umidade caíram no chão de madeira podre.

— Heh! Interessante ver vocês trabalhando juntos depois de tanto ódio...! — Keith zombou. — Impressionante como uma japonesinha qualquer consegue domar qualquer cara que quiser nesse mundo...!

Mesmo em sua condição, o Perfurador de Elderlog se recusava a tratar como algo sério, o que não passava de uma simples fachada para ocultar o terror absoluto que vivia. Disso, Lira sabia muito bem.

— Mostre para ele como tudo aconteceu — demandou, de braços cruzados e nojo expresso. — E faça isso rápido.

Ryan não podia dizer muito em primeiro lugar, e fazer isso poderia custar o preço de ter seu coração esmagado, então suprimiu qualquer possível sentimento de amargura e ajoelhou, diante do assassino amarrado com o rosto de frente para o teto.

E sem dizer nada, colocou a mão direita sobre sua testa, chamando por seus próprios poderes. 

Os olhos do rapaz se iluminaram, preenchidos com a luz na cor de violeta.

Logo, o mesmo efeito se fazia visível nos olhos que Keith Webb, prestes a enfim experienciar o que ocorreu fora da ilusão.

[...]

— Hahahaha! Não vai ser hoje nem nunca, Mark!

Corria desimpedido, o sorriso de felicidade plena em seu rosto servindo como a indicação de que seu futuro de liberdade continuada enquanto o Perfurador de Elderlog estava garantido.

“Ninguém vai me impedir de continuar fazendo o que eu quero. Desde que ganhei esse poder, finalmente consegui fazer a vingança que queria contra aquelas malditas pessoas...!”

Keith Webb não tinha as melhores memórias com os indivíduos que matou. Em sua mente, ele guardava cada pequeno momento e fragmento das ocasiões em que foi destratado por eles.

“Sério? Me denunciar para a polícia porque pensou que eu roubei umas decorações de jardim?! O que aquele velho balofo tinha na cabeça para acusar uma criança?! Eu tinha usos muito melhores para o meu tempo... Tipo brincar!”

Desde o princípio, entendeu o significado por trás do que seu poder trazia: era seu desejo de vingança, de perfurar e dilacerar as vidas das pessoas, como tentaram fazer com a dele, e assim como os dedos acusatórios que para ele foram apontados tão indiscriminadamente no passado, facas e canetas também tinham pontas.

“Qualquer um que vá querer me arranjar problemas vai acabar morto...! Seja em Elderlog ou qualquer outra cidade em que eu viver de agora em diante! Não importa serem pessoas comuns ou a merda da polícia!”

Virou o corredor para a esquerda. Ali estariam as escadas de sua liberdade. De longe, via as diferenças de luz trazidas pelas janelas próximas e sentia a liberdade que delas emanava.

— Justo como eu havia imaginado.

“Huh...?”

Uma voz feminina soou profunda em sua cabeça, vinda do corredor ao lado. Graças à sua imensa velocidade, seu corpo não teve como ignorar os efeitos da inércia, incapaz de frear plenamente ou mudar de posição antes de ser encaixado na armadilha.

— Te peguei.

Em câmera lenta, o tempo parecia cada vez mais prestes a parar, o que lhe deu um último vislumbre pleno, embora tão sucinto, da face que o aguardava em seu caminho para mais um dia de impunidade.

Olhos asiáticos, cabelos castanhos, cardigã rosa e uma atitude que, literalmente, chocou o seu coração.

O pior de tudo era que ela não estava sozinha.

Tudo o que seu corpo inteiro sentiu nos próximos dois segundos foi a intensa corrente elétrica a cortar por cada centímetro, iniciando-o do centro de seu peito, e sua consciência anestesiada fez parecer que durou por horas a fio.

E como se não existisse um jeito de piorar a sua situação, lá veio ele, o tal de Ryan, trazendo o seu braço direito para mais perto de sua face.

O brilho roxo vindo de seus olhos foi a última coisa que viu.

… … …

— Agora descubra o máximo possível sobre ele e no menor tempo possível. Não podemos correr o risco de que isso seja insuficiente — falou Lira, ainda pressionando o gatilho da arma de choque.

— Eu vou tentar...

— Não disse para tentar. Eu mandei você conseguir.

Ryan estalou a língua, mas as possíveis repercussões disso apenas vieram segundos depois, quando o frio olhar da garota se prendeu em si, obrigando-o a tomar o curso desejado.

— Parece que o nome dele é Keith... Keith Webb... E isso é o mais fundo que eu consigo ir.  O restante das informações está confuso demais... Eu... Não consigo ler nada...

Fechou os olhos e trancou os dentes, em preparação psicológica para sentir seu coração esmagado pela mão gelada novamente...

— Abra seus olhos, Ryan Savoia. Eu não vou fazer nada. Consigo dizer que não está mentindo sobre isso.

Muito para sua surpresa, Lira apenas caminhou para mais perto, na intenção de admirar a imagem estática de Keith Webb, paralisado.

— Explique o que vê.

Engoliu sua saliva antes de falar, ainda não com tanta segurança.

— Eu nunca vi isso antes... A mente dele é confusa, cheia de coisas que não tem conexão nenhuma uma com a outra... Não é algo coeso ou sequer legível. Eu... Não entendo isso...

Pela primeira vez em sua vida, os poderes do Savoia falhavam em ler os pensamentos superficiais de uma pessoa. Ao olhar essaa mente, tudo o que via era uma imensidão complexa de estruturas desconexas.

— Dizer que é como ler um texto em outra língua seria longe da realidade... É quase como se fossem...

— ... Várias línguas diferentes, uma por cima da outra, certo? 

A única coisa universalmente compreensível no amontoado de cores, formas e sons era um nome: Keith Webb. De alguma maneira, todas as várias vozes existentes em sua cabeça se uniam de um jeito único, esquecendo as diferenças para sinalizar algo singular.

— Como você... — Ryan tentou falar, mas foi interrompido.

— Eu já tinha pensado nisso. Esse indivíduo... As leituras que tenho dele são anormais o suficiente. No final, acaba fazendo sentido que seja assim, ao mesmo tempo que inevitavelmente prova a minha teoria.

Os olhos de Lira mostravam o que orestante do mundo sequer sonharia em ver um dia. Do corpo de Keith, várias linhas coloridas escapavam, variando em espessura, cor, formato e estado físico.

Uma linha saía de seu braço direito, com aspecto amarelo e gasoso. Ela flutuava no ar, se dispersando.

Outra vinha de sua perna, escorrendo pelo chão como água. Era vermelha, mas em um tom muito mais claro e vivo que o de sangue. Parecia estar fervendo e grudava como chiclete por onde escorresse.

A terceira escapava de seu rosto, em púrpura. Tal manifestação não escorria ou mudava de posição, perdurando perfeitamente estática e sólida, tomando toda a lateral esquerda de sua face.

E a quarta, mais preocupante do que todas as outras, vinha de um ponto específico demais para ser ignorado.

— Incline a cabeça dele para baixo.

A tolerância da Suzuki já era boa o suficiente, então Ryan não hesitou em seguir com a ordem. Um tanto bruscamente, ele expôs a nuca do assassino inconsciente, revelando algo peculiar.

— Hmm... O que é isso...? — Curiosa acerca do pequeno objeto, o puxou para fora da pele na qual estava fincado. — Um fio de cabelo...?

Aquilo foi fincado em sua carne de alguma maneira, sem chance de ter crescido naturalmente.

— Isso estava profundo no pescoço dele. Não é compatível com o crescimento de um cabelo. — afirmou Lira.

Era um fio loiro, longo o suficiente para cobrir a palma completa da meio-japonesa em extensão. Seus últimos três centímetros, antes fundo na pele, continham traços aparentes de sangue.

— Isso aqui...

— Isso aí deve ser a chave para resolver esse problemão...!

A voz característica do rapaz de cabelos negros e pele pálida se anunciou, calma, na direção dos dois.

— Yo, galera! Olha... Bom ver que vocês dois já estão começando a ficar amigos! A gente vai precisar disso.

Como se nada de mais acontecesse no momento e essa fosse apenas mais uma conversa casual, o último membro do trio formado pelas circunstâncias juntou-se à conversa.

Interessantemente, não dava a mínima ao fato de estar coberto de seu próprio sangue e repleto de cortes.

— Estamos fazendo isso porque é necessário. — Lira foi a primeira a responder. — Se não fosse por isso, você o teria deixado escapar.

— Sei, sei...! Conta essa para outro...! — Despreocupado, Mark balançou a mão. — Que bom que nós três somos grandes amigos, não é mesmo?

De canto, Mark observou o silencioso trabalho de Ryan, que tinha a palma direita sobre a testa do assassino, em foco constante para a aplicação da sua habilidade. 

Sem perder tempo, tratou de dar-lhe um leve tapa nas costas.

— Ryan, Ryan... — Ele começou. — Eu sabia que nós tivemos um começo complicado, mas sempre tive fé que você um dia seria alguém minimamente útil para essa equipe...

O Savoia fazia seu máximo para não dar atenção. Com sua habilidade, mantinha a consciência de Keith presa em uma ilusão mental, ideia essa vinda de Lira, quando “discutiram” o breve plano para capturá-lo. Era sua primeira usando os poderes daquela maneira.

— Mas sabe, cara... Mesmo que você seja fraco e mesmo que seja ruim para caramba em usar o seu poder ou tomar uma atitude com relação às coisas... Mesmo que você não preste para fazer isso de jeito nenhum... Eu ainda te perdoo, sabia?

... ... ...

— Eu te perdoo por todas as suas mancadas, Ryan, então não se preocupa. Quando eu disse que a gente ia ser um trio, eu tava falando sério. Então olha... Um dia desses, depois que a gente der um couro naqueles policiais lá embaixo, eu te ensino a dar uns pulos pelas paredes, fechado?

Não era um pedido de desculpas legítimo.

Àquela altura do dia, o recém-chegado na cidade não tinha mais em si mesmo a energia psicológica para iniciar esse debate, logo, por mais que desejasse falar algumas verdades ao rosto de Mark, não faria isso.

Então ele só tomou ar e perguntou:

— Quantos deles vamos precisar derrubar? E em primeiro lugar, qual é o plano?

— Oh meu Deus! Você ouviu isso, Lira?! Eles crescem tão rápido...!

Só quis se estapear no rosto, algo que apenas não fez para não perder a concentração na tarefa mais importante.

— Ele perguntou sobre o plano! Que emoção...! Ryan, você é oficialmente o nosso filho agora!

A comemoração do Menotte foi cortada de imediato por um doloroso pisar de Lira em seu pé direito. De aparência amarga, a estudante com o rabo-de-cavalo o trouxe de volta à realidade.

— Precisamos ser sérios aqui, vocês dois! Ainda não acabou por aqui. — Ela determinou, inspecionando os arredores. — Isso... Se preparem, os dois! Ryan, solte ele imediatamente!

Sem perder mais um segundo, Lira puxou a arma de choque que tomou emprestada de um dos policiais cativos e aplicou um segundo choque no corpo parcialmente consciente de Keith.

— Caramba... Tu gostou disso aí mesmo, né?

Com o toque da corrente, seu corpo convulsionou ainda mais intensamente em comparação à primeira vez, em um longo choque que durou o dobro do tempo: quatro segundos inteiros.

E com Keith a cair nos braços de Ryan mais uma vez, ambos os rapazes focaram na postura da única garota no trio.

— São policiais... Três deles, subindo as escadas agora!

Menos de dois segundos depois, o que antes eram sons de passos distantes entraram no foco visual do trio de estudantes superpoderosos, na forma de três oficiais armados na outra extremidade do corredor.

— Vocês! Parados agora! — O homem ao centro apontou sua arma e os outros fizeram o mesmo. — Se identifiquem agora ou iremos atirar!

Tentar usar de diálogo não os auxiliaria ali e o corpo desmaiado de Keith não abria brechas para qualquer argumentação.

— Heh... Como se a gente fosse querer conversar com esse pessoal...!

Mark tomou três passos à frente, confiante no pequeno plano que pensou de pronto. Sem medo, abriu um largo sorriso diante das pistolas, de braços espalhados como os de uma estátua.

— Eu disse que é melhor não tentar graça, moleque...!

— Ah, e o que vocês vão fazer? Atirar em mim?

Nenhum dos três conseguiu acreditar no que seus ouvidos revelaram no segundo que seguiu a pergunta.

— Pensem de novo! Ia ser bem melhor se tivessem ficado quietinhos lá embaixo.

Em um piscar de olhos, lá estava ele, falando atrás dos três, além de perigosamente próximo do comandante do trio.

— Bons sonhos!

Girou em torno de seu próprio eixo em um salto e acertou um chute no centro do rosto do policial, o que não apenas quebrou seu nariz, mas enviou o grande homem pelos ares por pouco mais de um metro, desmaiando-o.

— ... Filho da puta...!

O oficial à direita do nocauteado apontou temerosamente sua arma para o rapaz pálido... Um gesto em vão, bastando outro chute bem colocado para que a pistola fosse mandada para longe.

— Olha, eu tenho escutado esse insulto bastante hoje...

Ele tentou correr para recuperar sua arma, mas o mero adolescente era muito mais veloz do que podia antecipar..

— ... Só que eu não considero um insulto, sabia? Nunca conheci puta maior que aquela... E nem acho que tenha por aí!

Qualquer esforço era inútil, e o pouso perfeito de Mark sobre os ombros do policial apenas provou isso. De forma perfeita, cada um de seus pés se encaixou nas extremidades superiores dos braços, levando-o a uma grotesca e violenta queda por excesso de carga.

— Arrgh…!

— Foi mal, parceiro. Nada pessoal, mas só não interrompe os nossos planos.

E tal como o primeiro, foi finalizado com um chute na face.

— Esses moleques... Eu preciso chamar reforços...!

O terceiro membro da equipe — uma mulher — imaginou que teria mais chances ao recuar por hora.

Seu plano de alcançar as escadas foi perfeito e logo estavam perto o suficiente para que seu grito de socorro fosse escutado do primeiro piso.

“Eu não sei o que tá acontecendo...! Como um moleque derrubou aqueles dois?!”

Dois metros e chegaria; não podiam persegui-la.

“A gente precisa urgentemente de ajuda...!”

Ela as via, ali, diante de seus olhos. Aquelas eram as escadas que levariam ao primeiro andar.

— Mas... Por quê...? Por que eu não consigo descer?!

Tinha liberdade plena para tomá-las. Não foram espontaneamente bloqueadas ou tinham qualquer tipo de barreira ou obstáculo. Não tinham água até o último degrau ou ardiam em chamas. Não havia nada de especial no simples lance de escadas.

Então, por que não conseguia se obrigar a descê-las?

Um bloqueio, grito de sua mente que a impedia de mover sequer um músculo se a intenção disso fosse pisar no primeiro degrau. Ela sentia repulsa, terror e medo.

— Não consegue descer? Oh, mas que pena... Não tem nenhum monstro lá embaixo, sabia?

Seus olhos assombrados e corpo paralisado da cabeça aos pés focaram por completo na imagem da esbelta adolescente que surgiu do início do corredor.

— São apenas escadas… Não tem nada com o que se preocupar. São apenas escadas, então por que não as desce?

Em passos lentos e cheios do pico da elegância, se aproximou.

— Por um momento eu imaginei que sua vontade de chamar por ajuda iria superar um medo tão bobo... Oh, bem… Me parece que coloquei um pouco de fé demais em uma pessoa com um coração tão fraco.

Incapaz de falar, uma lágrima de puro pavor deixou o rosto da policial, quando o brilho azulado do arco elétrico lhe foi apresentado.

[...]

— Esses três não vão demorar muito para acordar e mais deles vão vir logo... Terminou com o teu processo aí, Ryan?

A impaciência dele não podia esperar por mais trinta segundos. De um lado para o outro, arrastava o corpo de Keith, como uma criança faria com um boneco.

— Acabei de terminar... — respondeu, secando suor de sua testa. — Eles não vão lembrar mais de nada.

Cuidadosamente, posicionaram os três policiais contra uma parede, um ao lado do outro, de modo a lembrar sua formação original.

— Perfeito… Agora, para o plano... A gente só vai precisar de uma coisa. Vai ser uma corrida só.

Mark chegou mais perto, com um único dedo indicador levantado na intenção de maior ênfase.

— Nós vamos fazer todo o caminho até o térreo e levar esse saco de batatas aqui para a quadra. Apareceu um policial? A gente derruba e o Ryan limpa as memórias, simples assim. Eu tomo o risco e a Lira me dá suporte. O plano é esse.

Pedir a opinião do grupo não era seu ponto forte. Decidido, mirou no lance de escadas logo ao lado.

— Vamos lá, sem mais um segundo a perder!



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