Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 29: Perseguição, Ato 2
“Já não bastasse toda a humilhação de agora a pouco…”
O intenso calor corroía a pele de seu peito por dentro e a abundante linha de sangue vivo que escapava e manchava suas roupas escorria incessante, lhe queimando o espírito.
Seus olhos não escapavam das grandes gotas vermelhas… Segundos depois e já sentia as repercussões no topo de sua garganta, preenchendo sua traqueia com o terrível gosto férrico do fluido da vida.
— Vocês... Ainda tem a coragem... De tentar me derrubar com um tiro...
Ele olhou para cima, capturando plenamente a forma daquela que apertou o gatilho.
— E é aqui, comigo, que o seu caminho termina — disse, sua postura estóica se mantendo firme.
Cabelos castanhos mantidos em um grande rabo-de-cavalo, fios perfeitamente lisos a escaparem por entre a amarra. Seus olhos eram afiados como pontas de flecha e exalavam uma atitude fria, sem o mínimo de simpatia por sua dor.
Levava uma postura retilínea e confiante, coberta por um inexpressivo semblante. Em sua mão direita, uma pistola, de um modelo notavelmente diferente das usadas por policiais.
O brilho rosado das lentes vivas da garota não desejava outra coisa senão sua aniquilação.
Mas, não sem antes contar tudo o que sabe.
— Parece que uma das pontes que foram firmadas em você acabou de se quebrar. Agora restam apenas duas, não estou certa?
A pronúncia sem calor das palavras fez os olhos do rapaz saltarem por um segundo, antes de retornarem ao habitual. De fato, ele se sentia mais fraco do que antes, e sabia que isso só tinha como significar uma coisa.
— Lira Suzuki... Não é...? — falou com dificuldade, se contorcendo em dor. — Ao dizer isso... E falar que uma das pontes se quebrou... Eu vou deixar que você saiba...
O sorriso louco em seus lábios trazia de volta a falta de medo que mostrou até esse instante. Com a mão no peito, o criminoso procurado por toda a Elderlog se deixou levantar de novo.
— ... Que você acabou de matar uma pessoa...! — revelou, risonho. — Esse seu tiro... Dessa sua pistola orgulhosa...
Ele sentia, escapando de dentro das profundezas de seu ser. A ponte firmada havia de fato sido desfeita, mas sem antes dar-lhe os bônus que vinham com isso.
— E, além disso... É mesmo muita audácia sua ter tentado acabar comigo usando um tiro, de todas as coisas...!
Seus olhos, antes castanhos, readquiriram o brilho azulado símbolo de tanto poder. Ao olhar em seu peito, Lira notou com preocupação o súbito cessar de seu sangramento.
Para isso, a jovem preparou sua arma — o objeto que tanto teve urgência em pegar antes de sair da sala — e apontou para ele.
— Mesmo depois do que eu disse, ainda vai tentar?!
Dois estampidos cortaram os corredores do andar acima, seguidos de um estratégico salto para trás por parte da elegante estudante de traços orientais. As duas balas fizeram seu caminho, contudo nenhuma acertou o alvo como deveria.
—Inútil! Não pode me matar desse jeito...! Não vai acontecer! — Ele exclamou em raiva, aprontando seu próximo movimento. — Eu vou dar o fora dessa escola e dessa cidade... E NÃO SÃO VOCÊS QUEM VÃO ME IMPEDIR DISSO!
Lira se encontrava indefesa, com uma parede atrás de suas costas e isso abria a oportunidade perfeita: a chance para que o Perfurador de Elderlog pudesse liberar cada fração do seu ódio.
— Não é aqui que vai acabar para mim...!
Ele balançou sua mão em um gesto desesperado, fazendo os três projéteis serem redirecionados ao posicionamento dela.
— Heh. Mas é mesmo um estúpido do pior nível.
Na parede logo atrás, densas marcas de sangue unidas a pequenos pedaços da carne e vários pontos do corpo da menina. Uma bala acertou o olho direito, a segunda a garganta, e a última terminou o serviço no centro do seu coração. Seu corpo caiu sentado sobre o chão de azulejos brancos.
... Então, por que raios ainda falava, como se nada houvesse acontecido?
Uma face de terror o tomou, quando o maldito cadáver começou a rir e zombar.
— Não vai acabar aqui, você diz? Eu não teria tanta certeza disso!
A imagem arruinada de Lira o mandou um sorriso que perfurou o fundo da alma, somado com a encarada larga, vinda de seu único olho restante, congelando seu espírito em uma visão que jamais deixaria seus pesadelos.
— Hahahahahahahahahaha!
Seus dedos se moveram de modo sutil — quase imperceptível — e logo vieram os braços, seguidos por todo o seu tronco. Em menos de dois segundos inteiros, o cadáver de Lira Suzuki deslizava seus braços sangrentos pelo chão.
— Isso... Isso só pode ser mais uma ilusão... MARK...!
— Será que sou mesmo apenas uma ilusão? — perguntou o cadáver, estalando os ossos do pescoço. — Cinco... Quatro...
O único olho morto de Lira Suzuki era algo do que ele não conseguia tirar sua atenção... Ou melhor, preferia não tirar, já que o restante da cena se fazia aterrador demais para qualquer outra coisa.
Não deveria haver modo possível de uma ilusão ser tão realista, mas ali estava ela, deixando caírem gotas gordas e fedidas a ferro velho, cobrindo suas redondezas pelos buracos perfeitos em sua carne.
Pele solta, pulsante e vingativa.
— Três... — Lira sorriu, mostrando-lhe dentes vermelhos com o sangue que escorria de sua órbita ocular.
“Isso... Não passa de uma mentira... Só tem como ser mais uma obra do Mark... Ele... Ele com certeza tá por perto…”
— Dois... — O cadáver estalou sua língua e lambeu os beiços, como alguém faminto diante de um belo prato.
Era disso que tentava se convencer, na expectativa de fazer funcionar, não importando o quanto ele se esforçasse para justificar logicamente...
— Um...! — E em um movimento único, preparou-se para atacá-lo.
Pois, para as emoções, não existia verdade ou mentira.
“É isso...! O poder da Lira... Ela está em algum lugar próximo...! Eu tenho que transferir esses sentimentos...!”
E quando a ilusão já estava a centímetros de pegá-lo, sentiu mobilidade em suas pernas novamente, e não mais sob a influência daqueles sentimentos, a criação falsa se desfez.
A falsa representação do cadáver se desfez no ar em uma nuvem de estática e retornou ao nada de onde veio. O caminho para as escadas era mais uma vez livre.
“Aquilo pode ter sido uma ilusão, mas o tiro... Foi totalmente real...!”
Ele podia sentir com quantas pessoas estava conectado no momento e tinha certeza de que não eram mais do que duas. Isso era algo que o irritava, mas não pela razão que normalmente se esperaria.
“Mark Menotte e Lira Suzuki... Esses dois estão confiantes demais! Nem mesmo estão tentando sério me matar…”
Seus pés tocaram o solo do primeiro andar; apenas mais um pequeno corredor reto adiante e chegaria no térreo e, enfim, à vitória.
“Eu não preciso vencer deles... Eu só preciso sobreviver. Foi mal, cara, mas não importa para mim seguir com esse seu plano... Se quiser cuidar desses dois, que cuide você mesmo!”
Foi quando se deu conta de que nunca aprendeu o nome daquele cara que tinha metade do rosto coberto pelos cabelos.
— O Mark não tem como me alcançar desse jeito... Não nessa velocidade...!
O tempo que perdeu com a ilusão de Lira não foi maior do que meros segundos e com todo o seu espaço de vantagem ganho, não existia a menor chance de que o houvesse seguido.
“... Espera...!”
Era um raciocínio completo e, acima de tudo, seguia uma lógica clara demais para ser ignorada.
“Se o Mark precisa estar vendo a pessoa para conseguir usar a ilusão nela…”
— Exatamente, meu bom garoto! Aprendeu tudo tão direitinho!
Seu espírito se contorceu por inteiro no interior de sua carne e o coração saltou em angústia, vendo a imagem familiar sair das sombras do grande corredor de luzes apagadas.
— Eu te disse que não ia ter outra escapatória, né? Pois é...!
— COMO FOI QUE TU ME SEGUIU ATÉ AQUI?!
Virou a orientação do corpo, correndo na direção oposta. Sabia que isso apenas o distanciaria mais de onde queria chegar, mas não importava. Ele não podia se dar ao luxo de ser impedido.
“Uma janela... Eu tenho que achar uma janela e pular dela...! É a minha única chance de escapar daqui...!”
— Oh, pobre Perfurador de Elderlog...! — ouviu a voz de Mark à distância, a cantar. — Pode tentar correr e escapar...!
“Ah, cala boca, Mark...! Não vai continuar me impedindo! Eu vou dar o fora de qualquer maneira!”
Tocou na primeira maçaneta que achou, sem ler ou olhar que tipo de sala estava reservada para seu futuro.
Não que isso fosse importar.
— Yo! — apareceu, logo na entrada da sala. — Sentiu saudades de mim?
— MAS ISSO NÃO PODE SER SÉRIO...!
Desesperado, bateu a porta, tornando a correr para o corredor que se desmembrava à esquerda.
“Como ele consegue estar em todos os cantos?! E como consegue me seguir por aí, mesmo nessa velocidade?!”
Tentou outra porta, mais uma vez sem dar a mínima atenção ao lugar. Abriu, e ao entrar, viu algo que o assombrou imensamente.
— Como eu disse mais cedo...
“Ghk...!”
Mark surgiu logo atrás, ocupando o espaço da entrada, com palavras cheias de imensa calma.
— Me parece que esse ciclo que estamos vivendo agora nunca vai acabar, não acha?
Os tremores em suas pernas se tornaram incontroláveis, afinal, ali estava ele de novo, na mesma sala de aula arruinada por seus incontáveis ataques.
Vidraças quebradas, cacos e pedaços de materiais escolares espalhados por cada canto do lugar. Até mesmo a mesa dos professores, reduzida a pouco mais que algo do tamanho de uma tábua de passar roupa. Era inconfundível.
— Como...? Como você fez essa ilusão...? — perguntou assombrado, sendo capaz de sentir as lascas de madeira sob suas mãos conforme se debatia sem fim.
Mark sorriu em um gesto atípico, sem zombaria ou qualquer tipo de brincadeira, e sequer aparentava estar disposto a continuar brincando com o psicológico do adolescente assassino.
Era um sorriso de pena.
— Keith Webb... Ver você assim, depois de ter mostrado tanto poder, me faz querer te perguntar... Para onde você acha que tudo aquilo foi?
A menção das duas primeiras palavras o fez contrair simultaneamente cada músculo de seu corpo.
— Como você sabe o meu nome?!
Usou de toda a sua força para levantar. Mark não o tentou impedir. Pegou impulso, deu três passos, saltou pela janela quebrada e...
— Quantas vezes eu vou ter que dizer...? — O pálido levou a mão ao rosto. — Pode correr e se esconder, mas esse ciclo nunca vai ceder… Olha, até rimou!
“O quê...?”
Ele estava de volta na sala, outra vez na mesma posição antes de se levantar e pular pela janela.
Enfim, sentiu em seu coração, e onde antes existiam existiram três presenças, não havia mais nenhuma.
— Samantha... Ela...
Keith Webb havia sido friamente abandonado por quem devia ajudá-lo.
“Isso não pode ser... Ela vai... Me deixar para morrer...?”
E quando o pico de pânico tomou o espaço vazio, Mark se reclinou à frente, pondo sua mão destra sobre seu ombro oposto.
— Shhhh... Tudo bem, Keith.
Calmamente, seu braço envolveu o rosto do assassino, em um abraço tranquilizador.
— Você já dormiu demais, Keith. Hora de acordar desse pesadelo horrível...
Levantou a mão esquerda, dedos em gesto de estalo.
— E isso vai acontecer em três... Dois... Um...
Click, e tudo se escureceu.