Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 24: Ouvindo Sabores, Tocando Cores
“Assim que ele passar por essa porta, vai levar uma boa na cabeça…!”
Do lado de fora, Ryan esperava paciente com o extintor de incêndio que pegou no suporte próximo. Sentia em sua mão o peso de 20 kg, pronto para, com alguma esperança, acabar com esse pesadelo.
“Ainda assim, eu não posso matar esse cara. Ele falou algumas coisas que me chamaram atenção, sem falar no óbvio da história inteira…”
Seu consumo de energia era bem maior com os poderes ativados. Não podia ver por si mesmo, mas seus olhos constantemente brilhavam no tom firme de púrpura.
“Eu não consigo levantar o meu braço além da metade da amplitude agora, mesmo bloqueando a percepção de dor… Droga… Ele deve ter rompido algum trecho muscular com aquela facada…!”
Ainda assim, isso deixava uma pergunta que não queria calar. Seus ataques anteriores foram bem mais lentos e imprecisos, diferentes do efeito visto quando lançou a faca que atravessou o corpo de Ashley.
“Talvez seja uma questão de foco? Será que focar em um único objeto por vez faz o controle ficar mais acurado, ou o ataque ficar mais forte?”
De qualquer forma, não havia tempo para pensar, já que o movimento esperado de batidas já era visível na porta logo à frente.
Se reclinou ao lado da entrada, preparando para o golpe singular que daria assim que ele cruzasse a porta.
“É agora… Ele vai sair…!”
Aprontou o extintor ao mesmo tempo que calculou todas as possíveis maneiras de atingir, e escolheu a melhor delas. Quieto, fazia quase nenhum barulho…
E quando fosse sair…
CRACK!
— Essa escola tem um puta mau-gosto para esses cheiros… Por que todo o lugar tem que escolher a porcaria de um perfume de lavanda?!
Não houve tempo para calcular qualquer movimento no instante de abertura da porta.
— É, mas eu nunca mais vou precisar voltar aqui mesmo.
O conjunto de lápis e canetas sob seu controle atingiram velocidades nunca vistas, cortando o ar com velocidade suficiente para criar uma série de sons de rasgo.
Ryan tentou desviar no ápice de seu desespero, mas não teve resultado melhor do que acabar deixando dois lápis perfurarem sua panturrilha esquerda na região mais externa.
Os projéteis cortaram de raspão, mas ainda se fizeram potentes o suficiente para danificar levemente os jeans pretos do rapaz.
— Ai ai… Mas que saco… E pensar que mesmo com três, você ainda continua desviando… — estalou a língua. — Que é isso? Poder do protagonismo ou alguma coisa assim? Tem alguma entidade te ajudando?!
Lançou na parede a porta que segurava em sua mão esquerda, separada plenamente de onde deveria estar. Para isso, precisou de apenas um puxão.
O impacto reverberou por todo o espaço, rachando ambos madeira e parede em uma demonstração impossível.
Sua súbita e inexplicável mudança se manifestava até no caráter, que se mostrava muito mais sério e compenetrado com a missão, em comparação a antes.
Esse já não era mais o mesmo inimigo com o qual começou o embate.
— Como?! — Ryan acumulou coragem para questionar. — Não me diga que você só tava escondendo poder… E o que quer dizer com “três”?!
Sua audácia de perguntar, mesmo na situação em que estava, parecia ter sido capaz de chamar sua atenção para dar uma resposta válida.
— Hmm.. Olha aqui…
Dessa vez, sua escolha foram fragmentos de madeira da porta arruinada e pequenas frações de gesso branco da parede destroçada.
— Nada que te interesse, cara! Sinto muito, mas é isso — levou sua destra para a frente. — E por que eu eu deveria te contar alguma coisa quando nem os seus poderes você me mostrou ainda?!
Ele não conseguiria nenhuma resposta desse louco, e logo se deu conta de que não deveria esperar por isso, ao menos não com o perigo que corria em suas mãos.
Algo havia feito seus disparos se tornarem mais eficientes, e suspeitava de que esse fator fosse mais do que apenas pessoal do assassino.
O único problema com essa teoria jazia em ter de sobreviver para descobrir a respeito.
“Por que as coisas tinham que ficar tão difíceis?!”
Não sentia dor alguma em sua panturrilha, contudo sabia que isso teria repercussões claras no combate.
— Hora de ir para a vala de vez, cara que eu nem sei o nome!
“Nem começou a ficar ruim de verdade…”
Os pequenos pedaços esvoaçaram como balas de rifle, mirando nos vários pontos de seu único alvo. Sob esse alvejamento, não prometia existir escapatória.
— … E EU JÁ NÃO AGUENTO MAIS ISSO…!
Dor.
Um por um, os projéteis perderam velocidade, ainda colidindo com o corpo de Ryan, embora de forma inócua, por não estarem mais sobre o controle de seu poder.
O Perfurador de Elderlog tentou erguer-se, ao passo que se apoiava na parede do corredor.
Um único pulso doloroso irrompeu através de cada nervo simultaneamente e sentia como se cada pedaço de seu cérebro houvesse sido dividido, batido no liquidificador, separado e remontado ao estado original.
Suas pernas demoravam para responder, trêmulas, agindo como se não pertencessem mais em seu corpo. Ele via sons e ouvia sabores, afetado pela sensação das ondas de choque que iam de cima a baixo.
“O que foi… Aquilo…?”
Aos poucos, sua visão ajustou-se, deixando-o ver a figura de seu inimigo mais uma vez. Demorou graças à confusão de seu estado mental, todavia processou com sucesso o que seus olhos podiam ver.
Ele também havia cedido tão significativamente quanto.
— Merda… Ele… Eu não consegui… Fazer ele… Cair…
Dos olhos roxos e do nariz de Ryan escorriam dois pares de espessas linhas de sangue. Sua respiração era repleta de pânico, incapaz de citar mais de três palavras de uma única vez.
Não tinha como saber e pouco importava, mas seu oponente se contorcia na mais infernal dor de cabeça por dentro.
Logo, ficou claro que seu poder era uma faca de dois gumes.
— Heh.
Um pequeno riso sem sabor escapou entre os lábios do mais novo assassino em série dos Estados Unidos; a secura do gesto mostrava ao rapaz caído a ineficácia do que tentou.
— Então… Esse é o seu poder…? Heh…! Vai precisar de… Um pouquinho mais… Para me derrubar…!
“Merda”, pensou Ryan, enquanto calculava se o melhor jeito de lidar com as marteladas em sua cabeça seria morder a língua ou parar de respirar temporariamente.
Foi sua última opção. Não era algo que normalmente faria, graças aos terríveis resultados que normalmente acompanhavam, porém foi seu último pedaço de fé.
“Mesmo puxando os meus poderes ao limite… Eu não consegui lançar uma memória dolorosa intensa o suficiente para fazer ele desmaiar…”
Dizer que seu poder só era aplicável ao toque seria, ao pé de definição, um erro.
“Dor gera memórias de si mesma… E se for memória… Eu consigo manipular…”
Contudo, o mesmo não podia ser dito do ponto de vista prático.
— Então você consegue mexer em algum aspecto psíquico…? Ah, mas que pena… Teria funcionado se não fosse pelas minhas circunstâncias atuais!
O toque era apenas a sua zona de conforto — ou melhor, a zona sem dor —, dado que a partir do momento em que uma distância fosse necessária, acessar memórias dos demais se tornava mais difícil.
Foi o mesmo que fez com Vincent, embora no caso dele tenha funcionado como esperado.
“Ele deveria ter desmaiado… Eu tava contando… Com isso…”
Nunca tentou se acostumar com isso, justo por acreditar que nunca precisaria... Um grande engano.
— Pela sua cara, dá para ver que não vai dar para fazer isso de novo, né?
O assassino adolescente demorou bem menos do que o esperado para recuperar seus sentidos. No fim, o único ataque direto que Ryan conseguiu lançar se provou tão bom quanto nada.
E isso se provou pior ainda, quando mais lascas de madeira se uniram em torno de si, seu olhar indicando estar prestes a atirar com a mesma vivacidade de antes.
— Poderia até ter funcionado… Se eu não estivesse conectado fisicamente a mais três pessoas que estão bem longe daqui…!
“O que ele quer dizer com isso?!”
As lascas não eram numerosas ou grandes, mas com a força adquirida de um modo aparentemente tão milagroso, não restava dúvidas de que causariam danos letais.
E ele estava preparado para atirar, senão por um pequeno par de probleminhas que surgiram no exato momento de sua ação.
— Oficial Briggs…!
O chamado de um homem armado o trouxe a noção de que não eram apenas mais eles ali. Desinteressado, o assassino voltou seu olhar, ao passo que erguia a sobrancelha esquerda.
— Hmm..? Então finalmente vocês chegaram?
Os dois homens tremiam, apontando suas pistolas para ele como se houvessem visto o próprio diabo. As expressões em seus cenhos eram atônitas e distantes de qualquer profissionalismo.
“Não… Eles não podem fazer isso…! Esses caras vão só morrer aqui…!”
Ryan sabia como a história prometia terminar, então mesmo caído e sob os efeitos de seu próprio ataque, tentou erguer sua mão em um chamado desesperado, mas era já era tarde demais.
— MEU DEUS…! MORRA!
O segundo homem fardado deixou-se impulsivamente fazer a primeira coisa que sua mente de policial demandou.
Dois estampidos escaparam do cano… Que logo se revelaram fúteis.
— Duas balas, hein? Perfeito para cada um dos dois…!
O adolescente de cabelos castanhos e que parecia estar em melhor condição mudou a orientação de seu corpo para encarar diretamente os policiais, mostrando-os a realidade por trás de sua tentativa tão falha de salvar o dia.
Suas almas quase saíam pelas bocas diante da visão das balas paradas no ar, alojadas em algum tipo de parede invisível localizada a meros centímetros dele.
O terror se fazia tão imenso que não restava a opção de continuar atirando. Ambos sabiam que não faria nada de bom.
— Eu aposto que vocês devem querer isso aqui de volta…!
As balas mudaram de orientação, de modo que apontavam diretamente para seus rostos. Paralisados diante da cena vinda de um filme de terror, eram incapazes de qualquer reação.
— … CORRAM…! — Ryan tentou alertar.
— Hoje não…!
Os dois projéteis foram lançados tão depressa quanto saíram da arma.
Instintivamente, Ryan fechou seus olhos, em simultâneo amargurado diante das duas novas perdas tão desnecessárias. Travou com força sua mandíbula, recusando-se a assistir.
— Não se preocupem, senhoras e senhores… Porque o herói acabou de chegar…!
Aquela voz lhe era conhecida… Talvez um pouco familiar demais.
As balas cruzaram os corpos dos dois policiais, mas o que deveria ser o sinônimo de morte certa trouxe novas surpresas.
Suas figuras se desfizeram em estática no exato instante em que foram atingidas, sumindo no ar, tais quais os fantasmas de uma televisão antiga.
— Yo! Parece que a situação tá precisando de uma mãozinha minha!
Surgiu de trás da estrutura metálica do bebedouro e ergueu sua forma aos poucos, revelando todos os trejeitos da sua pessoa.
Seus toques alternados em uma bola de basquete brilhavam tanto quanto seu sorriso perolado e os dedos finos e pálidos guiavam o princípio de uma nova melodia para o ritmo frenético da luta.
Ele sabia quem esse era.
— Mark… Mark Menotte…! Era por você quem eu estava procurando…!
O Perfurador de Elderlog abriu um sorriso largo, plenamente confiante em suas capacidades de lidar com os dois ao mesmo tempo.
— Huh… — Mark respondeu com desdém. — Incrível você dizer isso, sendo que protelou tanto para matar o fracote do Ryan. Eu já teria feito umas vinte vezes o seu estrago… Mas bem… Não faz mal! Eu te estouro aqui mesmo!
Os dois se entreolharam, ambos ignorando a presença do Savoia…
… Porque a luta de verdade começaria agora.