Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade

Capítulo 38: Felicidade

— Oh, céus...! Eu não sei se tenho o direito de pedir alguma coisa nessa idade, mas... Oh meu Deus, como eu adoraria que minha netinha fosse alguém de um coração tão bom quanto o seu, minha querida...!

Passo por passo, a pequena senhora em seus setenta e seis anos subia as escadas da Biblioteca do Condado de Flathead com uma sólida porção de dificuldade. Felizmente, ao seu lado direito, a guiava uma mão ajudante muito bem-vinda.

— Por favor, não diga isso, senhora Mason! Isso não é nada de mais…

Com cuidado, a adolescente de cabelos tingidos em roxo e olhos azuis como o céu mais limpo caminhava com cuidado ao lado da velha senhora, em auxílio para que chegasse ao seu destino. 

As duas vinham dessa mesma maneira desde o começo da rua, quando se encontraram.

— Oh, minha querida... Você é mesmo bondosa demais... — disse a velha, ao dar seu último passo. — Tirando do seu tempo precioso para dar atenção a uma idosa como eu... Como isso me faz ter esperança na geração futura...

Um breve sorriso foi a resposta da jovem. Foi um sorriso sem dentes, quem sabe até mesmo um pouco desconcertado, já que, por mais acostumada que estivesse a escutar tais coisas, algo em si não aceitava essas características como suas.

— Nunca conheci alguém tão gentil na minha vida inteira... E olhe que vivi bastante — continuou. — Ninguém mais hoje em dia daria do seu tempo precioso para ajudar um necessitado...

Os frágeis músculos se somavam à voz cansada, pintando a imagem da veterana da sociedade que, ao olhar para frente, tinha certeza de que isso que via era algo bom.

— Mas bem, deixando de falar um pouco sobre mim... Como tem estado ultimamente, Abigail, minha querida? Esteve se alimentando bem? Como estão os seus pais? Tem estado tudo bem na residência de vocês...?

Abigail não pôde evitar senão deixar o foco de sua visão escapar por um breve momento. Involuntariamente, tocou com sua destra acima do peito e agarrou com ainda mais força o saco de compras com poucas coisas, em sua canhota.

Pela primeira vez em algum tempo, porém, podia com certeza dizer que as coisas estavam um pouco melhores.

— Está tudo bem com eles, senhora Mason. Eles estão em Washington, a mando do trabalho, mas sempre me ligam para conversar! E não precisa se preocupar comigo! Eu tenho comido direito, sim.

Não era a melhor parte sobre a semana que acabara de se passar, no entanto. Seu coração se encontrava em conflito, afinal, será que deveria mesmo se sentir tão feliz, mesmo com o conhecimento de que tantas outras pessoas morreram na cidade?

— Oh, criança... — A voz cansada da idosa a tirou de seus pensamentos conflitantes. — Posso ver que se sente sozinha... Eu já vivi muito, sei como é. Você sabe onde eu moro, então pode passar lá um dia desses para tomar um café... Eu adoraria te receber. Você merece ser feliz na vida, menina...

O toque de suas mãos flácidas foi surpreendentemente caloroso, para um dia tão frio. Sutilmente, os tremores de seus dedos se transmitiam para a pele mais sedosa e jovem, na intenção de assegurá-la.

— Eu sei o quanto ainda deve ser tão difícil para vocês... Digo, mesmo depois de todo o tempo desde que aquilo aconteceu... As coisas deixam suas marcas, certo? Eu entendo... É a mesma coisa de quando eu perdi o Bartley há dois anos... Ah, como eu amava aquele homem...

Logo, não apenas uma, mas suas duas mãos cobriam a palma direita da jovem adulta de 19 anos.

— Então, não tenha medo de falar com essa velha, tudo bem? Eu realmente me preocupo com você às vezes... Morando sozinha naquela casa que deve ficar grande demais quando não tem mais ninguém nela... Naquela rua tão sem cuidado...

Bastava sorrir. Deveria ser o suficiente.

— Obrigada pela sua preocupação, senhora Mason — devolveu-lhe um sorriso um pouco mais esforçado. — Eu vou me lembrar disso.

— Eu imagino que sim, minha criança... Agora, tenho que ir para o trabalho... Continuo me ocupando apenas para não deixar as coisas ruins subirem na minha cabeça... Essas ideias podem acabar chegando a qualquer um, sabia?

Passo a passo, a senhora se enchia de determinação, em sua luta contra as duras dores nos joelhos, para o seu trabalho enquanto recepcionista na biblioteca. 

Fazia o caminho de sempre, o mesmo que a cada vez fez por mais de vinte anos, de segunda a sábado.

A existência dessa mulher servia de exemplo do quão forte um ser humano poderia ser diante das adversidades da vida.

— Abigail, minha querida...

A idosa já tinha a mão na grande porta de entrada do lugar, mas, mesmo assim, voltou-se para dizer uma última coisa bastante importante.

— Meus dedos me dizem que vai chover logo... Eles começam a doer bem mais algum tempo antes de acontecer. Se não quiser se molhar, pode esperar um pouco aqui dentro se quiser... Ou deveria se apressar se tiver algum outro lugar para ir...

— Oh...! — tomou a informação em um sobressalto. — É verdade...! Eu... Eu preciso me apressar! Até outro momento, senhora Mason...!

A escuridão gris dos céus a despertou para a realidade bem acima de sua cabeça, diante da grande nuvem de chuva que escalava, vinda das montanhas à distância, pouco visíveis graças à névoa.

— Agradeço o aviso...! — disse a garota, pronta para partir.

— Apenas mais uma coisa e eu te deixo ir... Você provavelmente já deve saber, mas... A verdadeira cor do seu cabelo está começando a aparecer, minha querida... Era só isso.

— Oh... Obrigada por me dizer, senhora Mason. Não tive tempo de me olhar no espelho hoje...

— Olhe só para você... Tão ocupada e responsável... Vá. Vá, minha menina. Vá e viva o melhor da sua vida.

Outro fraco sorriso coloriu suas belas feições ao escutar tal mensagem.

— Pode se certificar de que eu irei, senhora Mason.

E tal foi a despedida das duas, cada uma a rumo de seguir seu próprio caminho.

Em passos rápidos, a jovem Abigail focava em traçar o seu caminho de volta para casa, enquanto inúmeros pensamentos cobriam sua mente, tal como as nuvens prometiam fazer com o céu de Elderlog.

Era bom demais para ser verdade, certo?

“Já faz uma semana que o Jacob não me incomoda... Eu me pergunto o que aconteceu…”

Essa semana foi tudo o de mais maravilhoso em sua vida em um longo tempo. Desde que se envolveu com Jacob Egan pela primeira vez, não tinha como dizer que teve um mero dia de paz.

E se não teve um dia, quem dirá uma semana inteira?

Nenhuma ligação, nenhuma mensagem, nenhum pedido idiota para reatarem o relacionamento... Simplesmente nada. Era como se, enfim, ele a houvesse deixado em paz.

Pela primeira vez em vários meses, pôde sentir o quão agradável era caminhar pela rua sem o medo a lhe lamber a nuca e os instintos o tempo inteiro afirmarem que haveria de estar sendo observada.

“... Então por que eu não consigo me sentir confortável?”

Dobrou para a esquerda. Ainda teria um longo caminho para que chegasse àquela péssima desculpa para uma rua, chamada Rowan Street

Se tivesse que falar a verdade em voz alta, diria não estar nem um pouco ansiosa para pisar naquele lugar tão feio e mal cuidado.

“Talvez é porque eu saiba, por dentro, que isso não vai durar para sempre.”

Seja lá o que tenha acontecido, não era bom — não podia ser —, era o que sua intuição lhe contava.

As vozes em sua cabeça repetiam várias e várias vezes sobre o quanto isso era nada mais que uma terrível armadilha. 

Diziam que ela não tinha o direito de sentir essa felicidade, que se sentir assim apenas a colocaria em um lugar pior no futuro, enquanto outras a condenavam por agir como alguém tão ruim.

“Como eu posso me permitir ser feliz com isso se tem tantas famílias chorando agora?”

Essa semana sem as perturbações de Jacob também foi a semana de pais sem o orgulho que eram seus filhos. 

A primeira de muitas semanas de casas e corações um pouco mais vazios, de um céu tão choroso quanto a população do lugar todo.

“Abigail, como você é egoísta…”

Não. Ela não tinha o direito de se sentir feliz com isso. Não tinha o direito de se sentir bem quando tantos perderam tanta coisa.

— ... Eh?

Chuva. Uma única gota fria atingiu o seu braço.

Logo eram duas, cinco, oito, vinte... Melhor esperar embaixo da varanda de uma casa próxima. 

Internamente resmungou, ciente de que deveria ter aceitado o convite de ficar na biblioteca por um tempo. Não era como se houvesse mais alguém em casa, afinal de contas.

[...]

— Cheguei em casa.

Sua voz falou para ninguém. Dentro do imóvel, a única coisa além dela mesma era a luminosidade que vinha da porta que acabou de abrir.

Tirou seus sapatos, pondo-os com todo o cuidado para secar com a ponta para baixo, e foi nesse instante, ao desistir por um momento da sacola de compras, que notou o quão desnecessário aquilo tudo era, quando não se tinha mais ninguém.

— ... Bem, eu tenho que comer direito... É o que eles sempre dizem.

Uma efetiva desculpa que ela usava diariamente para se convencer a comprar comida de verdade, legumes e verduras, no lugar de encher uma sacola de macarrão instantâneo para duas semanas inteiras e se entupir de fast-food.

Acima de tudo, o ato de preparar a comida existia como uma das poucas coisas que a afastava de pensar demais nas coisas em que não devia.

Cortar cenouras talvez não fosse a coisa mais terapêutica do mundo, mas ao menos para ela parecia funcionar o suficiente.

“Melhor por essas coisas na cozinha, mas antes disso…”

Logo na sala de estar, cruzou os dois largos sofás e a poltrona para alcançar o armário de vinhos e whiskies da família. Seus dedos deslizaram pela madeira escura da velha e refinada mobília rústica, em busca da maçaneta da pequena porta de vidro.

Não foi ali atrás do conforto para suas dores, por mais que quisesse. Beber era uma coisa ruim independentemente da idade e, enquanto pudesse, não se submeteria a isso.

Sua mão destra de unhas bem-feitas e polidas alcançou o pequeno espelho de bolso que, por algum motivo, ali foi posto.

— Parece que vou ter que pintar de novo... E depressa.

Não precisou procurar muito para ver o princípio das mechas pretas como o carvão a saltarem entre o arroxeado. Ao pensar bem, notou ser quase como se seus cabelos crescessem mais rápido ultimamente.

“Talvez seja só o período do ano...?”

De todo modo, aquilo não importava tanto — ao menos não quando não havia quem a visse desse jeito — e além do mais, era sábado. O cabelo poderia esperar até amanhã.

Decidiu ser hora de parar de enrolar com bobagens e ir direto para cozinha, guardar esse monte de coisas. Puxou a maçaneta e ao abrir...

O som do saco de papel a colidir com o chão viajou pela construção inteira.

... ... ...

“Eu… Eu sabia…”

Seus joelhos cederam e quase conduziram à sua queda. Por sorte, se segurou à maçaneta.

A janela da cozinha não tinha vidraça… Não mais. O vidro repousava ao chão, feito em milhares de pedaços.

No final, ela sempre esteve certa sobre a felicidade dos últimos dias.

Bluuurgh! 

O gosto amargo de seu próprio vômito encheu-lhe a boca, para relembrá-la de sua sina.

Mas a cada vez que acontecia, ela se perguntava:

Até quando sua punição iria durar?



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