Cavaleiros do Fim Brasileira

Autor(a): zXAtreusXz


Volume 1

Capítulo 14: As Cinzas da Morte

— Pai! Por favor!

O grito atravessava as paredes como uma faca. Choroso. Desesperado.

Kant arrombou a porta. Um bafo podre escapou em sua direção, infestado de moscas, como se a casa tivesse morrido por dentro.

— Lizie!? — gritou. — Onde você está?!

A resposta veio entre soluços sufocados:

— Pai, ele… a mamãe…

— Greta! Lizie! — a voz dele falhava entre os gritos. Corria de cômodo em cômodo, abrindo portas, chutando móveis, farejando o desespero no ar. O fedor era insuportável. E ele sabia o que vinha a seguir. No fundo, já sabia.

— Por favor, eu quero meu pai! — o grito. Alto. Dolorido.

— Lizie! — berrou, até a garganta queimar.

— Pai… — o tom havia diminuido. Quase um sussurro perdido no eco da casa.

Silêncio. Um silêncio gritante.

Kant parou. Farejou o ar. Algo além da podridão — algo familiar. Um cheiro metálico, seco, quente. O mesmo que ele carregava nas mãos tantas vezes.

Olhou para cima em direção ao sótão.

Se lançou escada acima sem pensar duas vezes.

Ao subir olhou para todos os lados desesperado, e ali estavam, no canto.

Greta e Lizie. Abraçadas. Encolhidas sob um lençol branco agora amarelo, encharcado, engolido por moscas. As pernas finas da menina escapavam pela lateral, imóveis.

Correu em direção a elas.

— Lizie… Greta… — a voz sumia. — Ei, eu tô aqui…

Tombou de joelhos. A madeira rangeu sob seu peso.

— Tô aqui, minhas meninas. Por favor… por favor, respondam… — as palavras saíam aos soluços, rasgando por dentro.

Segurou os corpos frios. Enterrou o rosto no ombro da filha. Beijou sua testa pálida. As lágrimas caíam, uma a uma, pesadas como chumbo.

— Minha pequena Lizie… — sua voz quase não saía. — Minha linda Lizie…

Depois virou-se para Greta.

— Meu amor… me responde. É mentira, só pode ser mentira… — apertava-a contra o peito. O lençol escorregou, revelando o rosto imóvel, manchado. Ele fechou os olhos e encostou a testa na dela.

Lá fora, a tempestade de neve engolia o mundo.

Kant olhou pela janela do sótão. A luz era cinza, afogada.

— O que você quer de mim…? — murmurou. — Hein? Quais são seus planos?

— Eu já não paguei o suficiente!? — o tom subia, como se falasse com alguém acima da nevasca. — Por que tá fazendo isso comigo?! Elas não… não tinham nada a ver com isso!

O peito dele arfava, mas o grito travava, preso, como um nó sufocando tudo.

Olhou Lizie uma última vez.

A garganta queria gritar.

Mas só saía choro. Sufocado. Partido. Cru.

— …Kant? — A voz veio fraca, quebrada, como um último sopro.

— Greta!? — suas mãos trêmulas tocaram o rosto dela, suado, febril. — Meu amor, vai ficar tudo bem. Eu… eu vou te tirar daqui, tá?

Ela sorriu. Um sorriso pequeno e trêmulo, como se quisesse aliviar a dor dele — não a dela.

— Meu querido Kant…

Ele segurou a mão dela com força, apertando como se aquilo fosse impedi-la de partir. Beijou seus dedos sujos e gelados.

— Me perdoa, Greta… — soluços cortavam a voz. — Eu devia ter estado aqui antes… com você, com a Lizie…

— Você sempre esteve… — ela disse baixo, olhos semiabertos. — Sempre esteve com a gente. Agora, nós vamos descansar, e esperar por você.

— Não… não, por favor, Greta… — ele puxou a mão dela para mais perto do peito, como se quisesse fundi-la ao próprio coração. — Não faz isso comigo.

Ela ergueu o olhar, com os últimos fiapos de vida, e sussurrou como uma brisa morrendo:

— Shhh… não chora. Me ama só mais uma vez… e depois, é só me deixar ir.

A mão de Greta deslizou devagar, caindo do peito dele, pesada e vazia.

Kant não conseguiu gritar. A voz falhou.

Só o baque seco ecoou, quando seu rosto atingiu o assoalho encharcado — de sangue, de podridão, de silêncio.

Ele envolveu os corpos frios da mulher e da filha.

A tempestade quietou.

Somente o vento sibilava pelas frestas do sótão, como se evitasse perturbar os mortos.

Então, uma voz cortou a neve lá fora. Aguda. Cruel.

Parecia uma multidão em agonia, falando com uma só boca:

— Kant! — uma risada seca escapou. — Kant! Para com esse drama... O que esperava? Você só traz morte a quem te cerca. E isso nunca vai mudar. Não importa o quanto lute. Agora, faça um favor a todos, não desperdice mais o dom que lhe foi dado… caso contrário… bom, já viu o que acontece.

Kant permaneceu imóvel. Olhos fixos no nada. Depois, ergueu-se devagar, passos pesados, e se aproximou da pequena janela.

Lá fora, uma criatura pálida passava a mão pela capa azul, manchada de sangue.

Não disse uma única palavra. Só baixou a cabeça, como se aceitasse a maldição que carregava.

Lágrimas começaram a escorrer de seu rosto.

Quando o grito escapou de sua garganta, foi mais animal que humano — um misto de luto e fúria, rasgando o silêncio do sótão.

A realidade ao redor estremeceu.

As paredes tremulavam. As sombras se distorceram.

Por um instante, o mundo pareceu perder forma — como se o próprio espaço se curvasse ao peso da dor daquela entidade.

 

 

(PRESENTE)

 

 

O silêncio permaneceu no campo de batalha.

Ambos os lados se estudavam, imóveis diante da presença recém-chegada. 

Kant permanecia com os olhos cravados na figura à frente.

Ao redor, a feira estava longe de tranquila.

Barracas viradas. Caixotes espalhados. Civis observavam a cena de longe, em choque — alguns corriam, outros congelavam diante do que viam. Crianças choravam, puxadas às pressas pelos braços.

O cheiro era insuportável.

Fogo. Enxofre. O ar vibrava com o calor que ainda escapava do portal demoníaco.

Chamas escorriam pelas bordas da estrutura arcana, enquanto algumas das criaturas gotejavam algo espesso e escuro que queimava o chão.

No solo, buracos fundos e rachaduras abertas marcavam o campo. Vestígios da luta entre Kant e Tyler. Cinzas, cascalho e o som de brasas estalando sob os pés completavam o cenário.

— Ei... é Kant, né? — Zane o cutucou de leve. — Tá tudo certo contigo?

Draevoth avançou um passo.

— Ouvi dizer que me procurava, Cavaleiro... Fiquei em êxtase quando soube. — lançou um olhar breve às aberrações ao redor. — Imaginem, senhores... a própria Morte vindo atrás de você.

Zane desviou a atenção para as criaturas. Mesmo assim, sua pergunta não era para elas:

— Do que ele tá falando? Quem é esse cara?

Kant não respondeu.

Mais atrás, Bella fixou-se em Draevoth. Seu peito arfava enquanto apertava a mão de Trudy com força.

A menina notou. Passou a encarar o demônio, inquieta.

— Não pode ser… — Draevoth estreitou os olhos, cobrindo-os com a mão. — Aquela ali… é você, Bella?

Kant então virou em direção a demônia encarando-a, pouco antes de retornar fixo ao seu oponente.

— Trudy. — Bella manteve a postura firme. — Atrás de mim. Agora.

— O quê!? Nem pensar! — deu um passo à frente, Grimmuff ao lado.

Mas Bella a segurou pelo braço, firme.

— Eu não estou pedindo.

A garotinha encarou a mão da companheira. Tremia. A expressão no rosto de Bella só aumentou sua preocupação.

— Ah... — a voz do demônio se ergueu com escárnio — quem é essa coisinha? Espera... estou reconhecendo. Essa tatuagem… É a jovenzinha do Gume, não é?

Ele se afastou, abrindo espaço atrás de si.

— Trouxe alguém que talvez vocês duas conheçam.

Da sombra do portal, emergiu uma figura alta.

O corpo curvado, pendendo como se os ossos estivessem prestes a ceder.

Mas não caía — quatro braços demoníacos, moldados em pura energia negra, se estendiam das costas, sustentando seu corpo no ar, como se a própria escuridão o mantivesse erguido.

Quanto aos seus braços humanos, terminavam no cotovelo.

Dali em diante, se estendiam em lâminas. Longas. Irregulares.

O ser ergueu o rosto. Revelou-se um humano. Abriu um sorriso cínico ao encarar as jovens.

— Vocês duas... — uma risada estridente escapou de sua garganta.

Trudy agarrou o braço de Bella com força.

— Não...

A criatura avançou um passo.

Kant, mesmo sem reação, posicionou-se mais para o lado, colocando-se entre o inimigo e elas.

O ser gargalhou, preparando o avanço. Mas Draevoth interrompeu.

— O alvo não é mais o Gume, Severin. Você falhou em tentar obter o artefato. Sabe bem do que estamos atrás agora.

Ainda sim, ele semicerrou os olhos e apontou a lâmina direita para Bella.

— Arrancou meu braço naquele dia... eu não esqueci.

— Arranquei. Mas, se não me engano, foi só o direito.

— Sim... só o direito. Quanto ao esquerdo… — olhou para seu braço. — esse foi o preço pela minha falha.

— Se aliar a demônios tem seu preço. — ele o encarava passando a mão pelos cabelos de Trudy.

Severin riu, os braços tremendo em raiva contida.

— Bella... — A voz de Trudy falhou, recuando para se proteger.

— Jovenzinha. Esse artefato que carrega… deveria ser meu. Não bastou o que fiz com sua vila? — caçou Severin.

— Você é um monstro... — a garota sussurrou em lágrimas.

— Isso mesmo. Pode continuar. Me deleito com seus elogios, assim como me deleitei com a morte daquela gente. Agora, por sua causa, penso em fazer o mesmo com esta vila. — Abriu os braços laminados.

De repente, Severin foi lançado ao chão por uma das mãos que saíam das costas de Draevoth, esmagando-o lentamente contra o solo.

O demônio interrogado por Zane engoliu em seco, reconhecendo aquela dor familiar.

— Já falei: o alvo não é mais o Gume. — Draevoth caminhou até Kant, apertando o crânio do aliado. 

O rosto de Severin avermelhava-se cada vez mais enquanto era consumido por uma podridão crescente, como se sua carne se dissolvesse. Os braços negros em suas costas se contorciam, tentando arrancar a mão que o prendia contra o chão, debatendo-se como um animal prestes a ser finalizado.

Draevoth então o soltou.

O rapaz arfava, como se pudesse finalmente respirar enquanto a podridão desaparecia de seu rosto.

— Me desculpem... — começou Draevoth. — é que… eu simplesmente não suporto quem desrespeita a hierarquia. Traidores, então... — voltou-se ao demônio deformado sob o olhar de Zane. — destes eu gosto menos ainda.

Antes que pudesse contestar, um braço perfurou o ser no coração.

— Mas senhor... eles... — arfava, tentando justificar-se.

Outro braço avançou e quebrou seu pescoço.

— Shh... não precisa explicar nada, aproveite o tempo que ficara trancafeado no inferno, sob o maior nível de tortura, e repense sobre sua lealdade. — sussurrou Draevoth.

Zane e Tyler se entreolharam por um instante e tornaram a encarar o demônio.

A cena horrorizou todos. Mais pessoas fugiam apressadas, gritos desesperados ecoando.

— Isso... que maravilha, música para meus ouvidos. — Começou a cantarolar, como uma sinfonia macabra, virando-se para Kant. — Vamos, Cavaleiro. Você conhece essa melodia: gritos, súplicas, ranger de dentes. Não é incrível? Existe uma sensação melhor?

O rapaz ainda sim, não reagia.

— Diga o que quer de uma vez! — interrompeu Bella, firme.

O demônio parou.

— Fique tranquila... não vim por você. Por enquanto... — virou a cabeça, apontando com um gesto lento em direção a Marie. — Vim por ela. E de brinde... — indicou para Kant — por ele.

Louis se colocou à frente da garota, erguendo a cruz como um escudo.

— Eu lhe repreendo, criatura das trevas.

A criatura soltou uma risada seca, como se aquilo fosse a coisa mais divertida que ouvira o dia todo. Olhou em volta, teatral, antes de voltar ao padre.

— Me repreende, é? Padre... — balançou a cabeça, como quem lamenta. — Ontem mesmo esteve conosco, não se lembra? Que poder acha que tem sobre mim, "filho de Deus"? — completou sarcasticamente, o sorriso desdenhoso nunca abandonando os lábios.

O silêncio caiu como uma pedra.

Todos os olhares recaíram sobre o padre que lentamente abaixava a cruz, exceto o de Kant que apenas mantinha a cabeça baixa, imóvel.

Draevoth abriu os braços, teatral, como quem revela um presente.

— Ora, padre… não fique assim! — exclamou com falsa empatia. — Você permitiu que um demônio cumprisse a missão para qual foi designado. Em outras palavras… evitou que ele falhasse e fosse torturado por seus superiores no Inferno. — sorriu como se aquilo fosse um feito admirável. — Que bela caridade, reverendo. Um verdadeiro servo.

Louis caiu de joelhos. Os olhos úmidos. A cruz escapou de seus dedos e bateu no chão com um som seco.

Marie o encarava, incrédula, assustada. O rosto dela travado entre decepção e confusão.

Mais atrás, Severin — ainda se recompondo da surra de Draevoth — lançou um olhar torto para Trudy. Um olhar que fedia a ameaça.

A menina recuou um passo, depois outro. Soltou a mão de Bella.

— Trudy, o que foi? — perguntou a companheira, virando-se.

Nenhuma resposta. Ela se afastou devagar, como quem ainda hesitava… mas, num instante, virou-se e correu. As marcas das lágrimas no chão contavam o que ela não conseguia dizer.

Grimmuff se sobressaltou e, no mesmo instante, disparou atrás dela, movido por um impulso protetor.

— Trudy! — Bella se virou de súbito. O coração apertou. E, sem pensar, correu atrás da garota.

O caos já havia tomado conta.

Gritos atravessavam o ar. Barracas tombadas, lonas rasgadas, madeira estilhaçada. Pessoas se atropelavam, empurrando umas às outras na tentativa desesperada de escapar.

Era um pandemônio.

Parecia o fim do mundo — e talvez fosse, pelo menos para aquela vila.

No centro de tudo, Draevoth gargalhava como se estivesse no meio de uma festa.

— É realmente uma pena, Kant… parece que todos ao seu redor acabam te abandonando.

O rapaz ergueu o rosto. O olhar agora firme, direto.

— Não se preocupe com isso.

Zane e Tyler surgiram ao seu lado, com a postura decidida.

— Eu mesmo resolvo isso. — concluiu, sem desviar os olhos.

O demônio o observou em silêncio.

Depois, um sorriso começou a cresc

er em seus lábios, aos poucos, até se abrir por completo — olhos semicerrados, expressão faminta.

Como quem saboreia o instante antes da matança.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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