Livro 1
Prólogo: Descendo A Montanha
O mundo é relativo.
O Continente Central e o Continente do Grande Oeste enfrentam um ao outro à distância pelo vasto oceano. As terras do leste são relativamente maiores e o céu também parece ser maior. Subindo pelas terras e os mares, as nuvens e a névoa se dirigem para aquele lugar sem cessar. Finalmente, todas se convergem e não dispersam por todo o ano.
Este lugar é a Tumba das Nuvens, o túmulo de todas as nuvens do mundo.
No profundo abismo da Tumba das Nuvens fica uma montanha solitária, seu pico penetra o vazio, e o lugar onde ela leva, é um mistério.
Nas lendas, o mundo consistia-se em cinco continentes. Todo continente possuía visões e cenários diferentes, mas somente as poderosas existências que entraram no Reino do Domínio Divino poderiam vê-las. Para as pessoas comuns, as lendas eram apenas lendas. Eles não sabiam onde estavam os outros continentes, não sabiam como chegar lá e não sabiam que a montanha solitária dentro da Tumba das Nuvens era o caminho para os outros continentes.
Naturalmente, também não havia ninguém que conseguisse ver a paisagem acima das nuvens. Aqui, a camada de nuvens era parecida como uma queda d'água que se espalhava em todas as direções, aparentemente sem um fim. Acima disso, atrás desse espelho vazio, havia um abismo preto sem fim. Dentro deste abismo havia inúmeras estrelas.
De repente, duas estrelas começaram a brilhar, ficando cada vez mais e mais brilhantes. Quando se viu, elas estavam se aproximando do espelho em alta velocidade. Somente quando essas duas estrelas chegaram à frente do espelho, se tornou evidente que elas eram, na verdade, duas bolas de uma chama pura e sagrada.
Rachaduras em formas de “teias de aranha" apareceram sobre este espelho que separava o mundo real da escuridão, e então, ele foi reparado instantaneamente.
Essas duas bolas de chamas puras e sagradas, através de algum método místico, apareceram ao lado do espelho que mostrava o mundo real. O ar fino foi inflamado e ele começou a ondular e se contorcer sem parar. Aquelas não eram chamas sagradas, mas sim, os olhos de alguma coisa.
O mundo inteiro foi mexido pela sua queda colossal. Raios de luz dispararam sem fim quando uma sombra montanhosa apareceu sobre a superfície das nuvens. O espaço começou a se torcer, como se estivesse prestes a quebrar-se.
Um grande Dragão Dourado apareceu entre o vazio e as nuvens.
O sol vermelho à distância estava completamente obscurecido pelo seu corpo maciço. O mundo acima das nuvens era de incontáveis Li¹. De repente, a temperatura rapidamente caiu. Cristais de gelo começaram a se formar nas nuvens e refletiam incontáveis raios de luz, se transformando em estranhos espelhos de cristal. Os céus e a terra mudaram de cor. Esta era a majestade de uma existência suprema.
O grande Dragão Dourado examinou o mundo com seu olhar indiferente.
O cenário acima das nuvens tinha sido visto muitas vezes.
O grande Dragão Dourado voou para aquela montanha solitária no horizonte. Quando ele chegou perto, seu corpo maciço e terrível afundou nas nuvens, sumindo de vista. A abundante névoa foi dilacerada pelo seu corpo maciço e aterrorizante. Os penhascos da montanha solitária eram ingrímes e acidentados, estéril em plantas ou até em musgos. Um silêncio mortal permanecia sobre a montanha, semelhante a um túmulo.
Assim, o dragão continuou a voar até as profundezas do nevoeiro, passando por dias e noites aparentemente intermináveis. Até onde ele voava, era um mistério. Do começo ao fim, estava sempre entre o nevoeiro, não encontrando mais nada. À medida que voava mais para o fundo, dificilmente crescia musgos nas falésias², as nuvens e a névoa também eram muito mais espessas do que as nuvens de cima. Talvez por causa da pressão que foi feita, muitos cristais começaram a se formar nas nuvens. Eles eram gotículas de água, fazendo com que o ar também ficasse úmido.
O Dragão Dourado não mostrou nenhum interesse por essas mudanças e continuou o seu voo para baixo.
As plantas na montanha solitária aumentaram gradualmente, as nuvens aos poucos cresciam em umidade. Gotas de água caíam nas falésias, convergindo pouco a pouco para inúmeros pequenos córregos, com espessura de uma pequena folha. Inumeráveis córregos esguios de água saiam do penhasco e desciam pelas nuvens.
O Dragão Dourado olhava para os incontáveis córregos que escorriam pela montanha solitária, a expressão em seus olhos ia crescendo muito mais solene, as duas bolas de fogo divino iam ficando cada vez mais serenas — este lugar era o túmulo de todas as nuvens e também a fonte de todas as águas.
Inúmeros córregos de água desciam da montanha, mas ele tinha olhos apenas para um.
O Dragão Dourado voou silenciosamente através do nevoeiro, seguindo este fluxo e presenciando inúmeros dias, como se ele repetisse essa ação infinitamente, até que em certo momento... o nevoeiro em frente a ele se dispersou.
Na frente da neblina estava o chão.
A margem inferior do nevoeiro era muito plana e lisa, completamente de acordo com os contornos da terra e preservando perfeitamente a distância entre o nevoeiro e o solo. Eram cinco pés³ de espaço, precisamente a altura de um humano, como se tivesse sido planejado pelo Criador. Os cinco pés de espaço entre o chão e o nevoeiro se estendiam à distância, onde os raios de luz podiam ser vistos, mas não o sol. O terreno estava coberto por inúmeras correntezas.
O nevoeiro estava espalhado pela enorme cabeça do dragão, revelando o solo e aquele córrego particular.
Clara, calma e fria, a água do córrego se originou da umidade condensada da montanha solitária. Dentro do córrego flutuava uma bacia de madeira, na bacia havia várias camadas de pano e no topo do pano estava uma criança — a pele do bebê estava tingida de azul e seus olhos estavam fechados. Era óbvio que tinha nascido há pouco tempo.
A névoa sobre o córrego floresceu como as flores, estourando em inúmeras pétalas, aglomerando, surgindo, espalhando. Com um 'whoosh', a cabeça do Dragão Dourado, maior do que um salão de um palácio, sondou lentamente a névoa e atingiu a superfície do riacho.
Os cinco pés de distância entre o nevoeiro e o córrego eram muito estreitos. O corpo do Dragão Dourado e parte de sua cabeça estavam escondidos no nevoeiro. Isso só fez ele parecer mais majestoso, enigmático e monstruoso.
O Dragão Dourado observou silenciosamente o córrego.
A bacia de madeira se moveu e caiu no riacho.
Na pequena bacia de madeira havia uma criança recém-nascida e abandonada, com os olhos fechados e o rosto tingido de azul.
☆
A névoa gradualmente se dispersou e tudo retornou à tranquilidade.
No entanto, essa tranquilidade foi temporária... no fundo do nevoeiro, até mesmo na montanha solitária, inúmeros assobios estridentes, choros de pânico e uivos soaram simultaneamente!
Este mundo, originalmente pensado para ser quieto e sem vida, realmente havia escondido muitos pássaros e bestas. De dentro da névoa podiam ser ouvidas batidas de asas, a investida em pânico e ao acaso um Unicórnio esmagando árvores antigas e maciças, e até mesmo o extremamente claro rugido de uma Fênix!
Uma corda intangível⁴ de fogo formada por intenção divina se espalhou da margem do rio para o horizonte. A grama úmida tornou-se incomparavelmente seca. Mesmo a grama dentro da água começou a enrolar nas bordas!
Os olhos do Dragão Dourado permaneceram sem emoção, nobres e apáticos⁵, senhores de tudo sob o céu.
Não se preocupava com as inúmeras bestas que se moviam no mundo abaixo do nevoeiro. Nem se importou com o rugido de uma jovem Fênix. Só olhou para o pequeno córrego na frente dele e olhava para a bacia de madeira flutuando no topo do córrego. Dezenas de milhares de córregos desciam da montanha solitária, mas ele só tinha olhos para aquele córrego. Depois de trinta mil anos, ele finalmente retornou a este mundo, tudo por causa do bebê na bacia de madeira, como isso poderia afastar o olhar dele?
Um fio de luz extremamente fino desceu. A superfície deste fio de luz estava coberta de ouro, enquanto que dentro, era de um branco sagrado que parecia poder emitir luz por conta própria. A parte da frente do fio era extremamente fina, enquanto gradualmente crescia mais grossa em direção ao final, atingindo finalmente a espessura do braço de uma criança. A superfície deste fio de luz era extremamente suave e perfeita, especialmente o brilho que se mostrava através das profundidades do fio. Isso só adicionou a sua beleza.
Esse fio de luz parecia ser feito de ouro ou jade, provocando uma sensação de um imenso peso. Na realidade, era muito leve, balançando de um lado para o outro na leve brisa do córrego, como se estivesse dançando, querendo se aproximar suavemente daquela bacia de madeira, mas se afastando no próximo segundo.
Este era o bigode do Dragão Dourado.
Neste momento, o fogo divino dentro dos olhos do Dragão Dourado já não era daquela eterna calmaria, a completa indiferença foi substituída pelo pensamento profundo de quem hesita em algo. As partes dianteiras de seus dois bigodes eram como dedos suaves, parecendo pastar ligeiramente contra a borda da bacia de madeira, como se estivessem se acariciando. Na realidade, no entanto, eles, na verdade, não tocaram a bacia.
Este Dragão Dourado já havia vivido muitos anos sem fim e possuía uma sabedoria inimaginável. No entanto, esta bacia de madeira parecia apresentar um problema insolúvel. As emoções nos seus olhos se tornaram cada vez mais complexas. Havia desejo, cautela, hesitação, e finalmente, guerra. Talvez acidentalmente, talvez intencionalmente, o vento soprando sobre o córrego ligeiramente se deslocou e a borda da bacia de madeira, que parecia que quase não passaria pelo pescoço do dragão, tremia. Por fim, pela primeira vez, o bigode do dragão finalmente tocou a bacia de madeira e até se esfregou pela orelha da criança lá dentro!
Este toque suave produziu uma mudança intensa, aquelas duas fagulhas de fogo divino nas profundezas dos olhos do Dragão Dourado pareciam explodir em dezenas de milhares de estrelas. Dentro deste mar de estrelas, o desejo era imperturbável, cruel e miserável!
Esse desejo era louvado, era móvel.
Louvado pela vida, movido pela vida.
Era o desejo mais primitivo da vida.
O Dragão Dourado olhou para a bacia de madeira e abriu a boca, o hálito do dragão como fragmentos de jade derramou-se.
A criança na bacia ainda tinha os olhos fechados, completamente inconsciente do que aconteceria à seguir.
Uma sombra envolveu o córrego.
O hálito do dragão se espalhou ao redor da bacia de madeira.
Em seguida, a bacia de madeira e a criança dentro se tornariam a comida do Dragão Dourado.
Só então.
Uma mão agarrou a borda da bacia de madeira e a puxou para a margem do córrego!
Esta mão magra, fraca e muito pequena, estava coberta de cicatrizes.
Com a queda de água, a superfície do córrego foi partida quando a mão puxou a bacia de madeira e seu dono correu por sua vida até a margem do córrego.
O dono dessa mão era um pequeno garoto daoísta com cerca de três ou quatro anos de idade.
O garoto daoísta puxou a bacia de madeira para a margem do córrego e a escondeu entre seu corpo e uma rocha. Ele então se virou e puxou uma espada de sua cintura a empunhando para aquela, maciça e aterrorizante, cabeça do Dragão Dourado.
Este era um menino daoísta muito estranho.
Ele estava cego de um olho e tinha perdido uma orelha. Quando ele estava correndo por sua vida no riacho apenas um momento atrás, era fácil ver que suas pernas estavam um pouco mancas. De sua manga vazia, dava para ver que ele também tinha apenas uma mão.
Não é de admirar que ele precisasse esconder a bacia de madeira atrás de si antes de retirar a espada.
O rosto do menino daoísta embranqueceu ao ver a enorme cabeça do Dragão Dourado no córrego. Os dentes do menino daoísta estavam batendo, não por causa das águas geladas do córrego, mas por causa do medo em seu coração.
Esta foi a primeira vez dele vendo um verdadeiro dragão. Ele nem sabia o que era um dragão, ele só conhecia o medo. No entanto, ele não escapou, em vez disso segurou aquela espada de madeira fina e bloqueou firmemente a bacia atrás dele.
O Dragão Dourado olhou para o menino com indiferença. Somente especialistas extremamente fortes que haviam chegado e quebrado a barreira do Reino do Domínio Divino, poderiam ver a raiva e insensibilidade nas profundezas de seus olhos.
O garoto daoísta pareceu gritar algo. Seu rosto estava pálido, seu medo era anormal, mas ele não abandonou a bacia em sua posse.
Furioso, a respiração do Dragão Dourado envolveu os dois lados do córrego e a morte estava prestes a chegar.
A espada de madeira caiu da mão do menino para dentro do córrego quando ele se virou para abraçar a bacia de madeira em seu peito.
As escamas do Dragão Dourado roçaram contra a névoa, sua colisão provocando inúmeras manchas de Fogo Celestial e colocando o córrego em chamas.
Neste momento, um daoísta de meia-idade apareceu na margem do córrego.
O daoísta de meia-idade olhou para o Dragão Dourado com uma expressão serena.
O Fogo Celestial sobre o córrego foi apagado de repente.
O Dragão Dourado olhou para o daoísta de meia-idade e soltou um rugido de dragão!
Este rugido foi extremamente prolongado, quase como se nunca chegasse ao fim. Era uma sílaba extremamente complexa, soando como uma melodia extremamente complexa e também como o furacão mais aterrorizante do mundo natural, levando consigo um poder inimaginável!
O daoísta de meia-idade olhou para o Dragão Dourado e falou uma única palavra.
Era uma única sílaba, sua pronúncia extremamente estranha e incompreensível, aparentemente sem semelhanças com a linguagem dos humanos. Este fragmento parecia conter infinitas informações e transbordava uma aura ancestral!
O Dragão Dourado entendeu, mas não concordou.
Assim a névoa acima do córrego começou a se agitar ferozmente.
O sopro do Dragão Dourado se espalhou por todos os lados, as pastagens úmidas e as árvores pelo riacho se transformaram instantaneamente em um campo de fogo aterrorizante.
O jovem garoto daoísta tinha as costas para o pequeno córrego, totalmente inconsciente do que estava acontecendo. Ele abaixou a cabeça com medo, fechou os olhos e apertou a bacia de madeira no peito.
☆
Depois de um tempo aparentemente interminável passar, a margem do córrego ficou novamente silenciosa.
O garoto daoísta juntou sua coragem e virou sua cabeça, porém ele viu apenas as águas límpidas do fluxo d’água. O fogo dos dois lados das margens já havia se extinguido e apenas as árvores chamuscadas e pedras rompidas permaneceram para recontar o quão aterrorizante a batalha de agora havia sido.
De bem fundo na neblina veio um rugido de dragão. Esse rugido era cheio de angústia, relutância e arrependimento. Ele contava a todos os cinco continentes quão amarga angústia e profundo arrependimento, sua hesitação prévia, o havia causado.
O jovem garoto daoísta estava assustado. Com sua mão segurando a bacia de madeira ele mancou até a margem, ao lado do daoísta de meia-idade, timidamente olhando para o nevoeiro acima.
O daoísta de meia-idade estendeu a mão e extinguiu a chama do ombro do garoto.
O menino daoísta⁶ pensou em algo e de maneira meio árdua⁷, levantou a bacia de madeira.
O daoísta de meia-idade pegou a bacia de madeira e ele gentilmente colocou a criança em seus braços. Separados por um pano, os dedos de sua mão direita descansavam no corpo do bebê. Logo depois suas sobrancelhas franziram.
— Seu destino… é realmente muito ruim. — disse ele penosamente ao bebê envolto em panos que estava em sua mão.
☆
Na parte leste do continente oriental existia uma pequena vila chamada Xining. Fora da vila Xining existia um pequeno córrego, ao lado desse córrego uma montanha, e nessa montanha havia um templo. Não tinha nenhum monge neste templo, apenas um daoísta de meia-idade e seus dois discípulos que estavam cultivando e compreendendo o Grande Dao.
A montanha era verde e sem nome, onde ficava um templo budista abandonado. Dos dois discípulos, o nome do mais velho era Yu Ren, enquanto o mais novo se chamava Chen Changsheng.
A vila Xining ficava na fronteira do império de Zhou. 800 anos atrás, a Grande Dinastia de Zhou estabeleceu o daoísmo como a Ortodoxia⁸. Mesmo agora, na presente Era de Zhengtong, a Ortodoxia une o mundo inteiro e é reverenciada por todos. Baseado neste princípio, esse mestre e seus discípulos deveriam ter vivido uma vida com roupas de seda e arroz de jade. No entanto, não se podia mudar o fato de que a vila Xining era muito remota e o templo em ruínas era ainda mais remoto. Em dias normais, era raro ver pessoas, então eles só podiam viver suas vidas simples com chá e comida comum.
Naturalmente, daoístas precisavam cultivar o Dao. No presente mundo, haviam inúmeros métodos de cultivo, mas o método de cultivo desse daoísta de meia-idade era totalmente diferente daqueles ensinados por qualquer outra seita. Ele não colocava ênfase no cultivo ou em compreensão, não se importava com Estrelas Destinadas e meditação introspectiva⁹ ou sobre como refinar a mente. Ela só se importava com uma coisa: “Memorização”!
Desde criança, Yu Ren começou a recitar as Escrituras Daoístas e desde o momento em que Cheng Changsheng pôde abrir seus olhos, ele foi forçado a se sentar oposto a Yu Ren e encarar aqueles antigos livros amarelados. A primeira coisa que ele conheceu foi uma sala cheia de clássicos daoístas e escrituras. Depois de aprender a falar, ele aprendeu como reconhecer as palavras, então começou a recitar e memorizar as palavras daquelas escrituras daoístas clássicas.
Memorizar e aprender até que eles fossem tão familiares com aqueles livros que até pudessem recitá-los do começo ao fim. Essa era a vida dos dois garotos daoístas que viviam no templo em ruínas.
Quando eles acordavam de manhã cedo, eles memorizariam livros. Quando o som rouco do sino soava a saída do crepúsculo, eles estavam memorizando. De baixo do sol escaldante eles estavam memorizando. As flores da primavera desabrochavam em calor, os trovões do verão estrondavam, os ventos do outono sopravam e a neve do inverno, fria e desoladora, e eles sentavam entre os campos, na margem de um rio, embaixo de uma arvore, pelo desabrochar de uma ameixeira. Eles liam constantemente, memorizando, sem perceber o tempo que passava.
O ambiente inteiro do velho templo daoísta era lotado de livros e pergaminhos das escrituras daoístas. Quando ele tinha sete anos, Yu Ren uma vez os contou em um ataque de tédio. Não haviam menos de três mil. As Três Mil Escrituras do Dao. Cada livro com várias centenas ou até mil palavras. O menor era o “Clássico dos Deuses” com trezentos e quatorze palavras e o maior era o “Clássico da Longevidade”, que continha pelo menos vinte mil palavras. Essas Três Mil Escrituras do Dao eram tudo o que eles tinham que memorizar.
Os irmãos discípulos repetiam e memorizavam incessantemente, apenas tentando lembrar, nunca compreender. Eles sabiam que seu mestre não responderia a nenhuma pergunta em relação às escrituras daoístas, apenas dizendo: “Lembre, e o entendimento naturalmente virá” .
Para aquelas crianças começando seu estudo e que só desejavam brincar, essa vida realmente seria difícil de imaginar. Por sorte, essa montanha era fora das rotas normais e raramente era visitada por outras pessoas. Sem coisas externas para distraí-los, eles podiam ficar focados. Esses dois daoístas tinham temperamentos bem únicos, não achando essa vida maçante ou tediosa de maneira alguma. Dia após dia, repetindo esse processo, sem que eles percebessem, anos se passaram.
Em um certo dia, o som de leitura que não havia parado nunca por vários anos, parou.
Chegou a um fim.
Duas crianças estavam sentadas numa montanha de pedra, lado a lado, com um livro repousando sob seus joelhos. Eles olharam para o livro, então olharam um para o outro, os dois meio perdidos.
Nesse momento, eles tinham memorizado todas as escrituras, até a última, e não tinham como continuar. Eles não conseguiram compreender as palavras nos livros. As palavras das escrituras daoístas não eram familiares para eles. Para falar a verdade, elas eram muito estranhas. Eles obviamente reconheciam todos aqueles radicais¹⁰ e traços, mas quando colocados juntos, eles formavam objetos totalmente estranhos. Como eles deveriam lê-los? O que eles significavam?
O par retornou ao templo à procura do daoísta de meia-idade.
— Das Três Mil Escrituras do Dao, vocês dois estão vendo o último livro. Esse livro consiste de mil seiscentos e um caracteres. De acordo com a lenda, contido nesses caracteres está o último sentido do Grande Dao. Nunca houve alguém que compreendesse completamente o sentido deste livro. Como vocês dois poderiam? — disse o daoísta de meia-idade.
— Mestre, você também não compreende? — perguntou Chen Changsheng
— Ninguém se atreveria a dizer que realmente o entende, e eu também não. — falou o daoísta de meia-idade balançando a cabeça.
Os irmãos se olharam nesse momento com o olhar um tanto arrependido. Mesmo eles sendo crianças, já tinham memorizado as três mil escrituras daoístas até hoje e apenas a um livro de completar. Eles naturalmente não estavam felizes. Mas no final, não eram crianças comuns. Desde quando eram crianças, as escrituras foram suas companheiras. Suas personalidades também eram bastante brandas¹¹. Os dois se prepararam para virar e partir.
— Mas eu posso lê-la. — continuou o daoísta de meia-idade.
Daquele dia em diante, o daoísta de meia-idade começou a lhes ensinar como ler aquele último livro. Uma a uma, as pronúncias foram ensinadas a eles. A pronúncia era muito estranha. Eram monossilábicas, muito simples, todavia elas requeriam o uso de alguns músculos muito específicos da garganta e tinham demanda especial para as pregas vocais. Em suma, não eram sons que um humano comum conseguiria fazer.
Chen Changsheng estava totalmente confuso. Ele só podia agir como um macaco de imitação, obedientemente imitando a pronúncia de seu mestre.
Por outro lado, Yu Ren ocasionalmente pensava naquela palavra que seu mestre havia dito, para aquela criatura aterrorizante no córrego há muitos anos atrás.
Depois de muito tempo, Yu Ren e Chen Changsheng foram capazes de pronunciar os mil e seiscentos e um caracteres, mas eles continuaram sem compreender seus significados e nem receberam nenhuma resposta do daoísta de meia-idade. Nesse ponto, eles já haviam gasto um ano inteiro no livro final. Então eles continuaram do mesmo jeito de antes, segurando o último livro e o lendo até eles poderem memorizá-lo.
Quando eles acreditavam que estavam livres dessa vida de ler escrituras daoístas, o daoísta de meia-idade os incumbiu de lê-las uma segunda vez. As crianças impotentes foram obrigadas a repetir esse processo e talvez por causa dessa repetição, eles acharam essa repetição de leitura muito mais cansativa, um sofrimento infalável.
Foi neste momento que eles começaram a ficar confusos. Por que o mestre deles queria que eles lessem essas escrituras? Por que ele não os estava ensinando a cultivar? Estava claramente escrito nas escrituras que daoístas deveriam cultivar o Dao, que eles deveriam naturalmente perseguir a longevidade.
Nesse ponto, Yu Ren tinha dez anos, enquanto Chen Changsheng tinha seis anos e meio. No outono desse ano, uma garça branca rompeu as nuvens, carregando os cumprimentos de um velho amigo e um livro de seda. Nesse livro estava escrito uma data de nascimento, um contrato de noivado e um token. Era um oficial de alto escalão que foi salvo pelo daoísta de meia-idade e pretendia cumprir uma promessa feita há tempos.
O daoísta de meia-idade sorriu silenciosamente vendo aquele contrato de noivado e então se virou para os seus dois discípulos. Yu Ren balançou sua mão, apontando para seu olho cego e recusando com um sorriso. Chen Changsheng tinha uma expressão perplexa sem entender o que tudo aquilo significava. Desnorteado, ele pegou o contrato de noivado e a partir daquele momento, ele tinha uma noiva.
Nos vários anos seguintes, a garça branca voltou das nuvens trazendo cumprimentos da pessoa nobre da capital e também alguns pequenos presentes bem interessantes para Chen Changsheng.
Chen Changsheng gradualmente começou a entender essas coisas. O que um noivado significava. Todas as noites ele olharia para a carta de noivado em baixo da luz das estrelas, sentado em sua escrivaninha e sentindo um sentimento indescritível. Quando ele pensava sobre aquela noiva que tinha quase a sua idade, ele sentia uma alegria serena, um pouco tímido, mas ele também se sentia perplexo.
Quando Chen Changsheng tinha dez anos de idade, um acidente ocorreu em sua calma vida de ler livros. Em uma certa noite depois de sua septuagésima segunda vez lendo as mil seiscentas e uma palavras do último livro das escrituras daoístas, ele sentiu sua mente sair de seu corpo e vagar pela floresta na montanha verde. Neste momento, ele ficou inconsciente e seu corpo começou a exalar um aroma estranho.
Não era cheiro de flores, nem de folhas ou pó cosmético perfumado. Poderia ser descrito como algo suave, mas ele perdurava no centro noturno sem se dispersar. Poderia ser descrito como denso, entrava no nariz, porém era quase indescritível. Não parecia um cheiro que apareceria no mundo humano. Era impossível entender, não obstante muito sedutor.
O primeiro a notar a situação de Chen Changsheng foi Yu Ren, após cheirar o estranho aroma, sua expressão se tornou extremamente sombria.
Na tenebrosa montanha verde, sombreada por árvores, haviam leões e tigres rugindo, garças dançando e o coaxar de sapos que só devia ser ouvido nas noites de verão. Nas profundezas da névoa a Leste da montanha que ninguém se atrevia a entrar, uma monstruosa sombra podia ser fracamente vista, uma criatura misteriosa.
Yu Ren abanava com todas suas forças pelo sofá, pretendendo expulsar a fragrância de cima do corpo de Chen Changsheng. Por que aquele cheiro havia causado água em sua boca, fazendo ele ter uma ideia muito grotesca e assustadora, ele tinha que abanar até ele expulsar aquela ideia da cabeça.
No mesmo momento, o daoísta de meia-idade apareceu dentro do quarto. Do lado do sofá olhando para Chen Changsheng dormindo, ele disse uma frase que somente ele podia entender:
— Onde está a causa?
Uma noite passou.
O momento em que a luz iluminou a montanha verde, o estranho aroma desapareceu do corpo de Chen Changsheng, nem um vestígio dele sobrando. Ele retornou a sua aparência prévia, as milhares de estranhas bestas e a silhueta aterrorizante partiram para algum lugar desconhecido.
Vendo seu irmão mais novo dormindo bem, Yu Ren finalmente parou de entrar em pânico e voltou a respirar. Querendo limpar o suor de sua testa, ele percebeu que, porque ele passou a noite toda abanando os braços, seus ombros doíam tanto que ele nem conseguia mexê-los.
Chen Changsheng abria seus olhos enquanto acordava. Mesmo tendo dormido a noite inteira, ele sabia que algo havia acontecido. Vendo a expressão pálida no rosto de seu sênior, sua face ficou esbranquiçada. “Mestre, o que há de errado comigo?”
O daoísta de meia-idade encarou ele silenciosamente por um longo tempo antes de finalmente falar:
— Você está doente.
De acordo com a explicação do daoísta, sua doença era devida a seu corpo ser inatamente fraco, fazendo com que os nove meridianos em seu corpo não conseguirem se conectar. O aroma estranho da última noite foi por conta de que sua alma não tinha como ter circulado em seu corpo, então ela foi dispersada através de seu suor. Esse suor continha a essência de sua alma, algo que humano nenhum podia viver sem, então naturalmente ela continha um cheiro estranho.
Essa era um tipo de doença muito misteriosa.
— Então… você pode curá-la?
— Eu não posso, ninguém pode.
— Uma doença que não ser curada… isso é o destino, não?
— Sim, esse é o seu destino.
☆
De seu décimo aniversário em diante, a garça branca não mais veio para a montanha e toda comunicação com essa pessoa da capital foi cortada, como se ela nunca houvesse acontecido. Ocasionalmente, quando Chen Changsheng ficava ao lado do córrego olhando para o oeste, ele pensava neste assunto.
É claro, o que ele mais pensava era sobre a sua doença, seu destino… Ele não ficou mais débil e além do fato dele ficar cansado mais facilmente, ele era como “A Figura da Saúde”. De maneira alguma ele parecia uma pessoa destinada a morrer jovem, de tal forma que ele começou a duvidar da palavra de seu mestre. Mas e se seu mestre estivesse correto? Chen Changsheng decidiu deixar o arruinado templo para dar uma volta no mundo. Aproveitando o fato de que ele ainda podia os ver, ele gostaria de ir ao lendário Mausoléu dos Livros e acabar com aquele noivado.
— Professor, partirei agora.
— Aonde você vai?
— À capital.
— Por que?
— Porque eu ainda quero viver.
— Eu lhe disse antes que não é uma doença, é o destino.
— Eu quero mudar o destino.
— Nesses últimos oitocentos anos, apenas três pessoas conseguiram mudar seus destinos.
— E essas pessoas foram extremamente destacadas certo?
— Sim.
— Eu não sou, mas mesmo assim, quero tentar.
Enfim, a capital era um lugar que Chen Changsheng teria de ir eventualmente. Mesmo que ele não conseguisse curar sua doença, ele tinha de ir. Não era meramente porque ele queria mudar seu destino, mas porque a pessoa do contrato de noivado estava na capital.
Ele empacotou sua bagagem, aceitou uma espada dada pelo seu sênior Yu Ren, se virou e partiu.
O garoto daoísta de quatorze anos desceu a montanha.
Notas:
1 – 1 Li = 500 metros, só que no contexto da narrativa está dando uma ideia de um lugar que é impossível medir a sua altura ou distancia.
2 – Falésias: Costa Alta, que sofreu erosão com o tempo, pelo contato ocasional com a água,
geralmente encontrado em costas marítimas. Essa no texto aparentemente é em um rio, que também pode ocorrer.
3 – Pé: Sistema de medida, equivale a 30,48 centímetros.
4 – Intangível: Algo que não se pode pegar ou tocar; incorpóreo.
5 – Apático: Apático: Indiferente.
6 – Daoista: Daoísta é quem já está no caminho do Dao, caminho do cultivo para a imortalidade, ou seja, o autor deixa bem claro que o menino já iniciou, mesmo que bem pouco, seu cultivo.
7 – Árduo: árduo, expressa dificuldade. Ele tinha apenas uma mão, por isso a dificuldade.
8 – Ortodoxia: Ortodoxia é a condição de cumprimento absoluto com todas as decisões, de modo rigoroso e rígido. Ex.: Cristão Ortodoxo, seguem a bíblia à risca.
9 – Introspecção: Introspecção é o autoconhecimento;Pessoa introspectiva é uma que tem um alto
nível de conhecimento sobre ela mesma.
10 – Radicais: Na língua chinesa são usado desenhos e traços, exemplo: o símbolo chinês para bondade 好 (“hǎo”), é desenhado usando dois símbolos separados, uma mulher (女) e uma criança (子), combinados em um único símbolo. Radicais são esses símbolos.
11 – Branda: Leve; tranquilo. Podia ter mudado, mas estamos aqui para aprender novas palavras.