Volume Único

Prólogo: A Cascata de Takirei'ou/Entardecer/Garoa

A desordem do mundo recente é de meu feito. Quando vivo, dediquei meus desejos à heresia, gerei a pertubação de Heiji e depois de morto, amaldiçoei a família imperial. Presenciem. A chuva logo produzirá uma rebelião em terra.

 

Fantasma do Ex-Imperador Sutoku.

Akinari Ueda, Contos do Luar e da Chuva: Cume Branco. Quinto ano da era An'ei.


Sobre o precipício da cascata havia duas silhuetas. Uma, um jovem alto. A outra, um velho de cabelos brancos.

Ambas silhuetas se encaravam caladas enquanto seus olhares faiscavam como fogos de artifícios. O motivo — serem inimigos de longa data. Protagonistas que não poderiam viver sob o mesmo céu. Os dois sabiam que, num futuro bem próximo, um seria derrotado pelo outro, tendo a vida roubada por um destino irreparável.

Os dois homens já haviam compreendido — hoje era o dia, e aqui, o local desse destino. Assim como entendiam que o outro também sabia. E por isso, estavam calados.

A cascata caia estrondosamente. O sol se punha, enfraquecendo.

A floresta ao redor, as pedras molhadas, o lago abaixo; tudo estava coberto por uma garoa pálida que tornava o cenário num enevoado azulado.

Uma terra isolada. Um crepúsculo. Esse lugar é uma fronteira entre este mundo e o outro.

O jovem alto falou:

“O que acontecerá agora é a sua morte. Saboreie bem, Kyougoku.”

Sua voz estava fria ao ponto de fazer até uma cobra sentir calafrios. A pele era branca como a de um morto.

Usava quepe e óculos escuros. O frio se concentrava apenas ao seu redor e a chuva, como se com medo, o evitava. O velho de cabelos brancos riu em resposta.

“Esplêndido. Verdadeiramente esplêndido, Ayatsuji-kun.”

Ele se vestia com trapilhos tradicionais dignos de um ermitão. Seu olhar lamacento guardava uma engenhosidade milenar. As covinhas gravadas em suas bochechas demonstravam tanto ingenuidade quanto malícia.

Na tranquila e alegre voz do homem de meia idade, não se ouvia qualquer indício de ressentimento. Parecia um senhor bem-humorado, que se encontra em qualquer lugar. Mas o jovem chamado de Ayatsuji-kun estreitou seus olhos em descontentamento para a risada.

“Não ria, seu babuíno velho. Sua risada lamacenta fere meus ouvidos — Kyougoku. Você se recorda de todos os crimes que cometeu?”

“Oh céus. O que quer dizer com crimes? Prender e tratar como um criminoso esse covarde e bondoso idoso, será que você não tem nenhum respeito pelos mais velhos? Por mais que não pareça, eu também sou um cidadão da lei. Sempre atravesso no sinal verde.”

O homem de meia-idade continuava a falar tranquilamente.

“Boa piada. Então já que está senil, eu contarei seus crimes no seu lugar — 38 incitações de assassinato, 29 chantagens, roubos, confinamentos, assaltos. Incluindo as tentativas fracassadas, são centenas de crimes graves e pequenas ofensas. Porém, nunca sujou as próprias mãos. O caso do Refeitório Alburno e o caso da Cabeça de Boi, por exemplo. Você nunca deixou uma prova de ser o mandante nos vários casos que chocaram a sociedade. Aqueles que cometeram o crime nem perceberam que estavam sendo manipulados.”

O homem de meia-idade, sem negar, apenas aprofundava seu sorriso. Ao ver essa expressão, Ayatsuji franziu a testa em desconforto.

“Sem cometer os crimes, nem o governo poderia tocar em você, mas…” Ayatsuji levantou a mão, cortando o frio, “isso acaba hoje.”

Escorregando sua mão para o bolso, tirou de lá uma moeda de cobre.

“Isso aqui prova que você foi o mandante do massacre no museu.” Ayatsuji mostrou a face da moeda para o outro. “A vítima foi espancada até a morte com um saco cheio de moedas da própria exposição. Depois disso, você as colocou de volta em exibição descaradamente — Esse foi o truque do desaparecimento da arma do crime. O sangue da vítima e as suas digitais estão nessa moeda.”

O velho chamado Kyougoku apenas moveu os lábios num ligeiro sorriso. Porém, seus olhos não estavam rindo. Seu olhar lamacento, guardando a conspiração diabólica de um eremita, brilhava silenciosamente.

“Lembre-se desse brilho, Kyougoku.” Ayatsuji girou a moeda. Refletindo sobre o pôr do sol, ela reluziu. “Você vai pedir desculpas para as suas vítimas nas profundezas do inferno.”

“Inferno? Entendo. Hmmm, por sinal, só por curiosidade, mas Ayatsuji-kun, há vários tipos de inferno. Pelo Kojiki, seria o País dos Mortos. Pelo Budismo Mahayana, a última camada dos Dez Reinos Espirituais, o Naraka. Segundo o Nichiren Shounin, a iluminação do Nirvana. No Antigo Testamento, Sheol. E no Novo, nos evangelhos de Mateus e Lucas seria…”

“Hades.” Ayatsuji interrompeu. “Não importa qual seja. A essência não muda.”

“Para você pode ser, mas eu ligo.”

“É inútil se preocupar com isso. De qualquer forma, logo saberá.“

Ayatsuji respirou friamente como um morto.

“Porque logo irá para lá. É questão de horas.”

Os dois ficaram calados por alguns instantes. O barulho da cascata, parecendo um trovão, dissolvia a garoa que os envolvia.

“Só poderia ser assim.” Kyougoku disse sem nenhuma emoção. “Esse era o destino do homem que enfrentou o detetive Yukito Ayatsuji — o detetive mais abominável do que um assassino. Absolutamente assustador.”

O velho passou a ligeira impressão de estar zombando dele. O jovem de temperatura baixa apenas estreitou os olhos.

“Kyougoku, eu te conheço há muito tempo.” Agora quem falou foi Ayatsuji. “Te direi a verdade hoje. Não era do meu interesse as estratégias que armava ou os delitos que cometia. Não me importavam. Podia planejar o que quisesse ou matar o quanto quisesse.”

“Se você encontrar Buda, mate-o… é?”

“As vidas das pessoas não são iguais. A prova disso é elas ficarem tristes pela morte de uma pessoa boa e felizes pela de uma má. E todas as vidas humanas me são igualmente sem valor. Eu não sou qualificado para falar sobre a importância delas e nem tenho interesse. Mesmo assim —” Ayatsuji arremessou a moeda. O barulho do metal ecoou pelas montanhas. “Você matou demais.”

A moeda girava no ar enquanto caia na imensidão abaixo de seus pés. A incomum evidência que denunciaria o grande criminoso Kyougoku, caiu no fundo do lago borrado e sumiu. Seguindo essa trajetória, Kyougoku estreitou seus olhos.

“Será que deveria ter feito isso? Depois de ter tido o trabalho de consegui-la.”

“Não preciso mais dela. Você sabe disso.”

Kyougoku apenas sorriu com seus olhos lamacentos sem responder nada.

Na ravina profunda que liga esse mundo e o outro. No precipício que enaltece a paz. Ayatsuji deu um passo.

“Deixe-me avisá-lo.” Ele falou como um sussurro. “Uma queda. Essa será a causa de sua morte. Você cairá sem querer desse precipício e morrerá.”

Como se estimulado, Kyougoku olhou para baixo.

“Uma queda.” Ele falou consigo mesmo. “Sofrer uma queda… Não é nada mal.”

“Não tem como sobreviver dessa altura.” Ayatsuji deu mais um passo para frente. “Esse precipício é um caminho sem volta. A polícia militar já cercou o perímetro. Logo chegarão. Não tem para onde fugir. Aqui será seu fim.”

Não havia um tremor de emoção na declaração do detetive. Ayatsuji apenas dizia o óbvio. Assim como disse diversas vezes a todos os outros mandantes dos casos que revelou.

“Um aviso de um grande detetive, vejo. Então não há motivos para eu discordar.”

Em resposta, Kyougoku deu um passo para trás. O cascalho que seu salto acertou, caiu em direção ao lago.

“Finalmente a nossa longa e longa disputa terminará aqui.”

“Certamente.” Kyougoku assentiu. “Nosso confronto foi muito divertido. Mas é uma pena. Comparado a ‘cerimônia’ que começará, nossas disputas foram apenas como uma inauguração.”

“Como assim?”

Sem respondê-lo, Kyougoku deu outro passo para trás. O precipício estava logo além de seu calcanhar. Mais um passo e não haveria mais volta.

“Você não pode me vencer, detetive assassino. Jamais. Essa é uma batalha que está destinado a perder. Uma batalha de retirada de um atoleiro em que não há chances de vitória. Ayatsuji-kun, aproveite o caminho da derrota.”

Ayatsuji não podia se mover. Não podia mover um dedo sequer diante do pequeno velho de braços finos, tal era a presença que este emanava.

“Agora vou mostrar que seu aviso estava errado — Uma queda? Eu não vou sofrer queda nenhuma. Veja.”

Kyougoku riu se divertindo e…

…se atirou do penhasco.

A cascata caía estrondosamente. Os trapos tremulavam em direção ao longe fim dentro do lago. Ele ria, indo em direção ao distante Nirvana para além da garoa —

“…“

Sem dizer nada, Ayatsuji ficou encarando o lago no qual Kyougoku adentrou. E assim, calado, continuou apenas a olhar a paisagem em que a misteriosa pessoa desapareceu.

Quando a Polícia Militar chegou e perguntou o que havia acontecido, ele não respondeu nada. Somente olhou para onde seu arquirrival havia sumido.

Necromante, Natsuhiko Kyougoku.

Detetive Assassino, Yukito Ayatsuji.

Usuários de Habilidade altamente engenhosos. Usando seus cérebros como armas e suas artimanhas como presas, essa é a história da batalha entre dois arqui-inimigos.



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