Volume Único

Capítulo 3

Meu nome é Sakunosuke Oda. Sou um membro da Agência de Detetives Armados. As pessoas dizem que se você quer saber sobre alguém, saber o trabalho dessa pessoa é um atalho. É uma forma de pensar com sentido. Mas para mim, essa regra não se aplica. Porque eu não tenho nem o espírito nem o talento para ser um detetive. Eu sou só um homem acabado que se encontra em qualquer lugar. Assim como as cinzas de um cigarro que vão caindo pelo caminho, sou só um detetive ordinário que não vale nada.

Eu entrei na Agência dois anos atrás resolvendo o caso do Rei Azul. Me lembro bem dessa época. Tudo estava sendo jogado de um canto para o outro. Chacoalhando no meio desse caso, eu apenas peguei o que estava mais perto de mim e fiquei esperando que o tumulto parasse. Só posso dizer que resolvê-lo foi um presente do acaso.

Depois disso, eu passei no teste. Me tornei um membro da Agência.

Desde então, eu vivo resolvendo os pedidos que são trazidos à Agência. Cuidando dos órfãos, bebendo café, apostando um pouco nas minhas folgas e escrevendo um romance na minha cozinha de noite. Esse tipo de vida. Modesta, confortável, longe de ser uma vida que eu possa me gabar para alguém. Mesmo assim, eu gosto dela como é agora.

O caso de hoje da Agência foi um pouco diferente.

Para encontrar com uma pessoa que eu combinei, eu andei até o distrito comercial. Faltando pouco para o entardecer, as ruas da cidade estavam submersas no mar laranja do sol poente e as pessoas passavam caladas como criaturas do fundo do mar. Na beirada da calçada,havia resquícios de vômito que alguém deixou na noite passada. As rodas de uma bicicleta prateada com um jovem em cima brilhavam como se fossem parte de alguma nave espacial enquanto passava por mim. Era como uma paisagem urbana levemente suja de gelatina de café. Não conseguia não gostar dessa cena.

O caso de hoje envolvia o membro novo da Agência. O novato Akutagawa estava indo para a sede da organização ilegal que está tomando raízes nessa terra, a Máfia do Porto. Sem precisar dizer, essa foi uma ação de alguém com os parafusos soltos na cabeça. Ainda seria muito mais bom-senso esmagar os próprios ossos com um martelo e se servir de comida para algum animal. Por sinal, quem o convidou para a Agência fui eu. Como sempre, eu só faço coisa como se estivesse colocando uma tachinha no meu próprio sapato. Só me resta aceitar que esse é um hábito predestinado a mim. O que eu tenho com o que me preocupar muito mais agora é com a vida do novato.

Esse novato, Akutagawa, era um poderoso Usuário de Habilidade. E também era apto a se meter em problemas. Também era provável que ele conseguisse passar pela defesa da Máfia para e reencontrasse sua irmã. Mas seu caminho era só até ai. Não  tem como ele voltar vivo de lá.

A Máfia do Porto era como o vento noturno que sopra nos lugares escuros dessa cidade. Um vento que alcançava desde os cantos mais profundos dos becos até os canais de drenagem. Mesmo que ele trouxesse sua irmã de volta e conseguisse deixar o prédio, a Máfia do Porto acharia eles sem falta e os exporia de cabeça pra baixo na  rua. Cortariam suas artérias carótidas e os pendurariam com elas para o sangue daqueles que desafiaram a Máfia se espalhasse pela rua, para que todos  pudessem ver. Por isso o Presidente ordenou que nós o ajudássemos a salvar sua irmã e trouxesse ela de volta em segurança para a Agência.

O meu papel é para depois que eles escapassem.

Não tem como a máfia perdoar os dois. Por causa do orgulho deles. Se eles perdoarem o Akutagawa que invadiu a sede, a honra deles lá fora será destruída e se deixarem a irmã sair, a honra interna será destruída. Se a coerção deles funcionar frouxa desse jeito, dinheiro e privilégios serão impossíveis. Então o que fazer?

Depois de pensar, eu cheguei a uma conclusão. Ameaçar. Não tem outra opção.

Conseguir informações dos pontos fracos da Máfia e ameaçar entregar para o governo. E a condição para devolver essa informação é eles não se vingarem do Akutagawa.

Para isso era necessário ajuda interna. Mas não podia ser um cooperador qualquer. Tinha que ser do centro da Máfia... De preferência, alguém da parte central do dinheiro. Para a Máfia, dinheiro é sangue. Se um veneno flui no sangue, não há   quem fique bem.

Por meio de um pessoal do submundo eu cheguei nessa pessoa. Era o contador responsável pelos fundos da Máfia. Um senhor tesoureiro que estava envolvido em lavar o dinheiro da Organização há muito tempo. Seu hobby era cultivar bonsais e resolver problemas de shougi.

O lugar que ele marcou parar nos encontramos era um bar velho num beco.

Era pôr do sol. Antes do bar abrir. Mas a pessoa que eu combinei girou a maçaneta  e a porta de madeira estava aberta.

Atravessando a porta, nos dirigimos para um andar subterrâneo. Ao descer para o andar seco e escuro eu senti como se estivesse voltando para o passado. Podia-se ouvir uma música ao longe nos fundos. O interior silencioso era apertado e estava quieto. Na parede estavam enfileiradas diversas bebidas de marca. O balconista não estava.

No assento mais ao fundo do bar, a pessoa com quem eu iria me encontrar já estava sentada. Olhava com olhos melancólicos para sua bebida e deslizava o dedo na borda do copo. Eu pisquei os olhos.

— Quem é você?

Não era um velho que estava ali.

Ouvindo minha voz, a pessoa levantou a cabeça e por trás de longos cílios, me olhou. Então, demonstrou algo que podia ser ou não um sorriso.

— Yo, Odasaku. Há quanto tempo. — O jovem de sobretudo preto disse. — Será que ainda é cedo para tomarmos uma?

Medo.

Medo, medo, medo, medo, medo.

Ele está me perseguindo vindo da escuridão. Estou fugindo com tudo que posso.   Eu não me importo se minhas coxas rompam ou se minha roupa rasgue. Vou correr com tudo. Vou fugir.

Mas não consigo fugir dele. Porque ele é um monstro que está dentro da minha cabeça.

Uma voz do passado ecoava na minha cabeça. De quem é essa voz? É do Dazai-san. Uma voz que se transformava em escuras correntes entrelaçando todo meu corpo como uma maldição.

Nunca poderei fugir. Eu sei. Ele vai me perseguir não importa onde.

Não tenho garganta para gritar. Não tenho olhos para chorar. Enquanto eu sinto um pavor que parece que vai me despedaçar, eu continuo a fugir de mim mesmo. Mas não dá para fugir de si mesmo. Ninguém neste mundo consegue.

Atsushi estava correndo no interior do prédio da máfia.

Corria inclinado para frente praticamente em sua forma animal completa e virava  os corredores chutando a parede. Subia as escadas como se pulasse andares e corria   pelo prédio como se estivesse movendo pelas três dimensões. Na cabeça dele, estava   só a perseguir o Akutagawa. Ou seja, somente salvar a Kyouka. Todo o resto havia sumido.

Ele viu que membros da máfia armados estavam se movimentando a sua frente.

Eram mais ou menos uns oito. Estavam bloqueando a passagem dele.

— Saiam.

Atsushi atravessou por eles rugindo como uma besta. Passou como um tornado ou uma bala de canhão. Os membros foram jogados contra parede devido ao impacto e desmaiaram sem entender o que tinha acontecido.

Um membro que o percebeu correndo por um instante pegou sua arma instintivamente. Porém, logo depois de ser arremessado para o lado, seu revólver caiu aos pedaços. E sem se quer perceber isso, sangue jorrou de seu braço e tronco.

Atsushi, após passar como um vento desastroso, nem se quer percebeu os membros que ainda estavam acordados. Ele não estava muito ciente do que havia feito. Apenas seguia em frente fugindo de seu medo.

As costas de Akutagawa apareceram no campo de visão do Atsushi que corria.

Atsushi rugindo, acelerou mais ainda.

Ao ouvir a voz sinistra, Akutagawa virou. Ele tentou criar uma barreira defensiva transformando o sobretudo em uma cortina, mas Atsushi foi mais rápido e pulou quebrando o chão. Enquanto rasgava a roupa, avançando sobre o peito do Akutagawa.

— De jeito nenhum você pode ir, Atsushi-kun. — Atsushi rugiu.

— UOOOOOOOAAAAAAAAAA!!

— Impossível-

Sem saber como reagir, Akutagawa ficou sendo socado. Sua cabeça virava até o limite. Como se tivesse sido atingido por um veículo de grande porte, Akutagawa saiu voando pela sala.

Sendo jogado contra a parede, perdeu a consciência por um instante. E como uma marionete que teve sua corda cortada, começou a cair para o chão.

Só que ele não caiu. Atsushi chegou rapidamente e o segurou pelo ombro em pleno ar. A besta rugiu pressionando o ombro que havia segurado contra a parede. O punho do Atsushi acertava continuamente o tronco do Akutagawa preso a parede.

Soco, soco, soco, soco, soco. A chuva de punho continuava como uma metralhadora quebrando o tronco do Akutagawa, e suas costas quebravam a parede. Seu corpo dobrava como papel machê.

Se um humano comum recebesse um único soco desse punho afiado capaz de cortar uma arma, seria um ferimento mortal na hora.

Inúmeros socos choviam sobre o Akutagawa.

Não importa quantos socos desse, Atsushi não parava de atacar. Em seus olhos arregalados, um enorme medo. Seu punho tremia, seus dentes rangiam e um suor frio escorria por todo seu corpo.

Medo, medo, medo, medo, medo.

Ele não parava de atacar. Mesmo querendo, ele não conseguia parar. O corpo conduzido pelo medo já havia rejeitado a sua vontade.

Sua alma rachada gritava. Não conseguia parar. Esteve rachada sempre. Desde aquela vez um ano atrás.

O punho do Atsushi parou.

Os lábios de Akutagawa se moveram formando curtas palavras.

— Eu entendi. Isso seu... não é medo.

Um calafrio percorreu pelo corpo do Atsushi. Sua respiração parou.

— Isso seu... é culpa.

A visão do Atsushi ficou branca.

Ultrapassando os limites, suas emoções queimavam as células do cérebro.

— Ah....

Ele ouviu uma voz. Era do seu mestre.

— Como seu chefe, eu te ordeno. — Uma voz do passado. Correntes negras. — De jeito nenhum você pode ir ao orfanato, Atsushi-kun. Entendeu?

Naquele dia, eu desobedeci minha ordem. A ordem da Máfia. A ordem do Dazai—san. A ordem que eu tinha que obedecer a qualquer custo.

Eu ataquei o orfanato.

Há um ano, eu como membro de uma tropa de assalto, eu estava em uma posição que me possibilitava mover alguns subordinados e informações. Era um poder capaz de fazer com que alguém de dentro da polícia vazasse informações para mim e que apagasse casos de ataques.

Eu só usei esse poder uma vez. Para queimar o passado.

Toda pessoa possui uma criança dentro de sua cabeça. É ela mesmo. O seu eu pequeno chorando no escuro. O seu eu pequeno o qual ninguém entende, para o qual ninguém estende a mão.

Para confortá-la, para fazê-la parar de chorar, as pessoas fazem qualquer coisa.

Qualquer crueldade.

No meu caso, eu queimei a prisão que o fazia chorar e matei o demônio.

Para falar a verdade, foi bem fácil. Usando meus subordinados, eu bloqueei todo perímetro e ataquei o orfanato. Após cortar a linha telefônica e destruir os carros estacionados, me transformei no Tigre e invadi o dormitório.

Eu estava com medo. Mas não era medo de cometer um pecado. Era medo de não conseguir vencer o Diretor. Era medo de que só dele me olhar jorraria sangue de todo meu corpo, eu desistiria e desmaiaria.

Até que eu conseguisse vencer esse medo, eu precisei de muitos anos e meses.

Planejava várias vezes e perdia a coragem. Mas hoje eu venci esse medo.

Há vários motivos para eu ter tomado coragem. Um deles, do ponto de vista de   um estranho, não tem importância nenhuma. Esse dia era meu aniversário. Por isso eu queria que nesse dia eu nascesse novamente.

O orfanato que eu havia visitado há três anos e meio parecia incrivelmente pequeno e acabado. O reboco das paredes estava terrivelmente se desfazendo, terra estava saindo do pavimento do chão e o poço para extrair água estava seco. Parecia um esqueleto castigado pelo tempo apenas esperando se esvair completamente.

Mesmo assim enquanto eu andava pelo terreno, as crostas de memórias iam descascando e soltando sangue contra a minha vontade.

O chão em que eu apanhei até meus dentes quebrarem. A sala de punição em que minhas unhas saíram de tanto eu arranhar as paredes. A dispensa em que eu entrava várias vezes de barriga vazia escondido e depois não conseguia sair com medo da punição. Enquanto eu não queimasse isso tudo, a criança dentro das minhas lembranças não pararia de chorar. Qualquer um entenderia isso facilmente.

Hoje é o meu aniversário. Hoje, eu vou queimar essa prisão e nascer novamente.

Enquanto eu corria pelo orfanato recordando detalhadamente as minhas lembranças, eu cheguei no castelo do rei dos demônios que controla esse lugar... A sala do diretor. Eu arrombei a porta. Imediatamente, meu coração virou gelo.

O Diretor olhou diretamente para mim. Com os braços cruzados, estava em pé no fundo da sala.

— Está atrasado, número setenta e quatro. — ele disse.

Era uma emboscada. Não havia nem medo nem surpresa no rosto do Diretor, apenas o mesmo olhar de sempre... Apenas aquele olhar gélido que subjugava os alunos.

— Não me chame de número setenta e quatro. — Eu falei quase espremendo as palavras.

Como se vendo através de mim.

— Chegou a tempo da sua formatura. — disse.

— Formatura?

Nesse instante, a porta atrás de mim se fechou. Uma robusta porta de ferro se fechou automaticamente e fez um tinido como de chave trancando.

Naquela hora eu não sabia, mas a porta da sala do Diretor fechava automaticamente como se estivesse com chave. Eu consegui entrar porque o Diretor havia aberto ela.

Nessa hora, um alarme tocou. Era o alarme para saber que era hora da limpeza depois do almoço. Meu corpo logo quis começar a limpar mas eu resisti com minha  força de vontade.

— Está com saudades? — O Diretor me perguntou. — É o som da disciplina. Um som para que vocês soubessem que era hora da limpeza.

— De fato. — Eu o encarei. — Não tem relógio nesse orfanato. Por isso nós não tínhamos outra opção a não ser agir conforme esse alarme. Era um som que nos prendia. E quem nos prendia era a pessoa com o único relógio daqui. Você.

Eu olhei para o relógio da parede. Era um relógio de pêndulo cor de âmbar. Como sempre, o ponteiro dos segundos se movia como uma entidade.

— “A pessoa ser dona de um relógio é prova que ela possui arbítrio.” Eu decorei  as palavras que o Diretor repetiu centenas de vezes. “Por isso, vocês que vivem para ser guiados e educados não precisam de um relógio.” — Eu decorei o resto. — Assim sendo, você proibiu de termos um relógio. Uma vez o aluno mais velho tentou comprar um com o dinheiro que ele mesmo juntou. Ele foi expulso depois de ser exposto e quase morto.

— Isso mesmo. Mas parece que você não cometeu essa tolice, número setenta e quatro. Você foi bem obediente. — Dizendo isso, o Diretor pegou uma caixa de madeira que estava em cima da mesa.

Era uma caixa branca que eu não reconhecia. Era um pouco maior do que a palma   da mão e não havia decoração.

— Que caixa é essa? — Minha voz estavatremendo.

— É claro que... — Ele disse com uma voz tranquila. — é algo necessário para você  se graduar daqui.

Emboscada. Caixa. Um mau pressentimento se expandia até minha garganta.

— Me graduar? Graduar do quê? Que caixa é essa?! O que pretende fazer comigo com o que tem ai dentro?!

O Diretor foi se aproximando com a caixa na mão. Um suor frio escorria aos montes por todo meu corpo.

Deve ser uma arma ali dentro. Mas meu corpo não se move.

Fique calmo. Eu dizia sem parar para mim mesmo. Se formos lutar corpo a corpo nessa distância, eu ganho. Mesmo que tenha uma arma dentro da caixa, a bala de uma pistola não vai me matar. Mas ele sabia que eu viria. E também sabia do meu   poder do tigre. Então...

Será uma bomba?

Se uma bomba explodir nessa sala fechada, a explosão vai repercutir e intensificar a letalidade. Se for um explosivo de alta eficiência, minha cabeça vai ser estraçalhada antes mesmo que eu consiga me regenerar com o poder do Tigre.

Eu me concentrei e ativei a audição do Tigre. Então, congelei. Com a minha audição amplificada inúmeras vezes eu consegui ouvir o barulho de algo contando o tempo dentro da caixa... Um tic, tac, tic, tac...

Droga.

— Você lembra o que eu te ensinei? — O Diretor veio se aproximando. — Quem não consegue proteger ninguém não merece viver.

— Pare. — Eu disse com a voz tremendo. — Não se aproxime. Parado diante de mim, ele abriu as mãos. Um grande dominador. Minha perna deu um passo para trás sozinha.

É o destino. O destino de não conseguir ir contra essa pessoa.

Não, não, não, não.

Vá contra, vá contra, vá contra, vá contra, vá contra, Atsushi. Senão vai morrer.

As extremidades do meu corpo tremiam. Os batimentos do meu coração estavam acelerados.

Estou com medo. Uma dominância absoluta gravada em minha alma.

— Com isso, meus ensinamentos estarão completos.

— Pare!

Vá contra, vá contra, vá contra, vá contra. Vá contra! Todas as células do meu corpo gritavam.

—AAAHHHH!

Um som molhado ecoou. Meu braço atravessou o peito do Diretor saindo por suas costas.

O Diretor sussurrou alguma coisa.

O conteúdo entrou em meus ouvidos, mas não chegou até a minha cabeça. Dentro dela, junto a um alarme completamente vermelho, as palavras “vá contra” ainda ecoavam.

— UAAAAAAAHHH!

Eu empurrei o Diretor e subi em cima do seu corpo caído no chão.

Soquei, soquei, soquei. Uma enorme quantidade de sangue jorrou para o chão. Mesmo os ossos quebrados da cabeça transmitindo uma sensação ruim para meu punho, eu não o parava.

Até que não tinha mais o que eu socar e apenas sentindo a dureza do chão em meus punhos eu parei eles pela primeira vez.

Nessa hora, a caixa de madeira caída no chão apareceu no canto do meu olho. A tampa havia saído e o conteúdo estava jogado no chão. Eu vi o que era. Era um relógio de pulso. Do lado estava um pedaço de papel com o seguinte escrito:

Feliz Aniversário.

O quê? O que é isso? Por que essas palavras estão escritas? Por que tem um relógio  de pulso aqui?

“A pessoa ser dona de um relógio é prova que ela possui arbítrio.”

Era um relógio novo. Na situação que esse orfanato estava, comprar um relógio caro assim com certeza deve ter pesado.

“É algo necessário para você se graduar daqui.”

Nessa hora, finalmente as últimas palavras proferidas pelo Diretor chegaram a minha cabeça.

— Isso mesmo. Tudo bem assim.

Naquela hora, ele havia tentado estender os braços para mim. Como quando... Um pai abraça o filho.

A realidade era clara.

Mas não importava o quão rápido a realidade penetrasse o meu peito, minha cabeça não queria entender nada.

O Diretor estava morto no chão. Ele não vai dizer nada. Nunca mais.

Por algum motivo nesse momento, eu percebi abruptamente. Mesmo que eu cresça mais forte ainda, não importa o quanto eu me gabe, ele nunca mais poderá falar “Bom trabalho” ou “Muito bem”.

Havia a possibilidade. Desde que ele estivesse vivo, uma hora poderia dizer. Mas ele não vai falar mais nada. Nunca mais terei a chance de ouvir a frase que eu mais queria. Porque eu o matei.

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAA!

Quando eu paro para pensar, aconteceram várias coisas estranhas.

Eu nunca soube que era o Tigre Devorador de Homens. O Diretor e todos do orfanato esconderam sobre a verdadeira identidade do Tigre de mim. O tigre branco feroz que invadiu o orfanato e deixou pessoas feridas. E não foram poucas vezes que    o tigre saiu em destruição. Então com certeza os professores do orfanato perceberam quem era. Mas ninguém nunca me contou.

Depois quando eu fui investigar eu descobri o motivo. Um pesquisador que veio em segredo para o orfanato para saber sobre o Tigre foi morto. Um investigador de cabelos brancos como a névoa e olhos vermelhos como uma maçã. Se sua morte fosse revelada publicamente, a polícia militar teria vindo aqui e apontado o tigre feroz, ou  seja, eu, como culpado pelo desastre. E sem dúvidas eu teria sido enforcado.

O Diretor sumiu com esse caso também. Jogou o corpo do pesquisador no rio e queimou seus pertences. Então fez com que todo mundo concordasse que nunca nenhum pesquisador veio até o orfanato.

E para se certificar que eu não tivesse nenhuma lembrança de quando estava transformado, me manteve trancado na cela da reflexão no subsolo.

Depois disso, toda vez que o Tigre se descontrolava, o Diretor lidava com ele. Para que não houvesse vítimas e eu não machucasse ninguém, me manteve isolado no subsolo. Por isso eu sempre continuei a achar que o Tigre era uma besta feroz que   vinha de longe.

O Diretor me conhecia mais do que ninguém. Sabia que se eu descobrisse que eu   era o Tigre, eu não iria suportar. E sabia também que teria que continuar a me proteger me mantendo preso até que eu tivesse idade para controlar e aceitar o meu próprio tigre.

— Isso seu... É culpa. — Akutagawa preso a parede por um dos ombros disse com uma voz chiada.

— Ahh... — Os olhos de Atsushi perderam o foco. — Uaaa... Aaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhh!

Gritando, Atsushi socava o corpo do Akutagawa que voou como uma parábola e   caiu no chão se contorcendo em uma forma estranha. Depois, saiu rolando aos pulos até uma janela num canto do prédio.

Atsushi se aproximou do corpo do Akutagawa virado para cima. Montou em cima dele e começou a acertá-lo com os dois punhos como uma chuva de estrelas cadentes.

Nas costas do Akutagawa, o chão se desfazia em destroços. Seu sobretudo não conseguia mais se mover para defendê-lo.

Tendo ultrapassado os limites humanos, era uma destruição esmagadora como meteoritos caindo em série.

— Errado, errado, errado, errado, errado! — Atsushi gritava enquanto socava. — Está errado! Eu só não sabia! Não tinha outro jeito!

— É a desculpa usual dos fracos. — Akutagawa murmurou de repente. Um som abafado.

O braço esquerdo do Atsushi foi cortado desde o cotovelo caindo no chão.

— Hã?

Como se revivendo, as lâminas do Akutagawa se contorciam ao seu redor. Logo depois, elas perfuraram os ombros, a barriga, a garganta e as coxas do Atsushi e se estendendo como uma lança, fincaram ele na parede de trás.

— Kah!

Akutagawa levantou devagar como um fantasma. Estava sangrando por todo o seu corpo. Mesmo assim, agarrou o Atsushi pelas pernas.

— Co... mo... — Atsushi disse com a voz misturada de sangue. — Depois de todo aquele ataque...

— Logo antes de ser socado, eu cortei embaixo da minha pele com a minha Habilidade. E então criei um espaço entre ela e meus músculos protegendo meus os protegendo com meus ossos dos ataques. — Akutagawa disse se limpando. — A minha carta na manga era uma última defesa. Só que certamente não esperava usá-la tão cedo.

O amontoado de lâminas que perfuravam o Atsushi giravam e se expandiam. A dor intensa de ter a carne roçada fez ele gritar.

— Usuário que abastece o medo e a expiação, — Akutagawa falou enquanto andava em direção ao Atsushi. — não é como se eu não entendesse o seu medo. A pior coisa que existe nesse mundo é o remorso. Viver pensando “Eu deveria ter feito tal coisa naquele momento” é um inferno. — A expressão do Atsushi tremia de medo ao ouvir essas palavras. Akutagawa foi se aproximando. Em seus olhos havia a luz de uma navalha afiada. — Mas você nesse momento é um obstáculo que me impede de encontrar minha irmã. Eu nunca mais vou me arrepender. Para isso, vou me livrar de você e seguir em frente.

As lâminas se tornaram uma enorme guilhotina e se elevaram diante dos olhos do Atsushi.

Sala de monitoramento central no trigésimo quinto andar do prédio da máfia. Abrindo a porta do quarto escuro, Gin parou a respiração e entrou.

Ela andava pesadamente e apoiando a mão na parede próxima ao painel de controle, perdeu a força nos joelhos e caiu sentada no chão.

— Irmão... — Gin apoiou a cabeça na parede, e como alguém deixada para trás em uma montanha coberta de neve abraçou seus joelhos se tornando ainda menor.

A sala estava escura e não havia ninguém. Em uma das paredes havia um conjunto de monitores exibindo imagens de monitoramento do interior do prédio jogando uma  luz sem temperatura na sala.

Um dos monitores mostrava o Akutawaga com o Atsushi. Akutagawa que havia prendido o outro na parede com sua habilidade, estava prestes a roubar sua vida.

— Irmão, chega... — Com a voz rouca, Gin falou para o irmão no monitor. — Se você matar mais do que isso, não vai poder voltar vivo...

Gin estava tremendo. Mas não era por causa do frio. Ela levantou cambaleando e    se virou para o painel de controle.

— Não importa quem você seja. — Gin girou fragilmente a chave de controle e apertou os botões numerados que apareceram. — Eu só quero que você viva.

E então colocou um comunicador que estava em cima da mesa no ouvido.

— Pare, irmão. — Gin disse para o comunicador. — Vá embora. — Pare, irmão. — A voz da Gin soou no lugar onde o Akutagawa e Atsushi estavam.

— Vá embora.

— Gin. — Akutagawa se virou procurando o lugar de onde estava vindo a voz. — Gin, onde você está?

— Desista de mim e volte. — A voz dela estava forçadamente calma rejeitando qualquer emoção. — Você não entende? Eu podia ter encontrado com você a qualquer momento. Eu não fui sequestrada quatro anos atrás, eu aceitei por vontade própria o convite do Chefe... daquela pessoa solitária. Eu não apareci do seu lado porque você é alguém que não deve ter ninguém precioso.

— O quê? — Confuso, Akutagawa olhou para onde achava que estava vindo a voz. — Como assim?

— A sua destruição não é a mesma da Máfia. A destruição da Máfia tem intenção e lógica. Mas para você não. A sua violência envolve quem você ama e destrói tudo ao seu redor. Inclusive você. Porque você, irmão...

As palavras de Gin pararam por um instante. Como se estivessem tomando coragem, soaram novamente.

— Porque você, irmão, nasceu no lado do mal.

Akutagawa caiu apoiando as duas mãos no chãos. Em seu resto havia a expressão   de uma criança sem saber o que fazer após se perder dos pais.

— Eu sou mal? Por isso você não pode voltar? — Akutagawa disse perplexo. — Eu não entendo, Gin. Não estou entendendo nada. Eu não consigo entender o que você está dizendo, Gin.

A voz não respondeu.

— Gin, responda! O que falta em mim?! O que devo fazer para te ter de volta?

A voz não respondeu novamente. Porque a transmissão já havia sido interrompida.

— Eu não sei, Gin! Por favor, me responda, Gin!

De repente, a parede foi destruída e pedaços saíram voando. Antes que Akutagawa pudesse se virar, o Rashoumon foi despedaçado. Não era o Atsushi que estava ali. Não era nem humano.

— O que?! — Akutagawa disse de olhos arregalados. — Um tigre branco?!

Um corpo gigante equivalente a um veículo de pequeno porte saiu espancando o corpo do Akutagawa.

O humano e o animal sobrepostos se chocaram contra o vidro da janela a estilhaçando.

Não havia nada a partir dali além de ar. Akutagawa e o tigre branco despencaram do prédio da Máfia.

— Há quanto tempo, você disse, não foi? — Eu perguntei enquanto andava na direção do homem. — Você já havia me encontrado?

O homem que estava no bar demonstrou um sorriso que parecia ter desde que nasceu.

— Não, é a primeira vez que te vejo. — Os gelos do copo se bateram. — É a primeira vez que venho nesse bar também, a primeira vez que bebo aqui e a primeira vez que te encontro, Odasaku.

Eu olhei novamente o interior do bar.

Tanto as paredes cobertas pela fumaça do cigarro, as pilastras escurecidas pelo tempo, as prateleiras de bebidas, a iluminação, todos tinham sido igualmente batizados pelo longo, longo tempo.

O interior era estreito, se houvesse clientes, todos se esbarrariam para passar. Todos os elementos que compunham o interior eram modestos e íntimos.Uma dimensão criada para qualquer um poder passar um tempo em segredo.

O jazz que tocava baixo cantava sobre uma triste despedida. Não era um mau lugar. Mas era difícil dizer que era adequado para encontrar um traidor da máfia.

— Eu queria te perguntar uma coisa. — Perguntei sobre algo que me incomodava.

— Esse Odasaku sou eu?

— Isso mesmo. — O jovem riu sem entender. — Você nunca foi chamado assim?

— Não. — Eu respondi sinceramente.

A maioria das pessoas me chama de Oda. Eu nunca me esqueceria se me chamassem assim num lugar estranho desses.

O homem desviou o olhar da minha direção e riu de cabeça baixa. Era um riso não para mim, mas para ele mesmo. Para mim, pareceu que ele não sabia qual outra emoção demonstrar por isso apenas riu. Que homem estranho.

— De qualquer forma, sente, Odasaku. — Ele apontou para o banco ao seu lado. — O que vai beber?

— Gimlet. Sem as amargas.

Então eu sentei num banco depois do que ele apontou só por precaução.

Após olhar para o banco vazio ao seu lado como se estivesse pensando em algo, o homem entrou atrás do balcão e preparou a bebida. Então, se apresentou como Dazai.

O jovem chamado Dazai voltou ao seu lugar e levantando seu copo propôs um brinde. Mas eu não respondi a ele nem bebi da minha bebida. Porque eu ainda não tinha me certificado se poderia confiar nele.

Dazai ficou bebendo calado por um tempo. Apenas o barulho dos gelos rodando dentro do copo ecoava como se substituindo uma fala.

— Odasaku, eu tenho uma história interessante, quer ouvir? — O jovem disse de repente como se não aguentasse mais se segurar.

— Qual?

— É sobre quando eu achei uma munição não detonada.

Eu olhei para o rosto do jovem. Ele estava sério. Ele olhava diretamente para mim com um olhar intenso.

— O meu desejo se realizou. Sem pensar, eu peguei a arma nos braços e dancei de alegria! Eu achei que tinha que te contar isso de qualquer jeito.

Eu disse — Ah é? — Até pra mim foi uma resposta idiota. Mas eu não conseguia imaginar aonde ele queria chegar e o que ele queria conseguir com essa fala.

— Tem outra coisa, como eu queria te fazer comer tofu duro, eu completei os melhoramentos daquele. Eu melhorei o sabor e a consistência em três vezes! Quando eu dei para um subordinado provar, ele quebrou os dentes. É melhor você tomar cuidado ao comer também!

— Está tão duro assim? — Eu perguntei. — Então como eu devo comê-lo?

— Para falar a verdade eu também não sei! — O jovem riu ao falar isso. Parecia feliz do fundo do coração.

Ele passava uma impressão completamente diferente de antes. Ele realmente parecia ser jovem. Ele ria como um jovem que se perdeu e finalmente achou sua casa.

— É mesmo, eu já estava quase me esquecendo de algo importante. Odasaku, eu soube que você ganhou um prêmio para escritores iniciantes?

Isso me pegou de surpresa.

— Da onde você conseguiu essa informação?

— Não há nada que eu não consiga saber. — O jovem demonstrou um sorriso misterioso.

Após coçar minha cabeça, eu disse:

— Está um pouco enganado. Meu rabiscos mal escritos como treino para um romance foram parar por coincidência nos olhos de uma pessoa de uma editora que perguntou se eu não queria transformar eles em um romance de verdade. Mas para ser sincero eu não tenho confiança.

— Por quê?

— Eu não tenho só uma história que quero escrever. Estou tentando escolher. — Eu bati na minha cabeça com meu dedo. — Mas eu não tenho os instrumentos e meios necessários para mostrá-los para o mundo. Eu me sinto como um alpinista perdido no topo de uma montanha sagrada com uma pequena machadinha de gelo.

— Você já tem as ferramentas. — O jovem disse com um olhar transparente. — Se você não escrever, ninguém mais nesse mundo escreverá. Eu te garanto isso. Tenha confiança.

— Obrigado. Mas mesmo que alguém que eu acabei de conhecer me garanta, não é convincente o suficiente.

Eu apenas falei honestamente o que me veio a cabeça. O copo do jovem trincou. Ele ficou segurando o copo sem saber o que fazer. Tanto a mão que segurava o copo, como sua expressão e até sua respiração estavam paradas como se estivessem congeladas. Por um instante, eu tive uma impressão impossível. Senti que o jovem diante dos meus olhos estava prestes a chorar. Mas não tinha como. Não passava de uma impressão incoerente.

E exatamente como pensei, logo o jovem voltou a sua expressão de antes e assentiu dizendo — Tem razão. Eu não sei no que estava pensando. Esqueça, por favor.

A juventude de momentos atrás desapareceu do rosto do jovem. Depois de pensar um pouco eu fui direto ao ponto.

— O meu subordinado está em perigo. — Eu disse. — Acho que já deve ter ouvido o geral, mas estão acontecendo alguns problemas na sede da Máfia. Se ele conseguir sair com os quatro membros de lá sem morrer já será um milagre. Mas mesmo que volte vivo, será perseguido pela Máfia para sempre. Para evitar isso, estou aqui. Eu espero que consiga fazer alguma troca proveitosa com você.

O jovem ficou me olhando como se tivesse sido mandado de um futuro daqui mil anos. Então disse distraidamente numa voz baixa:

— Parece que o Akutagawa-kun encontrou um bom senpai.

— O quê?

— Não precisa se preocupar com ele. Eu te prometo que de amanhã em diante ele não será procurado nem ferido pela Máfia. Sem exceções ou ressalvas, uma completa tranquilidade. Bom, eu já pretendia que fosse assim desde o começo. Isso se ele sair vivo do prédio.

Eu fiquei olhando o jovem sem me mexer. Ele disse que pretendia que fosse assim desde o começo. Ao ouvir isso, me ocorreu um certo pensamento. Era um pensamento bem maluco. Mas fazia todo o sentido. Então eu resolvi fazer uma pergunta persuasiva.

— Para que você atraiu o Akutagawa-kun ao prédio da máfia, Dazai?

Uma leve fenda apareceu na expressão dele. Por um breve instante, uma expressão de surpresa como se tivesse seu coração perfurado apareceu no rosto do jovem. Mas   foi só por um instante. Logo o jovem voltou a sorrir como um eremita de dois mil anos.

— Você percebeu. — O jovem disse.

— Foi por acaso. — Eu balancei minha cabeça. — Ou melhor, eu tenho um fundamento. Você sabia o nome do Akutagawa. Eu ainda não tinha dito que a troca envolvia ele. E você disse que desde o começo não pretendia se vingar dele. Então você sabia de antemão que ele invadiria o prédio da Máfia. Só tem uma pessoa que esperaria isso. O chefe que enviou a carta com a foto para a Agência de Detetives.

Eu coloquei meu copo em cima da mesa. E do lado dele coloquei algo que tirei do meu bolso. Dazai voltou sua atenção para a coisa.

— ... O que é isso?

Era uma pistola. Estava apontada para ele.

— É um suplemento para indicar o fim da negociação. — Eu disse calmamente. — Eu ainda estaria apreensivo mesmo com uma artilharia, mas, infelizmente, só tenho essa portátil.

Era uma arma antiga, porém bem cuidada. Era minha favorita de longa data ao ponto de eu poder chamá-la de parceira. Com essa arma eu conseguia acertar o alvo mesmo de olhos fechados.

O jovem parecia não ter gostado da arma. Ele olhou para a pistola como que reprimindo algo.

— Abaixe a arma.

— Não posso atender a esse pedido. Está fora do meu alcance. — Com o dedo levemente no gatilho, eu disse. — Porque o meu oponente é a personificação da noite dessa cidade, o chefe da Máfia do Porto. E porque esse encontro pode muito bem ser  uma armadilha.

— Eu não me tornei o chefe porque quis. — O olhar do jovem me penetrou. — É verdade.

De tão sério era seu olhar, eu quase acreditei em suas palavras por reflexo. Mas se tratando do lendário chefe da Máfia do Porto, para ele, enganar um detetive sem valor como eu era mais fácil do que respirar. Eu segurei a arma com força novamente.

— Parece que para salvar o Akutagawa terei que pensar em outra solução. — Eu disse. — Isto é, se eu sair vivo desse bar.

— Eu nunca pensei em armar uma armadilha para você. — O jovem disse.

Essas palavras também pareceram verdadeiras. Que coisa, desse jeito não vai dar  para depender do meu discernimento. Parece que é melhor eu fechar os olhos e atirar   se eu quiser viver.

— Odasaku. Por que eu atrai o Akutagawa-kun para a máfia, você perguntou, não foi? — Ele disse. — Foi para proteger esse mundo.

— Esse mundo?

— Esse é apenas um de infinitos mundos. — Assim dizendo, olhou para mim com olhos apelativos. — E em outro... No meu mundo original, eu e vocês éramos amigos. Nós vínhamos beber nesse bar e ficávamos conversando histórias sem importância.

Eu pensei sobre essa possibilidade. — Mesmo que isso seja verdade, — Eu disse — isso não apaga o que você fez com o Akutagawa desse mundo.

O jovem pareceu querer dizer alguma coisa, mas sem conseguir, desistiu e apenas falou:

— Odasaku, ouça. Eu...

— Não me chame de Odasaku. — Uma voz inusualmente dura saiu de mim. — Não me agrada um inimigo me chamar assim.

O jovem pareceu não conseguir respirar direito. Seu rosto se contorceu e seu olhar desenhou uma forma sem sentido no ar. Abriu e fechou a boca. Estava lutando com algo que não dava para ver.

 

 

— Foi difícil. — O jovem disse timidamente. — Foi realmente difícil. — Fingindo e lutando numa organização em que você não estava, sucedendo o Mori-san sem vontade nenhuma, tornando todos em meus inimigos, eu expandi a organização. Tudo para que esse mundo...

Suspirando como se estivesse com dificuldade para respirar, as palavras do Dazai desapareceram no ar. Os restos de suas emoções ficaram a pairar.

Por alguns momentos, nenhum de nós dois falou nada até que o silêncio acabou.

A música tocava uma gentil despedida junto a uma triste melodia no piano.

— Eu vim aqui te encontrar hoje para te dizer um último adeus. — Depois de muito tempo, o jovem disse. — Uma vida em que a pessoa a qual eu deveria dizer adeus está viva é uma boa vida. Mesmo se esse adeus estiver machucando meu coração, eu não tenho do que reclamar. Estou errado?

Depois de ficar pensando um tempo eu concordei. Dazai demonstrando um pouco de alívio se levantou.

— Eu já vou. — Dazai olhou silenciosamente para a arma e depois para mim. — Se quiser atirar, atire. Mas se por acaso me permitir uma extravagância eu tenho um pedido a fazer. Não use uma arma aqui nesse bar. Não me importo se você atirar em qualquer outro lugar.

Eu olhei para Dazai. Por algum motivo que eu mesmo não sabia dizer, escutei ao seu pedido. Eu guardei minha arma de volta no bolso.

— Obrigado. — Sorrindo um pouco, Dazai virou as costas e começou a andar. — Adeus, Odasaku.

Sem se virar uma única vez, Dazai subiu as escadas até que desapareceu da minha visão. O barulho da porta fechando ecoou silenciosamente no interior do bar.

Akutagawa e o Tigre caíram no ar.

— Tch!

Akutagawa abriu o Rashoumon. Estavam caindo do trigésimo andar. Normalmente, não importa o quão forte fosse, ninguém sobreviveria de uma queda dessas.

O único jeito de segurar o peso do seu corpo foi fincando suas lâminas na fachada   do prédio. Mas como ele tinha sido arremessado consideravelmente longe, havia alguns metros entre ele e a parede. Akutagawa abriu todas as suas lâminas na direção   da parede. As pontas que voavam tentaram alcançar a fachada. Só mais um pouco.

Ali, o Tigre que havia chutado a fachada se jogou com tudo para cima dele.

— Gah!

Akutagawa vomitou sangue. Todos os seus ossos rangeram. Ao receber o peso do Tigre Branco que era dez vezes maior que o seu, o corpo do Akutagawa se afastou   mais ainda da fachada. O prédio já estava longe demais.

Tanto para cima como para baixo, para a esquerda ou direita, não importava para  onde olhasse, não havia nada em que se segurar. Estava em completo ar.

Era pôr do sol. Akutagawa caia pelo céu entardecido que parecia queimar.

O Rashoumon era uma Habilidade poderosa, mas fora conseguir mudar a forma de sua roupa, o alcance que conseguia criar era limitado. Mesmo que investisse tudo   em sua Habilidade e expandisse a sua roupa não sabia se alcançaria. Porém, só restava tentar.

Ele tentou. Mas o Tigre não deixou. Suas garras rasgaram o ombro de cima a baixo  do Akutagawa.

— GAAAAAAAAHHH!

Uma mandíbula imensa mordeu seu ombro. Sangue espirrou. Dentro da mandíbula, o barulho de ossos quebrando ressoava.

Fraturas e vasos sanguíneos sendo rompidos. Se o Tigre chacoalhasse sua cabeça com pouca força que fosse, com certeza o ombro seria arrancado facilmente. Akutagawa deslizou as fábricas de sua habilidade para debaixo da pele do ombro fazendo uma armadura temporária.

A força transcendental da mandíbula do tigre e a Habilidade do Akutagawa de penetrar até mesmo o espaço competiam entre si formando um atrito, Enquanto isso, os dois continuavam a cair livremente. Já estavam no vigésimo andar.

— Droga! — Akutagawa gritou.

Mesmo que colidissem com tudo no chão, o Tigre... O Atsushi provavelmente sobreviveria. Por causa de seu corpo extremamente forte e sua regeneração anormal.  Mas ele sem dúvidas iria morrer.

Se ele usasse a Ruptura Espacial poderia impedir o impacto com o chão. Mas se parasse de repente seu corpo que estava caindo a uma grande velocidade antes de bater, a realidade não mudaria. Se ele mudasse essa grande velocidade por um instante, seu cérebro e órgãos não aguentariam a pressão e seriam esmagados. É a mesma lógica de colocar doces ocidentais numa caixa espessa. Se a caixa cair no chão vai se destruir do mesmo jeito.

Então ele deveria estender seus tecidos até a fachada antes disso acontecer? Também era impossível. No momento que desfizesse sua defesa, seu ombro seria arrancado. Se isso acontecesse, morreria antes de chegar ao chão.

Não havia outra conclusão a não ser a morte.

— Até parece! — Akutagawa gritou com a voz ensanguentada. — Até parece, até parece, até parece! Eu não vou morrer! Eu vou viver e trazer minha irmã...

“Eu não fui te procurar porque você é alguém que não pode ter ninguém precioso.” A voz do Akutagawa parou.

— Eu vou...

“Você nunca será uma pessoa boa. Eu consigo dizer só de olhar para você.”

— Está errado.

“Mesmo que você faça ameaças usando uma menina como refém, apenas vendo   o que quer, uma hora o seu objetivo vai se transformar num desejo por destruição.  Esse é você.”

— Está errado! Está errado, está errado, está errado!

Vingança? Para isso não se importa de morrer? Você não consegue imaginar o que sua irmã vai passar nessa cidade depois que você morrer?”

— Eu...

“Porque você irmão, é uma pessoa que nasceu no lado ruim.”

Da boca do Akutagawa escapou um murmúrio com dificuldade:

— Eu...

Ahh.

Eu finalmente entendi.

Era isso o que a Gin estava querendo dizer.

Por isso ela não podia voltar para o meu lado.

A tensão sumiu do rosto do Akutagawa. Ele soltou seus dedos dos pelos do Tigre. Um humano e um animal continuavam a cair. Em direção ao inferno.

O barulho do vento cortou o silêncio. Uma viga de construção passou voando bem do lado do Akutagawa e acertou o prédio da Máfia.

— O que...

Akutagawa olhou surpreso para a viga. Era uma viga normal. Mas se não estava enganado, essa viga tinha vindo oposta ao prédio, da direção da cidade. Mas não havia nada naquela direção da qual ela pudesse ter vindo voando...

Não.

Passando entre alguns prédios, havia uma loja de departamentos em construção.

No andar do meio, havia alguém segurando uma viga debaixo do braço.

— Por favor! Pegue! Isso!

Quem gritava bem alto era um membro da Agência de Detetives, Kenji Miyazawa.

Segurando a viga, ele a posicionou como num arremesso de vara em cima de seu ombro. E então começou a correr.

— Impossível. — Akutagawa arregalou os olhos. — Daquela distância?

— Vaaaaaaaaai!

Kenji arremessou a viga de ferro.

Uma viga mais ou menos duas vezes maior do que um adulto veio voando do outro lado rasgando o céu. A viga que veio como uma bola de canhão passou bem embaixo dos pés do Akutagawa e penetrou a parede. Destruindo a fachada, o prédio todo tremeu.

Dessa maneira, conseguiria alcançar.

Akutagawa, que antes estava tonto, se concentrou e estendeu seus tecidos para a viga. Mobilizando todos, deu um jeito de alcançar a ponta. Depois, curvando os tecidos como uma garra conseguiu se fixar. A força lateral do Akutagawa aumentou. Retraindo e estendendo suas lâminas, se aproximou da fachada.

O Tigre rugiu. Para não deixar o Akutagawa fugir, dessa vez abriu sua boca em direção à cabeça.

— Rashoumon Ibara!

O tecido que estava sendo usado para defendê—lo se transformou em inúmeras agulhas dentro da boca do tigre. Crescendo numa explosão, perfuraram seu rosto através dela. Com ela toda perfurada, o Tigre abriu a boca gritando.

Akutagawa agarrado a viga se moveu como um pêndulo e aterrissou de lado na fachada. Usando seus tecidos amorteceu o impacto e fixou seu corpo prendendo as lâminas na parede.

Tendo fugido por um fio de cabelo de uma situação mortal, Akutagawa respirou brevemente.

Se o Tigre caísse, era um tempo ganhado. Seria o tempo necessário para pegar sua irmã e fugir do prédio.

Akutagawa se virou para verificar o Tigre. Ele não estava lá. Em nenhum canto do céu.

— Como-

No momento seguinte, seu corpo foi puxado fortemente na direção da qual tinha vindo. Quando ele se virou enquanto tentava se segurar com sua roupa presa a parede, uma figura humana estava agarrada a um de seus tecidos.

— Eu não vou deixar você fugir. — Era o Atsushi. Ele tinha voltado a sua forma humana e estava se segurando no ataque do Akutagawa.

— Eu não vou deixar você fugir, Akutagawa. Não você.

O tecido foi puxado com força. Akutagawa só podia tentar aguentar o peso do Atsushi o puxando. Enquanto também fazia um movimento como um pêndulo, Atsushi chegou até a fachada. Transformando apenas os dedos das mãos e dos pés nas garras do Tigre, ele os fincou na parede se fixando. Na fachada da sede da Máfia, os dois usuários se confrontavam. Atsushi com os quatro membros fixados na fachada como uma besta. Akutagawa inclinado em pé com as lâminas de seu sobretudo perfurando a parede.

— Eu não vou... te deixar viver... mais um segundo. — Atsushi encarou o Akutagawa. Em seus olhos havia medo. — Porque eu preciso manter minha promessa com o Diretor.

Seu braço que havia sido arrancado em algum momento se regenerou e estava sem nenhum arranhão como antes. A habilidade de regeneração do  Tigre acarretava numa super-regeneração.

— Mesmo depois de ter sido perfurado daquele jeito, consegue voltar sem nenhum arranhão? — Enquanto pressionava o ombro, Akutagawa respirava forte. — Esse é o Shinigami Branco da Máfia do Porto...

Ele fez um tratamento de emergência onde o Tigre havia lhe mordido no ombro.

Mas mesmo com o sangue voltando a circular ali não tinha como o osso voltar a ser como era. O corpo do Akutagawa não passava de um corpo de um humano comum fraco. Se ele continuasse a lutar com o Atsushi, que conseguia se regenerar infinitamente, acabaria morrendo por perda de sangue.

“Ele é forte.”

A força do Atsushi tinha sustento. Sua Habilidade poderosa, os quatro anos e meio de experiência acumulada e acima e tudo, o motivo para lutar. Era como uma voz do passado que o chamava como uma maldição. O arrependimento chamado medicamento cardiotônico.

Isso havia nele?

Ele queria salvar sua irmã. Assim deveria ser. Esse juramento deveria conseguir destruir qualquer fortificação apenas com sua justiça e força, não importa o quão forte ela fosse.

Mas...

— Tigre, você é meu inimigo. Eu quero te matar. — Akutagawa disse com uma expressão de dor. — Mas se essa minha natureza de apenas conseguir pensar em matar o inimigo diante de meus olhos for o mal que minha irmão falou... O que eu devo fazer? O que eu devo fazer comigo mesmo?

“Não persiga a besta dentro de você.” O Oda-senpai havia dito.

Ele sabia que dentro de dele morava uma enorme besta. Uma cruel besta que nasceu naquele dia quatro anos e meio atrás quando o Cão sem Coração ganhou sua primeira emoção. Ela fez ele abandonar sua irmã o convidando para a morte e a destruir tudo. Por isso o Homem de Roupas Pretas não o convidou.

— UOOOOOOOOAAAAAAAAAAAAAA! — Akutagawa berrou correndo para frente.

Como se o respondesse, Atsushi chutou a fachada.

Concentrando as lâminas embaixo dos pés, investiu correndo perpendicularmente pela parede colidindo no centro com o Atsushi que vinha atacando em forma de besta.

A roupa do Akutagawa se transformou.

— Rashoumon Ginroukou!

Do cotovelo para a frente saiu uma enorme cabeça de lobo sendo liberada junto  com um soco. Imediatamente, Atsushi, colocando os dois braços na frente para se defender, travou a boca. As presas prateadas perfuraram seus braços.

— Ugh! — Atsushi soltou um gemido de dor.

O lobo prateado foi se tornando cada vez maior em movimentos vermiculados.

Para o Akutagawa que morreria de hemorragia se continuasse a lutar só havia um jeito de vencer. Pular com tudo para perto do seu adversário que tinha vantagem em luta corpo a corpo, investir com toda sua força e aguentar a luta decisiva. Só havia esse jeito.

— Ughhhh!

— Gihhhh!

Tendo usado sua Habilidade ao limite, o estancamento afrouxou e Akutagawa sangrou pelo corpo todo. Mesmo assim os seus ataques não enfraqueciam.

O lobo uivou.

— O que-

A boca do lobo estava se abrindo. Atsushi a estava tentando abrir com os dois braços por dentro.

— Não me atrapalhe. — Uma luz amarela brilhava intensamente em seus olhos.

— Não me atrapalhe. Eu, vou manter, minha promessa, com o Diretoooooooooooorrrrrraaaaaahhhh!

Os braços do Atsushi soltaram. Destruindo a mandíbula do lobo, a Habilidade desapareceu.

— Impossível!

— Não me atrapalheeeeeeeeeeeeee!

O punho direito do Tigre veio se aproximando com tudo. “A Ruptura Espacial, não, não vai dar tempo!”

Perfurando três camadas de tecido que serviam de amortecimento, o punho do Atsushi mandou o Akutagawa voando. O corpo do Akutagawa arremessado para cima foi subindo quebrando o concreto do prédio e espalhando vários estilhaços de vidro.

Perdeu  a consciência por causa do choque, a recuperou por causa da intensa dor  ao acertar a parede, perdeu novamente ao raspar no concreto e a recuperou novamente pela dor.

A beira de perder os sentidos tendo sido arremessado próximo ao décimo andar   em um instante, ele viu aquela figura. A figura do Atsushi correndo para cima perpendicularmente pela fachada perseguindo sua presa. O Shinigami Branco rugia.

— Eu vou te derrotaaaaaaaaaaroaaaaaaarrrrrr!

Atsushi ergueu o punho.

Um instante antes de ser atingindo pelo impacto do punho, a roupa do Akutagawa respondeu. Recuou perfurando a fachada com as lâminas, afastando o corpo do Akutagawa.

O punho que era para ter quebrado o Akutagawa acertou em cheio a parede da fachada. A parede se transformou em inúmeros destroços que voaram para todos os lados.

— Eu vou, proteger minha promessa! — Atsushi gritava. — Enquanto eu proteger, aquela pessoa, não vai morreeeeeeeeeeeeerrrr! — Seu grito desesperado que saiu espremido vibrou o ar.

Ao ouvir o grito, Akutagawa que estava suspenso no ar pela sua roupa, abriu um pouco os olhos.

— Rashoumon... — Praticamente de olhos fechados, levantou os braços e como num sussurro disse — Kirisame.

Inúmeras lâminas finas como linhas saíram de todo o seu corpo. Penetrando o espaço intensamente, as agulhas extremamente finas se juntaram e atacaram o Atsushi.

Uma chuva de agulhas caiu sobre as pernas dele enquanto fugia numa super-reação. Como se estivessem caindo na superfície da água, destruíram a fachada.

Atsushi foi para cima tentando fugir das agulhas. Como se flutuasse, Akutagawa foi atrás dele apoiado por sua Habilidade. De olhos quase fechados, parecia dormir.

Finalmente, os dois chegaram ao topo do prédio.

No terraço, estava um tranquilo heliporto. Não havia nenhum helicóptero, apenas uma luz de saída de emergência vermelha e um aviso de pouso pintado completamente plano.

Atsushi se agarrou na borda do terraço e dando uma volta, aterrissou. Perseguindo ele, Akutagawa apareceu por baixo.

Com inúmeras linhas perfurando o prédio, ele flutuava elegantemente. Não havia expressão em seu rosto como se estivesse dormindo. As linhas em volta de seu corpo  se contorciam como uma estranha juba.

Em suas costas, o ardente vermelho do sol poente se aprofundava.

De costas para esse céu vermelho, Akutagawa parecia o rei dos demônios que surgiu para anunciar o fim do mundo.

— Akutagawa... — Atsushi encarou o rei dos demônios. — Eu vou te derrotar!

Atsushi voou. Foi na direção do Akutagawa que flutuava, ficando bem em cima na diagonal. Seu punho direito acertou o rosto dele a uma velocidade sobre—humana. Mas logo antes de quebrar seu rosto, foi impedido pela Ruptura Espacial

— UOOOOOOOOAAAAAHHHH!

Uma rachadura apareceu na face da Ruptura. Todos os músculos do Atsushi inflaram. Concentrou sua força em seu punho e destruiu completamente o fenômeno chamado Ruptura Espacial.

— UOOOOOOOOOOOAAAAAAAAAAAA!

Com a pressão criada pela colisão entre as duas forças, a roupa dos dois tremulou.

O sobretudo do Atsushi voou sendo soprado e o transceptor caiu de dentro.

A rachadura aumentou. A Ruptura ia ser destruída.

— UOOOOOOOOO... ooo... O quê...

Nessa hora, Atsushi não acreditou no que viu. Akutagawa que praticamente já tinha o alcançado estava de olhos fechados. Sua respiração era profunda e seu corpo estava enfraquecido. Não havia nenhuma tensão da batalha. Pelo contrário, Akutagawa já estava desmaiado.

Após perder suas forças ultrapassando seus limites, apenas os vestígios de sua vontade moviam sua Habilidade.

— Você, chegou nesse ponto...

Atsushi arregalou os olhos, surpreso. Mas no momento seguinte, as chamas do espírito de luta brilhavam em seu olhar novamente.

— Então, acabarei logo... com isso! — Os músculos do Atsushi se expandiram ainda mais. — UOOOOOAAAAAAAAAHHH!

Emitindo um som estridente e um clarão, a Ruptura Espacial foi destruída.

Finalmente o punho capturou o rosto. Akutagawa foi arremessado pelas ondas de impacto que mais pareciam um meteorito caindo. Aterrissou no chão com impacto fazendo voar pedaços para todos os lados enquanto rolava. Rolou até o final do terraço onde parou.

Foi um golpe perfeito. Fez mais estrago do que qualquer outro antes.

Atsushi andou silenciosamente até o Akutagawa. Ele estava desacordado. Até a Habilidade que o estava defendendo automaticamente, tendo ultrapassado seus limites, ficava se desfazendo ao se contorcer tentando formar algo.

— Acabei com ele.

Atsushi expandiu as garras do Tigre de seus dedos.

Ao lado do Akutagawa, o céu que ia até uma terra distante. Não havia mais severidade em seu desacordado. Seus ouvidos apenas conseguiam ouvir o vento que soprava pelo céu.

— Kunikida-san! Posso atirar mais uma?

— Espera, Kenji! O Akutagawa tá alto demais. Mesmo se mirar, você vai acabar acertando ele...

Do outro lado da sede da Máfia, no andar do meio de um prédio em construção, Kenji e Kunikida gritavam. Usando um binóculo, Kunikida estava confirmando em que andar Akutagawa e Atsushi se encontravam. Carregando a viga, Kenji esperava as próximas instruções.

— Droga... O Akutagawa não está se movendo! Mas dessa distância, não dá para ajudá-lo...

Por ordens diretas do presidente da Agência, Kunikida e os outros vieram dar suporte para o Akutagawa. Porém, mesmo que continuassem atirando vigas como apoio, era impossível elas chegarem precisamente no terraço onde ele estava.

Kunikida mordeu os lábios.

— Não há nada que possamos...?!

Akutagawa estava de olhos fechados. Não sentia nenhuma dor ou sofrimento. A luta era algo que tinha acontecido longe dali, atrás de uma espessa membrana. Dentro da escuridão de sua consciência, não entrava nem um feixe de luz.

Akutagawa pensou:

“Eu vou morrer logo, mas não sinto nada. Não penso nada.”

Certa vez, ele disse para o Oda que havia uma pessoa que ele queria matar. Era o Homem de Roupas Pretas. O homem que odiava por ter sequestrado sua irmã e a mantido longe dele.

Havia mais uma.

O nome era Ryuunosuke Akutagawa. O homem que perdeu sua irmã debaixo do próprio nariz.

Um homem detestável que se entregou a alegria do massacre enquanto dizia se vingar por seus companheiros, desperdiçando sua vida. Um mal para seus inimigos perversos.

Naquela noite quatro anos e meio atrás... Na noite em que pela primeira vez nasceu um sentimento no Cão sem Coração, ao mesmo tempo nasceu uma besta.

Akutagawa pensou:

“É exatamente como o Oda-senpai disse. Eu não devia perseguir a besta em mim. Porque eu não posso vencê-la. Não há ninguém que possa vencer a si mesmo. Mas eu posso empatar. Se eu não abrir meus olhos, provavelmente as garras do tigre vão arrancar a minha cabeça. Assim, minha vingança terminará. Assim, pela primeira vez vou poder dormir tranquilamente. Eu que não importasse o quão baixo estivesse, nunca dependi de ninguém, nunca olhei para trás preocupado e apenas me contorci de dor dentro do desespero e do ressentimento. Finalmente serei salvo. Finalmente poderei ir para o mesmo lugar que meus companheiros. Então, já...”

Nessa hora, ele ouviu uma voz.

— Membros da Agência de Detetives não desistem. Levante, Akutagawa.

Quando abriu os olhos, um transceptor estava caindo na sua frente. Era o transceptor que caiu do bolso do Atsushi momentos antes. A voz estava vindo dali.

— Nós acabamos de invadir a sala de segurança do andar central do prédio da  Máfia usando uma pistola de arame. Estamos transmitindo dali. — Do outro lado da linha ouvia a voz do Kenji, barulho de algo quebrando e tiros. — Levante, Akutagawa. Se você não sabe como, eu te ensino. Quando é preciso salvar alguém, um membro   da Agência se torna a pessoa mais forte desse mundo.

“Eu não sou um membro.” — Ao tentar dizer isso, sua voz não saiu. — “Eu, que sou mal em minha essência, não tenho direito de me tornar um membro.”

— Você não é mal. — Kunikida disse como se tivesse lido sua mente. — Você não é nada ainda, apenas. Levante-se para o lado bom, junto de nós. Eu te aprovo oficialmente. Você é a partir de agora um membro da Agência de Detetives.

Akutagawa arregalou os olhos. Diante deles estavam as garras do Tigre balançando para baixo. As afiadas garras brancas do tigre que brilhavam pareciam  uma única neve caindo lentamente.

“A partir do momento em que você acreditar fortemente ser um membro da Agência, você será um. Com certeza isso te trará forças. Basta você acreditar.”

— Uh.... Uoo...

Akutagawa abriu os olhos. De sua garganta vazou um grito.

— UUUOOOOOOOOOOOOOAAAAAAAAAAAAAAA!

Toda a roupa de seu corpo se expandiu como numa explosão e se entrelaçou na direção de seu braço direito.

Tentando levantar, ergueu o braço. Atsushi abaixou o punho. Akutagawa ergueu o seu.

— Rashoumon Ryusensou!

Os dois punhos colidiram.

Os dois poderes se colidindo de frente impetuosamente tentavam consumir um ao outro alvoroçando o espaço.

Com os impactos, saiam voando destroços do chão do terraço para todos os lados.

— Gahh! — Atsushi gritava em sua forma completa. — Não me diga que... ainda vai mais?!

As lâminas que envolviam o punho do Akutagawa se expandiram ainda mais.

— Rashoumon...

O punho do Akutagawa brilhava num tom branco. A Habilidade transformada começou a interferir no espaço a sua volta como uma constante.

Uma enorme onda de impacto se concentrou num único ponto.

— Ginzetsuhatouü!

Akutagawa balançou seu punho. Ao mesmo tempo, a torrente de lâminas prateadas envolveram o punho do Atsushi o consumindo!

— AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH?!

A coleira do Atsushi foi pega pelo impacto e caiu em pedaços. O terraço foi coberto por uma luz prateada.

O prédio tremeu e como num terremoto, tudo dentro das salas balançou e caiu. O barulho do impacto e as luzes provocadas parecendo ser de uma artilharia foram tão terríveis que puderam ser sentidos em todos os cantos de Yokohama.

O impacto acabou quando os destroços que saíram voando pararam de rolar. Não havia ninguém se mexendo no terraço coberto de poeira e escombros.

 

 

Atsushi estava caído. Com o corpo destruído pela lâmina desde o seu braço direito, não tinha mais forças para levantar. Por ter sua coleira que controlava o Tigre destruída, sua regeneração reduziu extremamente. Estava dando tudo de si só para manter ter seu pulso.

Akutagawa estava em pé imóvel. Seu sangramento já havia passado do limite e havia usado tanto sua Habilidade ao ponto de queimar seus nervos que só conseguia ficar em pé. Mas não estava desacordado. Arrastando seu corpo todo ferido, ele andou para perto do Atsushi.

— Me mate... — Atsushi disse enquanto sua respiração chiava. — Eu já, não posso mais, cumprir a promessa... com o Diretor. Pelo menos, preciso pagar, com a minha vida...

Uma emoção além de dor passou pelo rosto do Atsushi. Ele não tinha mais forças para resistir. Sua vida agora poderia ser facilmente extinguida. Akutagawa ficou em  pé bem ao seu lado e o olhou com frieza.

— Tudo bem.

Akutagawa pisou na cabeça dele botando o peso de seu corpo.

— Ughh...

Tendo seus vasos sanguíneos e vias respiratórias pressionados, seu rosto se contorceu de agonia. Mas não tinha mais forças nem para levantar a mão em protesto. Se Akutagawa continuasse a pressioná—lo, morreria facilmente por bloqueio da circulação sanguínea e falta de oxigênio.

— ... culpe... Diretor. — Do canto de seu olho, uma pequena lágrima caiu. — Desculpe, Diretor... Eu não pude ser um aluno elogiável...

Akutagawa olhou sua expressão calado. Sua visão tremia um pouco.

— Não vou mais.

Akutagawa tirou o pé.

Tossindo fortemente, Atsushi olhou para Akutagawa confuso.

— Por... que...

— O trabalho da Agência não incluiu ajudar alguém a morrer. — Após dizer isso, Akutagawa andou cambaleando para a saída.

Atsushi apenas o acompanhou com seus olhos.

— Fugir do passado e continuar a temer a si mesmo também é lutar... Cuspa o sangue, tigre. Cuspa o sangue e avance. Se no final da sua fuga e covardice você se curvar diante a derrota, vou rir de você... Um dia.

De repente, um aplauso seco.

— Parabéns.

O curto aplauso foi levado pelo vento ecoando pelo terraço. Akutagawa e Atsushi procuraram pelo dono da voz até que logo encontraram.

— Parabéns, parabéns, você dois. Foi esplêndido. Que batalha maravilhosa onde vocês ultrapassaram seus limites sem ninguém ficar para trás.

Uma figura alta tremulando um sobretudo preto. Possuía uma atmosfera tão diferente a ponto de parecer que tinha cortado o espaço. O governante do submundo.

— Dazai-san.

— Homem de Roupas Pretas!

O chefe da Máfia do Porto, Osamu Dazai, andou silenciosamente em direção aos dois.

— Então o Akutagawa, que continuou a carregar sua raiva por quatro anos e meio e veio cumprir sua vingança, venceu? — Dazai andou enquanto sorria um sorriso que não dava para ver o fundo da boca. — Mas pensar que conseguiu destruir o Atsushi-kun que eu treinei por esses quatro anos e meio... Ou talvez esse seja o poder da Agência de Detetives. Realmente, não sei onde enfiar minha cara.

Dazai andou e parou ao lado do Atsushi. Então, disse sem emoção:

— Atsushi-kun. Você está demitido.

Atsushi abriu seus olhos por um momento surpreso mas logo os fechou. — ... Sim.

— Em troca, vá viver no mundo lá fora. Eu arranjei alguém para tomar conta de você. Vá para um mundo de luz. Junto com a Kyouka-chan.

— Eh?!

Atsushi levantou apenas a cabeça surpreso.

— O que você está planejando, Homem de Roupas Pretas? — Akutagawa ficou apostos para lutar mesmo estando tonto. — Você me guiou até aqui hoje, não foi? Enviando uma carta e usando a Gin como isca... Mas se você só queria me matar havia uma forma muito mais fácil. O que está tramando? Para o que você está olhando além da batalha de hoje?

— Batalha de hoje? Você está enganado, Akutagawa-kun. — Dazai disse enquanto andava. — Não foi hoje. Foi desde quatro anos e meio. Desde que separei você de sua irmã naquele dia tudo foi planejado para que chegássemos nessa situação. O treino do Atsushi-kun também, a expansão da influência da Máfia, tudo.

— Como disse...?

Akutagawa ficou perplexo.

— Vocês sabem sobre o Livro?

Inesperadamente, Dazai perguntou olhando para os dois.

— Não é o que chamaríamos de um livro comum. É um livro em branco que só existe um no mundo, onde o que é escrito vira realidade.

— O que é escrito... vira realidade?

Dazai respondeu como se estivesse cantando:

— É. Mas quando digo que o que se escreve vira realidade não é no sentido estrito da palavra. O Livro é o que se aproxima da origem desse Mundo. Dentro dele estão incontáveis possibilidades de mundos e suas infinitas ramificações dependentes de escolhas e condições, dobradas em camadas imanentes a ele. E no momento em que algo é escrito em uma das páginas do Livro, o mundo que satisfaz esse conteúdo é chamado. O possível mundo dentro do Livro e a realidade são trocados.

Tanto o Akutagawa como o Atsushi estavam sem palavras e sem reação. Diante da tamanha escala do assunto dito repentinamente, não conseguiam acompanhar. Somente uma coisa eles tinham conseguido entender por enquanto: O Dazai não mentiria ou brincaria nesta situação.

— Ou seja, o Mundo é uma única existência física fora do Livro, o “Mundo de Fora do Livro” e os infinitos mundos possíveis dobrados dentro do livro são os “Mundos de Dentro do Livro”. Assim vamos nomear essas infinitas existências e essa única existência. E...

Sem nenhuma ênfase ou insistência, Dazai falou como se fosse tudo absolutamente normal.

— Esse mundo é uma possibilidade. Ou seja, não passa de um dos infinitos mundos dentro do Livro.

Tanto Atsushi como Akutagawa não conseguiam se mexer como se estivessem paralisados.

Nos olhos de Dazai brilhava uma tensa seriedade e conhecimento. Não era mentira. Na parte funda de suas cabeças sem lógica, os dois entenderam.

— Contudo, a realidade é a realidade. Esse mundo possuí a mesma intensidade do de fora. A prova é que nesse mundo também existe o objeto associado a origem do Mundo, o Livro. O Livro desse mundo é como uma vala. Ele responde às ordens do mundo exterior e reescreve esse mundo, o destruindo. E daqui não muito tempo, poderosas organizações estrangeiras vão começar a invadir Yokohama atrás do Livro.

Akutagawa perguntou instintivamente:

— Como você sabe?

— Sabendo. Porque eu sou um Usuário capaz de invalidar as Habilidades dos outros. E usando essa especial característica eu dei origem a uma singularidade e forcei uma conexão entre as partes do Mundo. E assim eu sucedi em conseguir ler a consciência do meu eu fora do Livro... ou seja, do meu eu original.

— O que-

— Está recebendo as memórias? Do seu outro... eu? É tão absurdo que minha cabeça não consegue acompanhar.

— Daqui pra frente a Guilda, os Ratos e inúmeras outras organizações atacarão querendo o Livro. Vocês precisam se livrar de todos eles e protegê-lo. Se eles escreverem alguma coisa, esse mundo será eliminado e um novo reescrito.

— Não entendo. — Akutagawa disse confuso. — Mesmo que sua história seja verdade... Como que isso liga a você ter roubado minha irmã? Não estou vendo sentido nenhum.

— Porque eu precisava do poder de você dois. — Dazai declarou. — No momento que as Habilidades de vocês dois se unissem nasceria uma singularidade, e então a junção das suas almas daria vida para algo além dos seus poderes. Para isso, eu precisava que vocês lutassem uma vez. Vocês precisavam ficar diante das profundezas da morte para entender um ao outro.

Dazai andou até a borda do prédio. Não havia nem uma cerca nem parede que protegesse de cair. O céu estava logo a frente. Se caísse, não haveria nada para impedir.

— Dazai-san. — Atsushi disse com a voz tremendo. — Aí é perigoso. Volte para cá, por favor.

— Um aviso. Você não podem contar a história de agora para ninguém. Só vocês sabem. Se mais de três pessoas souberem ao mesmo tempo, o mundo se torna instável e a chance desse mundo desaparecer mesmo sem usar o Livro é alta. Por isso... Conto com vocês.

Dazai deu um passo para frente. Com o calcanhar ultrapassando a borda, ele ia em direção ao céu.

— Mais de três... — Depois de contar os números em sua cabeça, olhou para Dazai se dando conta. — Dazai-san, espere. Não me diga que você...

— Finalmente chegou a hora. — Dazai sentiu o vento passar por suas costas e sorriu relaxadamente. — A quinta fase. A última fase. É uma sensação bem misteriosa. Parece o dia antes de voltar para a terra natal.

— Homem de Roupas Pretas. — Akutagawa franziu os olhos, perguntando. — Me responda uma coisa. Por que ir até tão longe? Por que está tão obcecado em evitar  que esse mundo suma?

— Vejamos... Não é como se eu tivesse apego a esse mundo. Eu não sei se ele vai ser apagado mesmo ou não. Com certeza o eu de outros mundos diria isso. Mas... — Dazai fechou os olhos e sorriu um sorriso nostálgico. — Esse é o único mundo em que ele está vivo e escrevendo um romance. Não tem como eu deixar esse mundo ser apagado.

O vento soprou forte como se o convidasse. O corpo do Dazai se inclinou para trás.

— Ahh, ahh, ahh — Dazai fechou os olhos e como se sonhando sorriu dizendo — Finalmente cheguei até aqui. O momento pelo qual esperei. Estou animado. Estou realmente animado... Mas tenho um arrependimento. Eu não vou poder ler seu romance quando tiver completado. Somente isso me frustra um pouco.

Dazai ultrapassou a borda.

Sendo puxado cada vez mais e mais pela gravidade. Ficou caindo por um bom tempo.

Do terraço, eles não ouviram o barulho do impacto.

 

 

Akutagawa foi andando cambaleando até o parapeito do terraço e olhou para baixo.

O vento soprou forte.

Um pôr do sol vermelho. Uma calçada vermelha.

O homem que governava a Máfia do Porto e dominava a escuridão de Yokohama.  O homem que organizou um grandioso plano e manipulou o destino de todos. Nesse entardecer, ele foi para o lugar que desejava. O homem que estava num lugar mais alto do que qualquer outra pessoa, no final ultrapassou a vida e chegou naquele lado que ninguém consegue alcançar.

Akutagawa não sabia julgar se tinha valor nisso. Apenas o vento transparente que soprava sobre Yokohama, apenas ele, sabia e observava tudo.



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