Volume Único

Capítulo 1

Jun’ichirou Tanizaki, membro da Agência de Detetives, estava com problemas. Não sabia o que fazer. Porque o novato não havia falado nada desde que sentou a sua frente. Apenas o ficou encarando em silêncio, sem se mexer, com olhos severos.

— Desculpa!

Tanizaki falou abaixando a cabeça, mas não obteve nenhuma reação.

Mesmo agora, não dizia nada.

Estavam em um iluminado café. Uma triste melodia num tom, que podia ser ou não ouvido, tocava de um piano velho. Na mesa, havia quatro pessoas sentadas. Todos eram membros da Agência de Detetives. Eles estavam voltando da ida a cidade para comprar móveis novos para o novato e pararam no café do térreo para descansar.

Desde que Tanizaki abaixou a cabeça, olhava apenas para frente espiando a face do novato. Era uma visão medonha. Poderia se dizer que era desumana. Olhos que pareciam do cão de três cabeças que guarda o portão do inferno perfuravam Tanizaki. Pareciam dizer que nunca o perdoariam.

Por causa do trabalho na Agência de Detetives Armados, ele se envolveu com várias pessoas ruins e criminosos. Mas nunca tinha encontrado olhos tão desumanos como esses.

O nome do novato era Akutagawa. Era um jovem que tinha feito ontem  o exame de admissão para a Agência.

— Bem... — Tanizaki começou a dizer com uma voz fina morrendo de medo. — Peço perdão por ontem. Mesmo sendo um teste, ameaçar sua vida com uma bomba falsa... É claro que você está bastante chateado, não é?

Como esperado, Akutagawa não respondeu.

Akutagawa tinha feito o teste de admissão no dia anterior. O teste era proteger os funcionários de uma falsa ameaça de bomba. Akutagawa conseguiu oprimir em segundos o Tanizaki que havia pego uma menina como refém e se trancado na sala da Agência exigindo que o presidente aparecesse.

— Ir-Irmão... Força. Naomi está com você.

A irmã mais nova sentada ao lado dele, Naomi, a refém do teste de ontem, disse o encorajando.

— Ei, que tal se você dissesse algo, novato? — Disse o Kunikida, que sentava no meio. Ele era alto como os outros dois veteranos e usava óculos.

— Você passou no teste, ou seja, a partir de hoje o Kunikida é seu colega. Não dá pra você ficar encarando ele sem falar nada o resto da vida, né.

Com uma intensidade que fazia uma pessoa engolir seco, Akutagawa olhou para Kunikida que estava ao seu lado.

— Uhh...

Um olhar cruel que fazia o experiente combatente Kunikida quase chorar.

Se fosse uma criança normal, com certeza choraria. Tanizaki perguntou apenas com o olhar para Kunikida:

— O que vamos fazer, Kunikida-san? Com certeza o novato está chateado. Afinal, nós ontem ameaçamos ele bastante com uma bomba e uma refém. Ele não vai nos matar, vai?

Kunikida com uma expressão de pedra respondeu apenas com o olhar ao Tanizaki:

— Não diga besteiras. Tanto a refém quanto a explosão eram só atuação. Era um teste necessário para ele entrar na Agência. Além do mais, ele passou no teste sem problemas. E mais importante, mesmo que ele quisesse atacar a gente aqui, nós somos dois detetives experientes. Até parece que perderíamos pra ele. E ele tá com raiva é de você Tanizaki, não  de mim.

— Ah, Kunikida-san. Você acabou de fazer uma cara como se não fosse problema seu, né?

— Não vou perdoar. — Ao ouvirem de repente a voz do novato, os dois pularam um pouco da cadeira.

Tanizaki ficou com o rosto frio e dormente. Ele realmente seria morto?

— Essa menina que fez o papel de refém é sua irmã de sangue, não é?

— Eh? Ah, sim... É minha irmã Naomi.

Akutagawa ainda sem expressar nada, tomou um gole do copo em suas mãos e disse:

— Você deve priorizar sua irmã.

Tanizaki ficou pensando sobre essa fala três vezes em sua cabeça e acabou dizendo:

— ... Eh? Ah, por acaso... Você tá chateado porque eu tratei a Naomi de forma grosseira como refém? É só isso?

Com olhos cortantes, Akutagawa levantou o queixo num ângulo que não dava para saber se ele estava vendo ou não o Tanizaki, e consentiu.

— É mesmo? Ora, ora, então não precisa se preocupar, novato. Eu e meu irmão nos damos muito bem como pode ver. — Disse a Naomi enquanto abraçava seu irmão e esfregava seu queixo contra a clavícula dele.

Akutagawa que olhava em turnos para os dois irmãos íntimos, disse sem expressão:

— Entendo. Excelente então. Eu tirei conclusões precipitadas.

E então disse para a garçonete que passava pela mesa de vez em quando:

— Eu quero uma sopa de feijão-vermelho e um chá-verde torrado.

— Sim, entendido!

A garçonete acenou sorrindo e foi embora.

 

Akutagawa voltou a tomar do copo em sua frente ainda com um olhar cortante como o do cão de guarda do inferno.

— Será que...?

Tanizaki olhou de relance para o Kunikida. Kunikida também olhou de relance para o Tanizaki. E os dois trocaram o mesmo pensamento.

— Será que o novato não estava nos encarando e o olhar dele só é ruim assim mesmo?

Ryuunosuke Akutagawa. Um órfão encontrado morrendo de fome na beira de um rio. Os membros da Agência não sabem quase nada sobre seu passado. Por que estava passando fome? Como foi achado? Ele não conta nada. Só sabem que ele é um excelente Usuário de Habilidade que consegue mudar a forma de sua roupa e controlá-la. E que ele aceitou o convite da Agência para procurar uma pessoa.

— Por sinal, ele ainda vem? — Kunikida olhou a hora num relógio de bolso e bateu nele com os dedos, nervoso.

— Já passou demais da hora marcada. Fala sério, pegou do nada um órfão morrendo na beira do rio, disse para ele prestar o teste de admissão e o largou aqui.

— Realmente, não dá pra prever o que ele vai dizer ou fazer. — Tanizaki interveio. — Mas ele ligou agora há pouco e disse que chegava em cinco minutos. Vamos esperar mais um pouco.

— Esperar... — Kunikida olhou de relance para Akutagawa.

Akutagawa olhava sem expressão para o nada. Seu olhar realmente parecia de um oficial do inferno. O lugar que eles estavam no café se tornou mais frio e silencioso por causa da atmosfera rígida do novato.

— Hã... Akutagawa-san? — Tanizaki o chamou morrendo de medo. — Hã... Bem, você não quer pedir mais nada?

— Não. — Akutagawa respondeu com seus olhos cortantes.

Então, silêncio. Tanizaki sentiu como se os nutrientes do seu corpo estivessem sendo drenados rapidamente.

— Não dá para manter uma conversa! Será que ocorrerá tudo bem com esse colega daqui pra frente?

Diante dessa situação, Naomi disse:

— Por sinal, Akutagawa-san. O que você fazia antes de entrar para a Agência?

Tanizaki gritou de alegria em sua mente quando sua irmã perguntou sorrindo sem fazer cerimônia.

— Muito bem, Naomi. Como esperado, sempre posso contar com ela. Akutagawa pensou um pouco e respondeu.

— Meu passado é como um calhau levado pelo vento. Sem ter onde parar, sem precisar falar, vagando pela favela, assim eu vivi.

— Ou seja, não fazia nada. — Pensou Tanizaki. — Hm, inesperado.

— Mas com uma Habilidade incrível como a sua, você deveria ter encontrado trabalho fácil, não? Como guarda-costas ou segurança por exemplo... Há várias possibilidades em que você poderia trabalhar.

Akutagawa não respondeu a essa pergunta, apenas fechou os olhos.

Provavelmente não queria responder.

Tanizaki após pensar um pouco perguntou:

— Então... O que você gosta? E não gosta?

— Nada em especial.

Tanizaki, parecendo que seu coração quebraria em um instante, perguntou novamente de forma sucinta, juntando forças.

— Bom, mas digamos que tivessealgo.

— Se tivesse algo... — Akutagawa mudou sua linha de visão como se estivesse pensando. — O que eu gosto seriam chá, figo e sopa de feijão— vermelho. E o que não gosto seria fava, tangerinas e... cães vadios.

— Heh, cães vadios... — Tanizaki riu. Pensar que o que não gosta seria algo bem comum como não gostar de cachorros.

— Eu te entendo, eu te entendo. Tem um grandão que anda por aqui. Até os adultos se assustam quando ele late pra eles.

— Exato. — Akutagawa respondeu enquanto bebia do copo. — Uma vez, enquanto eu dormia lá na favela, um cão de rua tentou comer meu braço.  Ele fugiu assim que eu acordei mas depois disso eu passei a não gostar  deles.

Acabou que o motivo era dez vezes mais chocante do que o esperado.

— É mesmo...? — Tanizaki disse chocado.

Os outros não sabiam o que dizer. Tanizaki adicionou:

— Deve ter sido duro.

— Não. Não era incomum para quem vivia na favela. Teve um companheiro meu que foi morto por um cão. Claro que eu matei todos os cães da vizinhança como vingança.

— É-É mesmo?

Pelo jeito o novato cresceu carregando muita coisa dura.

Se ele continuasse aprofundando a conversa ia acabar pisando numa mina. Tanizaki agora só conseguia responder “É mesmo?” no automático.

— Eu também tenho perguntas. — Disse Akutagawa inesperadamente.

— Também quero saber sobre o passado de vocês. O que vocês faziam antes de trabalharem na Agência de Detetives?

— Ora, mas que ótima pergunta. — Naomi juntou as duas mãos sorrindo. — Na verdade essa é uma pergunta de praste na Agência. Um quiz para acertar o passado dos membros. Não é, irmão?

— Si-sim... tem razão. Todos os novatos passam por isso. Mas ninguém sabe sobre o passado de quem te pegou. Ninguém acertou e o valor da aposta já tá em setecentos mil ienes. Você pode tentar uma vez também.

Nessa hora, a garçonete trouxe o pedido. — Desculpa pela demora. Um chá-verde torrado e uma sopa de feijão verme-

Ela não conseguiu terminar de falar porque pisou sem querer na barra do sobretudo do Akutagawa. Antes que caísse para frente ela tentou por reflexo tirar o pé. Mas essa não foi uma boa decisão. Seu pé ficou preso nas fibras da roupa.

— Kyahh. — Ela gritou brevemente e tentou voltar seu corpo para o lugar, mas o seu uniforme tradicional atrapalhou ela de mover o pé.

Como resultado, ela foi para trás com tudo se apoiando com as mãos na mesa ao lado. O copo com o chá voou da bandeja e caiu na cabeça do Akutagawa.

Os membros da Agência tentaram impedir mas não conseguiram a tempo. O líquido quente escorreu pela frente da cabeça do Akutagawa.

Naomi deu um lamento curto. Tanizaki e Kunikida levantaram tensos de seus assentos. A mão de Kunikida estava na arma em sua cintura. Se ele não tivesse parado para pensar por um momento, a arma estaria apontada para o Akutagawa.

— Cuidado onde pisa. — Akutagawa falou sem nenhuma emoção. — Ninguém se queimou?

O líquido quente que estava a escorrer sobre a sua cabeça havia parado antes que chegasse ao sobretudo. Graças a reação super-rápida dele.

Tanizaki olhou para Kunikida. E Kunikida olhou como que inconscientemente para sua mão na arma. Os dois não haviam se movido rapidamente para ajudar a garçonete. Nem porque viram o Akutagawa se queimar também. Foi para matá-lo. Porque por um instante ele emanou uma intenção de matar. Era uma resposta instintiva para qualquer coisa que tentasse machucá-lo. Os dois previram por reflexo que ele arrancaria a cabeça da menina.

Akutagawa não havia passado no exame de admissão. Ele entrou por meio de um Caso de Reserva.

De fato, ele tinha resolvido o caso da bomba rapidamente. Mas resolver  o caso rapidamente não era uma condição para passar. Para se tornar um membro, precisava agir controladamente com a moralidade de salvar um cidadão.

Não hesitar em situações extremas e ter uma mentalidade nobre. Esse era o princípio do presidente da Agência, Fukuzawa.

Havia mais uma regra para o teste. A regra em que o Akutagawa não poderia saber de jeito nenhum que a situação de agora fazia parte do teste.

Como ele resolveu o caso da bomba num instante, ele não havia demonstrado o mais importante para ser um detetive. Por isso ele seria julgado por uma hora pelo que aconteceu agora pensando ser um membro.

Ou seja, Tanizaki e Kunikida estavam no meio do trabalho nesse momento. O trabalho de se certificar da admissão do Akutagawa. E se ele se mostrasse um vilão, antes que ele pudesse ferir a vítima, eles deveriam atacá-lo.

Kunikida, respirando nervosamente, tirou a mão da arma.

Ele não conseguia entender o novato. Só sabia que tinha um olhar severo e uma habilidade poderosa. Porém, se sua alma era boa ou ruim... isso não sabia.

Por que diabos esse homem entrou na Agência? Foi o que o Tanizaki e o Kunikida se perguntaram ao mesmo tempo. O que aquela pessoa estava pensando ao recomendá-lo? Bem nessa hora, a porta do café se abriu e o homem entrou. Era um homem alto. Por causa da sombra provocada pela  luz de fundo, não dava para ver sua expressão muito bem.

— Ah. — Disse Tanizaki ao virar para trás para verificar quem era. — Bom trabalho. Está atrasado, não?

— Tá atrasado. — Disse Kunikida que também havia se virado para olhar. — Estamos com um problema por causa desse novato que você trouxe. Faça alguma coisa.

O homem alto coçou a cabeça e disse:

— Ahh... Me atrasei.

O homem entrou no café e a luz do ambiente revelou sua expressão. Esse homem era...

Quando a noite chega, os armazéns do porto se tornam o lugar mais escuro do mundo. Um mundo mais escuro do que preto onde nem as luzes  da cidade nem a luz da lua alcança. A verdadeira escuridão em que não dá para ver nada diante dos olhos. Um grito ecoava nessa escuridão.

— Socorro! Ahhhhhhh! Não se aproxime! Socorro! Alguém!

Os gritos se sobrepunham e formavam uma música de combate. Algo quebrando, algo sendo esmagado e um liquido pegajoso caindo no chão acompanhavam a música. Mas não havia grito e barulho que conseguisse romper o silêncio fora do armazém. Os sons entravam completamente na densa escuridão e eram absorvidos como uma esponja.

Ali era dentro de um largo depósito circular de mercadorias que chegavam. Várias caixas de madeira estavam sendo empilhadas em colunas até o teto. Na clarabóia lá no alto, o céu negro de lua nova se espalhava sem piedade.

— Pare, não se aproxime! Não se aproxime! Não, não, não, não! Eu não quero morrer! Soco-

Na escuridão onde não dava para ver nada, os gritos iam a cada vez diminuindo mais.

As vezes, tiros de rifles brilhavam de maneira intermitente abrindo um branco na escuridão. As luzes piscavam por um instante e mostravam cruelmente as pessoas dentro do armazém.

Quem estavam ali eram mercenários. Um pelotão de mercenários completamente armados. Mais de vinte soldados experientes fugiam no meio da escuridão.

— Não atirem! Vão acertar entre a gente! — Um dos soldados gritou. — Balas não atingem ele! Precisamos mudar para munição de perfuração de armadura! E então vamos capturá-lo com uma luz tática!

— Não podemos! Se iluminarmos aqui, ele vai nos ver e pegar-nos!

— O inimigo já está nos vendo! Se não o pegarmos logo, seremos todos mortos!

Essas foram suas últimas palavras. As vozes foram interrompidas e sons de pescoços sendo quebrados continuaram. O ar saindo das traqueias fazia um barulho de flauta. Gritos que não gritavam.

Alguém em algum lugar conseguiu soltar um. Todos se viraram. Havia uma besta branca. Ela pulou por cima dos soldados. Era do tamanho de um automóvel pequeno. A gigante mandíbula da besta arrancou a garganta deles.

— É ele! Atirem! Atirem!

Todos atiraram simultaneamente na direção da besta. Mas ela balançou  a cabeça enquanto estraçalhava os pescoços de suas vítimas e saiu pulando facilmente, sumindo na escuridão.

Os soldados que sobraram foram baleados e seus corpos pularam como numa dança.

Quando os tiros pararam, a escuridão voltou. A besta também havia sumido.

— Não era... um rumor. — Um dos soldados gritou chorando. — Ela realmente existia, a besta da calamidade. O Shinigami Branco da Máfia do Porto.

Podia se ouvir barulhos de gritos e coisas quebrando de todos os lados. Sem saber onde o inimigo estava não conseguiam assumir nem uma formação tática de defesa nem decidir por onde iam se retirar.

Haviam duas coisas sendo passadas pela tropa. Choros e gritos. Aquilo não era mais uma batalha, apenas um massacre. Era o resultado natural esperado de um humano que vai contra a própria escuridão.

— Vamos nos retirar! Voltem para a formação! — O comandante da tropa gritou com tudo o que podia pelo equipamento de comunicação.

— Se formos derrotados aqui, não haverá ninguém para impedir a grande invasão da Máfia do Porto! Só as cabeças empacotadas de todos os seus superiores e amigos voltarão para os seus países! — Gritou o comandante enquanto tirava o pino de uma granada de atordoamento. — Quando eu der o sinal, as unidades ímpares vão até a entrada do armazém,   e as unidades pares dão cobertura com fogo!

O comandante atirou a granada de atordoamento que emitiu uma forte  luz composta de uma reação de oxidação de magnésio iluminando o local como se estivesse no meio do dia.

— Agora! Abrir fogo!

A grito desesperado do comandante ecoou no armazém e foi absorvido pela escuridão. Não se ouviu também nenhum tiro.

— O que estão fazendo? Unidades pares, porque não estão-

Os gritos do comandante foram absorvidos por sua própria razão.

— Será que...

Aquilo o observava silenciosamente a sua frente no meio da escuridão. Brancas patas que davam cada passo sem fazer barulho. Olhos dourados ardentes. Da sua mandíbula manchada de vermelho, cotovelos de soldados balançavam pendurados. Era um grande carnívoro de pelos brancos.

O comandante percebeu que atirar no escuro foi tolice. Não havia mais nenhum soldado vivo.

— Todos... morreram?

— Sim, exatamente. — A besta branca respondeu.

Assustado, o comandante apontou a arma para ele. O que a lanterna de luz acoplada a arma iluminou não era mais a besta. Era um menino.

Cabelos brancos com a franja cortada diagonalmente e um rosto inocente. Um sobretudo preto que escondia seu pescoço completamente e não deixava vento nenhum entrar.

— Então... era verdade. — Disse o comandante chocado. — O rumor de que o Tigre Branco... O Shinigami Branco da Máfia do Porto era um jovem menino.

O menino acenou com seu pequeno queixo.

— Com isso, tudo acaba. — Disse o menino calmamente. — Vocês planejavam matar o chefe da Máfia do Porto. Não terem sido descobertos  até o dia da execução do plano é o esperado de mercenários profissionais.

Não havia raiva em seus olhos. Nem um prazer obscuro pelo massacre. Apenas um silêncio opressivo e a escuridão circundavam o menino enquanto o abençoavam e amaldiçoavam ao mesmo tempo.

— Mas se vocês são assassinos profissionais deveriam saber que o nosso chefe é um profissional em tentar ser assassinado. Todos os dias habilidosos assassinos invadem a sede da Máfia do Porto atrás da cabeça do chefe. Todos os dias. Mas eles não conseguiram nem uma vez. Não conseguem nem passar da recepção do primeiro andar. Assim como vocês experienciaram.

— Moleque...!

O comandante percebeu que seus dedos estavam tremendo. Mesmo com toda a experiência prática que tinha, todas as grandes batalhas em que havia participado, os dedos de um soldado experiente que nunca haviam sentido calafrios ou suado... estavam tremendo com medo de um único menino.

O menino a sua frente não parecia humano. Parecia a morte que veio matá-lo gentilmente.

Se era assim...

— Se é assim, eu estive te esperando, Shinigami. — O comandante tirou do bolso um aparelho de transmissão do tamanho de um punho. — De fato, nós não temos mais chance de vencer. Mas temos a possibilidade de nos recusarmos a perder.

O menino estreitou os olhos.

— Você está vendo? É um detonador. — O comandante apertou o botão do aparelho com o dedão. — Você acha que nós escolhemos lutar nesse armazém aleatoriamente? Aqui é nosso depósito de explosivos. Com esse detonador, todas as bombas plantadas aqui irão explodir de uma vez só.

Os olhos do menino brilhavam num dourado escuro. Como um gato, suas pupilas estreitaram verticalmente.

— O que...

— Opa, não se aproxime. — Ele levantou a mão para mostrar que estava apertando o botão. — Tá vendo? É um interruptor de cadáveres. Não foi quando eu apertei, mas sim quando eu soltar que tudo irá explodir. Ou seja,  se você me matar agora, meu dedo vai soltar e você também vai virar picadinho.

Se o menino o matar, tudo desmoronará e eles morrerão. Se ele tentar  fugir, o comandante solta o botão e eles morrem. E mesmo que ele roube o detonador, antes que possa apertar o botão, é preciso que o homem o solte  por um instante, os matando de qualquer jeito.

— Há uma morte apropriada para um soldado. — Enquanto apertava o botão com uma mão, pegou uma arma com a outra. — Morrer lutando no campo de batalha com seus companheiros. Se eu morrer te levando junto não será uma má forma.

— Você não tem medo de morrer. Eu te invejo. — O menino disse com uma voz fraca demonstrando tristeza ou alguma outra emoção semelhante a tristeza. — Mas eu tenho medo de morrer. Tenho medo da dor. Tenho medo de levar um tiro e ter meu sangue derramado. Por isso me tornei um Shinigami. Porque se eu assumisse a forma da morte, ela não me acharia.

— Você tem medo da morte? Por isso matou os meus subordinados? — Disse estreitando os olhos. — Então se eu soltar esse botão você vai sentir pavor. Não teria recompensa melhor. — Após dar um sorriso curto, tirou o dedo.

Nada aconteceu.

Ele olhou para o próprio dedo. Sem dúvidas havia soltado o botão, mas seu dedão ainda o estava apertando.

O comandante balançou a mão tentando soltar, mas o detonador saiu voando com o dedão agarrado.

— Mas o que...

Uma lâmina branca havia deslizado pelo dedão cortando-o na raiz.

Ele tentou contra-atacar atirando com a arma na outra mão mas não havia dedo ali também. Seu indicador estava caído no chão.

— Posso matá-lo? — Uma voz jovem falou.

A sombra dissolvida na escuridão que havia se tornado uma com ela ainda mais suavemente do que o Tigre segurava gentilmente o detonador e    o dedão.

— Não precisa matá-lo, Kyouka-chan. — O menino respondeu gentilmente.

Uma mão branca e um punhal branco estavam silenciosamente na escuridão atrás do homem. Sua ponta afiada, precisamente atrás da garganta dele.

Quem segurava o punhal mergulhada na escuridão era uma menina de roupa tradicional. Seus cabelos compridos eram da cor da própria trevas. E sua pele, tão branca que quase dava para ver seus ossos através dela.

— Mas ele tentou te matar. — Disse a menina chamada Kyouka com uma voz calma como neve acumulada.

— Eu sei. — O menino respondeu. — Mas o Chefe mandou a gente deixar um vivo e deixá—lo ir para ele contar que todos foram mortos rapidamente  para os seus superiores.

— Mas... — A menina disse insatisfeita enquanto movia um pouco o punhal.

Sangue escorreu do pescoço do Comandante no lugar em que a lâmina entrou um pouco.

— Tá tudo bem. Com esse dedo cortado ele nunca mais vai poder usar uma arma. Mesmo que o deixemos ir, não precisamos nos preocupar com   ele vindo se vingar depois.

A menina inclinou um pouco a cabeça. Seus cabelos negros caíram levemente em sua bochecha.

Sua expressão era efêmera ao ponto de desaparecer no ar.

— Se não for um perigo para você. — A menina disse sem praticamente mover os lábios, guardando o punhal no busto.

Ela se afastou num movimento elegante como de um ser do fundo do oceano.

— Obrigado.

Sem mudar a expressão um pouco sequer, a menina sorriu apenas com os olhos.

— Inacreditável... — Murmurou o comandante com uma expressão de angústia apertando os dois dedos cortados de ambas as mãos.

— A menina assassina... é a Kyouka Izumi? Daquele caso dos trinta e cinco...? Não faz sentido... Então por que você está junto do Shinigami Branco da Máfia do Porto? Você traiu a Máfia matando trinta e cinco pessoas e sumiu!

— É verdade que ela traiu a Máfia uma vez. — O menino disse.

— Mas eu voltei. — Kyouka se aproximou do menino calmamente. — Por ele.

Os dois estavam calmos. Ao falarem no meio da escuridão, essa calma transpassava para o ambiente.

— Soldado. “Há uma morte apropriada para um soldado”, você disse. Eu respeito essa sua visão. Por isso, se você persistir em lutar uma luta conosco da qual não tem chance de ganhar, eu aceitarei. — O menino disse numa voz sussurrante. — Nesse caso, eu vou roubar sua vida com todas as minhas forças para fugir da morte de que tenho medo.

O comandante encarava os dois usuários com seus olhos ensanguentados até que relaxou seus ombros.

No lugar de palavras, ouviu-se um pequeno barulho de metal caindo no chão. O Comandante havia largado sua arma.

— Eu agradeço.

O menino se curvou em agradecimento e foi em direção a saída. Kyouka  o seguiu. Os dois passaram pelo homem sem olharem para ele. E assim saíram do armazém. O homem se virou e olhou as figuras de costas dos dois ao longe. Costas que andavam calmamente como se não houvesse ninguém mais atrás deles.

 

 

— Menino, qual o seu nome? — Perguntou o Comandante.

Ele não esperava nenhuma resposta de volta, mas surpreendentemente houve.

— Atsushi Nakajima. — A voz do menino ecoou no armazém.

Atsushi Nakajima... O homem teve uma intuição que daqui para frente não importa quantas vezes lembrasse esse nome, sentiria medo.  Quando ele olhasse para a escuridão, olharia para a besta.

Quantas vezes ele acordaria desesperado de um pesadelo sentindo cheiro de sangue e o desejo de branco de matar?

Ele não poderia mais continuar a ser um soldado. Sua vida como um acabou aqui. O homem caiu de joelhos e se encolheu.

Mesmo com a escuridão e o silêncio voltando após os passos se afastarem, o comandante continuou a tremer encolhido como uma criança.

Atsushi e Kyouka após saírem do armazém se dirigiram para a costa. Após alguns minutos caminhando pela fria estrada iluminada apenas pelas luzes da cidade, Atsushi de repente perdeu o equilibro e caiu de joelhos.

— Você está bem? — Kyouka rapidamente o acudiu.

— T-Tudo bem... Kyouka-chan. — Atsushi disse gemendo de dor ainda agachado. — Eu hoje fiquei muito tempo transformado... É por isso.

Kyouka logo abriu o sobretudo preto dele revelando a nuca escondida. Em seu pescoço havia uma enorme coleira. Era um cano massivo de ferro. Uma decoração que parecia garras afiadas estava por dentro e por fora. Essas estacas estavam rasgando sua pele, derramando sangue.

— É melhor tirar logo. — Kyouka estendeu a mão tentando tirar o colar.

— Não tem problema. — Atsushi disse sofrendo. — Sem essa restrição e dor... eu não consigo controlar o Tigre. Se ele sair descontrolado, você também estará em perigo.

— Mas0

— Viemos buscar vocês, Atsushi-sama. — Na escuridão onde as luzes da cidade não alcançavam um grupo de pessoas de roupas pretas os esperavam.

— Hirotsu... san. — Atsushi sorriu sofrendo enquanto segurava a coleira.

— Obrigado pessoal do Lagarto Negro... por ficarem de vigia. Algumas dezenas de roupas pretas abaixaram a cabeça em conjunto.

— Parece que conseguiu eliminar o inimigo como esperado. Bom trabalho. — O cavalheiro que já havia passado da meia idade na frente de todos acenou curtamente com a cabeça. — Agora, por favor, vá para a base  se tratar. Após isso, relate para o Chefe.

— Eu sei. — Atsushi acenou com a cabeça. — Como sempre, o plano do Chefe foi perfeito. Atrair o inimigo para a escuridão e eliminá—los. E também mandou a Kyouka-chan de antemão para achar as bombas.

Atsushi se apoiou debilitadamente com as mãos nas pernas para levantar.

— Eu irei imediatamente falar com o chefe. Ele já deve ter o próximo trabalho. — Atsushi disse olhando em linha reta. — Aquela pessoa me salvou. Me salvou do inferno e me convidou para a Organização. Eu nunca  irei trair as ordens dele.

E então saiu a andar. Com uma expressão inocente, carregando a escuridão.

— Informe para o Chefe... Para o Dazai-san que eu estou indo imediatamente.

A porta do café abriu e um homem entrou.

— Ah. — Tanizaki disse ao se virar e confirmar quem era. — Bom trabalho. Está atrasado, não é?

— Tá atrasado. — Kunikida que também havia se virado, disse. — Estamos com um problema por causa desse novato que você trouxe. Faça alguma coisa.

O homem alto coçou a cabeça e disse:

— Ahh... Me atrasei.

O homem veio desajeitadamente em direção à mesa. Como quem estava cansado, olhou para a garçonete que limpava o chão e disse calmamente:

— Um curry. — E se sentou ao lado do Akutagawa.

Tinha cabelo castanho cobreado e um casaco cor de areia. Em seu queixo, uma barba malfeita. Fazia uma cara que parecia estar concentrado   em algo e ao mesmo tempo não pensando em nada. Não dava para saber.

— Por que se atrasou, Oda? — Kunikida perguntou.

— A tia da tabacaria do segundo distrito me pegou pra conversar. — Oda respondeu com uma voz simples.

— De novo? — Kunikida fechou a cara. — Você toda hora é pego na história comprida de algum idoso. Tudo bem em ter respeito pelos mais velhos, mas é um problema se atrasar três horas para o trabalho. Você tem  que interrompê-los no meio sem hesitar.

— Eu interrompi. Mas ninguém me leva a sério. — Oda respondeu com uma cara misteriosa.

— Ninguém sabe dizer até que ponto você tá falando sério ou não... — Kunikida disse incomodado. — Então pelo menos faz uma cara de que tá incomodado pra perceberem que você quer voltar.

— Eu fiz mas ninguémpercebeu.

— Sério? Faz ela agora pra eu ver.

Oda olhou inexpressivelmente para o Kunikida e se calou. Kunikida esperou alguns segundos e perguntou sem entender:

— Cadê?

— Estou fazendo agora.

— Ah, vejo... — Kunikida disse, já cansado.

Tanizaki que olhava os dois apreensivos, disse, tentando intervir na situação:

— Akutagawa-san, eu sei que já conhece ele, mas vou apresentá-lo novamente. Esse é Sakunosuke Oda-san. Ele entrou na Agência há dois anos e a partir de hoje será o seu mentor.

— Espero que me guie, Oda-senpai. — Akutagawa abaixou a cabeça honestamente.

— Tá. — Oda acenou sem mudar a expressão. — Está comendo direito, por sinal?

— Sim.

— Ótimo.

Em frente ao Oda que assentia estava a garçonete segurando um prato de curry. Oda agradeceu apenas acenando com a cabeça.

— Se o Oda-senpai não tivesse me tirado da margem do rio, eu teria morrido.

Enquanto olhava o Akutagawa abaixando a cabeça dócilmente, Kunikida disse:

— Bom, é um hábito do Oda salvar órfãos.

— Não tenho nenhuma razão em específico. — Oda disse e então comeu uma colherada do curry com a colher de prata. — Esse curry... não está nem um pouco apimentado. Fizeram para uma criança?

E então se virou para uma funcionária no fundo da loja.

— Moça, desculpe mas não dá para apimentar um pouco...

Foi nesse momento que Akutagawa atacou Oda. Liberou suas lâminas mortais sem nenhum aviso ou intenção de matar. Da linha de visão do Oda, a afiada lâmina que alvejou sua cabeça se aproximava. Se ela o acertasse a cabeça seria cortada sem nem fazer barulho e cairia no chão. Oda recebeu o ataque com a colher de prata. Ele empurrou a lâmina com a colher e a fez mudar de trajeto. Sem nem se virar.

A lâmina que voltou ao lado de sua cabeça passou queimando o ar. Oda, olhando de relance para isso, disse a funcionária:

— Dá para trocar por um curry apimentado? Do fundo do café, a funcionária disse que sim.

— Ei...

Ao mesmo tempo, os membros da Agência que haviam presenciado uma tentativa de assassinato estavam horrorizados. Kunikida forçou sua voz para sair.

— O que foi isso?

Oda disse olhando para ele:

— Curry é melhor apimentado.

— Não isso! — Kunikida gritou. — O que pensa que tá fazendo, novato?!

Não importa como olhe, o ataque de agora foi pra cortar a cabeça dele!

— O que estou fazendo? — Assim que Akutagawa respondeu mais duas lâminas atravessaram o ar.

Lâminas cinzas alvejaram precisamente o rosto e o coração de Oda. Mas ele desviou a cabeça trivialmente e inclinou o corpo, evitando o ataque. Antes e depois de desviar do golpe ele não olhou uma vez se quer para as lâminas.

—Ei!

— Quando eu salvei ele no rio, ele me atacou do nada. — Oda disse com uma expressão bem normal. — Como eu desviei, o Akutagawa disse que queria que eu ensinasse ele a ficar forte. Eu respondi que não sei como tornar alguém forte mas se ele se tornasse meu kouhai na agência eu poderia ao menos guiá-lo. Por isso ele tá aqui agora.

Oda apontou para Akutagawa e ele acenou honestamente.

— Eu tive sorte. Eu nunca tive uma chance dessas. — Akutagawa assentiu enquanto continuava a atacar com as lâminas diagonalmente e o Oda continuava a pará-las facilmente com a colher.

— Não, não, não... — Kunikida balançou a cabeça. — É verdade que a Habilidade do Oda é forte mas... Pensar que vocês iriam lutar dentro do café! De qualquer forma, pare! Se você quer se tornar forte, faz isso num ginásio pelo menos!

— Se meus inimigos estivessem me esperando num ginásio eu não teria problemas. — Akutagawa disse com o olhar franzido. — Eu posso encontrar eles na rua, numa loja, ou dentro de um trem... Seja como for, eu preciso  lutar de acordo com o lugar. Se não, não tem sentido.

— Inimigos?

— Parece que ele quer matar duas pessoas. — Oda disse olhando para Akutagawa. — Por isso ele veio refinando sua Habilidade até hoje.

— Um deles, eu não sei o rosto nem nada sobre. — Akutagawa continuou. — Eu o chamo de “Homem de Roupa Preta”. Ele sequestrou minha irmã. Eu vou derrotá-lo e trazer minha irmã de quem fui separado de volta.

— Separado? Da sua irmã? — Tanizaki olhou surpreso para Akutagawa.

— Ah... Por isso você ficou bravo com a história da minha irmã agora há pouco.

Naomi perguntou para Akutagawa:

— Você sabe onde sua irmã está?

— Não sei nada. Não sei nem se está viva. Dentro dos olhos de Akutagawa, que normalmente não demonstrava emoções, uma fraca luz tremeu. — Mas eu vou encontrá-la sem falta.

— É essa pessoa que você quer encontrar pela Agência. — Kunikida cruzou os braços. — De fato, detetives podem acessar informações da polícia sobre desaparecidos e também é fácil conseguir informações do submundo mas...

Tanizaki continuou a falar preocupado:

— Mesmo assim, achar alguém nessa cidade tão grande não é fácil.

— Ufufufu... O que estão dizendo, pessoal? — Naomi disse levantando a ponta dos lábios alegremente. — Akutagawa-san, você certamente fez uma escolha inteligente. Porque não há organização no mundo mais apropriada para achar sua irmã do que a Agência de Detetives. — Ela olhou como quem se divertisse para todos e perguntou numa voz baixa como se estivesse contando um segredo,  Não estou certa?

— Sim...

— É mesmo... Tem razão. Todos acenaram com a cabeça.

— Akutagawa-san, considere sua irmã já encontrada. — Naomi levantou sorrindo. — Então, vamos embora. Irei lhe apresentar o melhor detetive do mundo!

Quartel General da Máfia do Porto. Um prédio preto elegante construído  na melhor área residencial de Yokohama. Visto de fora, parecia uma loja de departamentos nova, mas por dentro era uma fortaleza impenetrável. Todas as janelas eram à prova de balas e explosões. As paredes internas defendiam até de um obus, se tornando uma construção especial. Tinha o poder defensivo de uma fortaleza militar.

Atsushi andava por dentro desse prédio. Enquanto passava por seus colegas armados e calados, avançando por um longo carpete felpudo de alta classe parecido com os que os nobres usavam para ter uma audiência com   o rei, ia para o seu destino.

Ao chegar no final do corredor, parou em frente a uma robusta porta dupla.

— Chefe, é o Atsushi. Eu vim atendendo ao seu pedido. Após alguns segundos, uma voz disse:

— Entre.

— Com licença.

Dentro do largo escritório do chefe, havia uma atmosfera única. Tanto os castiçais para iluminar como a mesa posta no centro da sala eram antiguidades de alta classe sem mais nenhuma igual no mundo. Porém qualquer objeto decorativo parecia um intruso perdido naquele quarto.

A presença da morte o preenchia. O chão e o teto eram pretos. As paredes também eram pretas. Com apenas um comando, uma das paredes ficava transparente dando uma visão ininterrupta da cidade de Yokohama, mas essa função não havia sido usada nenhuma vez durante esses quatro anos.

Tudo era para proteger o atual chefe, Dazai, de tiroteios e bombeamentos.

— Sua cabeça está alta, Comandante de Assalto. — Um executivo no fundo da sala falou. — Você está na presença do Chefe. Abstenha-se.

Atsushi prontamente se ajoelhou com uma das pernas e abaixou a cabeça profundamente.

— Peço perdão.

Havia duas pessoas nesse quarto.

O primeiro era um executivo de escolta em pé imóvel no fundo da sala. Usava um terno e chapéu pretos. Pela sua altura, parecia ser um menino, mas ele era o segundo mais poderoso da Organização de maior grau executivo. O mais forte Usuário. O outro sentado num trono preto no meio da sala, falando num transmissor, era o dono do aposento.

— Tudo bem, Chuuya. — Bom trabalho, Atsushi-kun. Fico feliz em ter voltado. — Era uma voz que continha a dignidade de um rei e a crueldade   de um demônio ao mesmo tempo.

O chefe que controlava a gigante organização criminosa Máfia do Porto, Osamu Dazai. Seu sobretudo e sapatos pretos eram produtos da mais alta qualidade que invejariam até um nobre europeu.

— Obrigado... Dazai-san. — Atsushi respondeu nervoso ainda de cabeça abaixada.

Imediatamente a voz grossa do Chuuya interrompeu. — Hã? Chame ele  de Chefe, aprendiz. Quer ser morto?

— Calma, calma, Chuuya. Não tem problema. — Dazai disse recruzando as pernas. — Por sinal, eu quero falar com ele sozinho. Chuuya, saia um pouco.

— HÃ?! — Chuuya mudou completamente e começou a falar de maneira rude. — Como é que é? Um mero membro que não é nem um executivo nem um secretário encontrá-lo pessoalmente é a exceção das exceções.

— Por quê? O Atsushi-kun é um subordinado de confiança.

— Não importa se é de confiança. Ele é controlado pela própria Habilidade. O que você vai fazer se ele estiver com uma bomba sem nem ele mesmo saber? Já aconteceu, afinal. Não tem como permitir vocês dois ficarem sozinhos.

Dazai olhou para Chuuya, rindo.

— Permissão? Eu não te dei permissão, Chuuya. Você é um executivo e  eu o chefe. Uma ordem é absoluta na máfia. Você precisa respeitar a cadeia  de comando.

Chuuya se calou insatisfeito e saiu andando violentamente.

— Ah é? Então faz o que quiser. — Disse de mau humor quando passou   a passos largos pelo Atsushi.

Após passar pelo Atsushi, parou e disse sem olhar para ele:

— Se você deixar o chefe morrer, não vou te perdoar, aprendiz. Porque  eu que vou matar ele um dia.

E então, abrindo a porta num estrondo, saiu.

— Ai, ai. Eu adoro ver o Chuuya sofrendo, porque não sabe o que fazer comigo, já que ele me odeia tanto ao ponto de querer me matar, mas como  sou o chefe, ele deve proteger ao mesmo tempo. Nessas horas, eu acho que  fui longe demais. — Dazai riu e se virou para o Atsushi. — Pode descansar, Atsushi-kun.

Atsushi levantou e colocou os braços para trás.

— Muito bem, já sei do resultado da operação. Parece que acabou com a tropa inimiga sozinho.

— Sim.

— A tropa que você eliminou era composta por mercenários contratados por líderes militares estrangeiros. Mas quem deve estar movendo as cordas  é o Ministro que está no Centro. — Dazai disse gentilmente enquanto cruzava seus longos braços. — Um plano de assassinato para a Máfia do Porto que controlou o direito de navegação na costa durante esses quatro anos. É lamentável... com o fracasso de hoje as dores de cabeça do Ministro vão aumentar ainda mais. — Dazai estreitou seus olhos de maneira feliz.

Fazia quatro anos que Dazai havia assumido como chefe. Durante esse tempo, a Máfia do Porto expandiu sua autoridade incomparavelmente mais rápido do que a outra geração. No judiciário, circulação de mercadorias, bancos e desenvolvimento urbano. Não há nenhuma instituição não só em Yokohama como em toda o distrito de Kanto que a Máfia do Porto não tenha exercido sua influência. E agora seu poder militar está em escala equivalente ao nacional.

Todos os feitos dela foram graças as habilidades do novo chefe, Dazai.

Havia o rumor de que ele não dormira nem uma vez desde que assumiu a posição chefe no lugar do antigo, Mori, há quatro anos.

— Muito bem... Eu sei que é repentino, mas vou explicar os detalhes do próximo trabalho. O Akutagawa-kun entrou para a Agência de Detetives de Yokohama. Com isso, a segunda fase do plano está feita. Vamos entrar nas preparações da terceira agora.

— Agência de Detetives? Terceira fase...? — Atsushi inclinou a cabeça. — Do que está falando?

— De um grande plano, Atsushi-kun. Irá surpreender você. — Dazai sorriu. — E para isso, a execução do seu trabalho é essencial. Conto com  você, Atsushi-kun. O Shinigami Branco da Máfia do Porto que desconhece o medo e massacra seus inimigos sem mudar de expressão.

Atsushi escutou essas palavras ecoarem pelo quarto como um som sinistro e serem absorvidas pelas paredes e teto até sumirem. E então falou:

— Não é verdade que eu não conheço o medo. — Disse com uma voz seca lembrando dos esqueletos do campo de batalha. — Eu tenho medo. Tenho muito medo de ser atingido por uma bala e ver meu sangue correr.

— Mas me foi informado que você continuou a massacrar os soldados inimigos sem mudar sua expressão.

— Sim... Eu tenho medo de lutar mas o meu corpo não sua nem uma   gota e não treme nem um pouco. Eu não tenho nenhuma reação como as águas calmas de um lago. Desde aquela vez.

Os olhos de Dazai se estreitaram.

— Desde aquela vez? — Dazai perguntou. — Aquele dia em que você desobedeceu minhas ordens?

Não havia emoção no rosto do Atsushi. Suas expressões, que já eram poucas, foram desaparecendo até que nada sobrou.

— Eu... — Sua voz estava tremendo. — Eu, naquela vez... — Atsushi caiu sobre seus joelhos e abraçou os seus braços. Todos os seus dedos brancos fincados nos braços tremiam.

Era um tremor de medo. Um temor puro mais profundo que a morte.

Um grito da alma.

— Não, eu, eu...

— Eu concordo que você está com medo. Você era um menino covarde que procurava um meio de fugir diante de seus inimigos. Mas naquele dia você mudou. Sabe por quê?

Atsushi estava tremendo. De trás de suas orelhas, um suor frio escorria sem parar.

 

— Só medo apaga o medo. Desde aquele dia você continua a sentir um medo ainda maior. Sem descansar um segundo... Suas reações são roubadas por um outro tipo. Nem armas, espadas ou a intenção de matar dos seus inimigos alcançam o fundo do seu coração. Porque ali já mora um medo monstruoso.

Dazai olhou com olhos frios para Atsushi. Atsushi não estava ouvindo as palavras do Dazai. Seu suor frio caia e ele tremia dos joelhos até as pontas  dos pés. Não seria estranho se desmaiasse a qualquer momento.

— Ainda não consegue fugir? Do medo dele ter morrido?

— Não, não, eu, eu não... Eu não estou com medo...

Já não conseguindo mais controlar o seu tremor, Atsushi caiu no chão.

— Por favor, me ordene, Dazai-san. — Atsushi conseguiu de alguma maneira fazer sua voz sair por detrás de seus dentes trêmulos. — Imediatamente. Eu nunca mais irei desobedecer suas ordens. Nunca, nunca, nunca.

— Eu vou acreditar nessas palavras. — Dazai disse enquanto olhava friamente por cima do Atsushi. — Minha secretária vai te entregar os documentos necessários. Quero que verifique os detalhes. — De uma porta  no fundo, uma secretária apareceu sem fazer nenhum barulho.

Era uma menina silenciosa com mais ou menos a mesma idade do Atsushi. Vestia um terno preto justo como se fosse sua própria pele. Seu cabelo preto comprido estava amarrado por trás da cabeça.

Era uma menina com um olhar de que só de estar parada ali, todo o som a sua volta era absorvido.

— Gin-chan, o mapa e a carta.

— Aqui.

A secretária chamada Gin entregou um envelope preto para Dazai.

Recebendo, Dazai se virou para Atsushi e disse:

— Atsushi-kun. O seu próximo alvo é a Agência de Detetives.

O escritório da Agência de Detetives estava uma confusão. Ficava num prédio de quatro andares. Caos e materiais de trabalho empilhados e na mesa, a figura dos membros ferozes e trabalhos a fazer. As posições que existiam na Agência eram divididas principalmente entre Membros do Escritório e Membros de Investigação. Os que ficavam no escritório trabalhavam com documentos, contabilidade, comunicação e negociações fora da Agência e eram responsáveis pelo processamento de informações. Os de investigação eram os que eram aptos a irem a lugares perigosos e resolver os casos. Por causa disso, todos os membros investigativos possuíam alguma Habilidade.

Menos um.

— Procurar uma pessoa? Quero não, trabalho demais. — Com as pernas em cima da mesa e chupando uma bala, Edogawa Ranpo disse.

— Ranpo-san, por favor... — Olhando preocupados para o Ranpo estavam as mesmas pessoas do café, Tanizaki, Oda, Kunikida, Akutagawa e Naomi.

— O novato Akutagawa-san teve sua irmã mais nova separada dele. — Tanizaki tentou intervir. — Ele não consegue ficar calado ao pensar na infelicidade da sua irmã... Porque ela foi sequestrada pelo Homem de Roupas Pretas.

A expressão de Ranpo, que estava sentado, contraiu um pouco.

Enquanto olhava para o teto, moveu seus olhos para a direita e esquerda e depois para a direita de novo. E então disse:

— Como ele é e qual seu nome?

— Não sei. — Akutagawa disse. — Mas seu eu ouvir sua voz com certeza saberei que é ele.

— Hah... — Ranpo inclinou sua cabeça para trás e deu um longo suspiro.

— Por que nesse mundo só tem idiotas, ignorantes e gente irrelevante?

— O quê? — Os olhos de Akutagawa se estreitaram. — Qual deles eu sou?

— Calma, calma. — Tanizaki acalmou Akutagawa apressadamente.

— Tá ouvindo? Eu vou falar logo. — Ranpo falou enquanto levantava. — Eu sou o melhor detetive do mundo mas eu não investigo casos que não me interessam. Ou seja, o problema está em você.

— Não precisa investigar. — Akutagawa disse pálido. — Eu vou encontrar a minha irmã... a Gin, sozinho.

Ranpo deu um suspiro, tirou um pedaço de papel do bolso e colocou em cima da mesa. Akutagawa olhou por um instante para o papel e voltou a olhar para Ranpo.

— O que é isso?

— O Cartão Tá Bom. — Disse Ranpo.

— Tá bom... quê?

Ranpo falou despreocupado rolando uma bala no meio da boca:

— Eu por acaso já tinha ouvido que você está procurando uma pessoa, então era óbvio que cedo ou tarde você viria se consultar comigo. Por isso   eu já fiz a investigação preliminar e já tenho uma ideia do paradeiro... Sua irmã está viva.

— O quê?! — Akutagawa de repente se curvou sobre a mesa. — Onde?! Onde a Gin está?!

— Por isso esse cartão, eu tô falando.

Akutagawa olhou novamente para o pedaço de papel. Era um papelão retângulo que cabia na palma da mão. Sua face branca estava separada por seis linhas.

Eu já expliquei as circunstâncias para todos os investigadores e todos terão que carimbar nesse cartão como prova de terem aceitado. Essa é a condição para eu procurar sua irmã. Por sinal, eu já recebi do Presidente.

Em uma das seis partes havia um carimbo do Tá Bom num vermelho brilhante. As outras cinco partes ainda estavam em branco.

A condição para ganhar o carimbo está escrita atrás do cartão. Basicamente é se alguém te pedir alguma compensação e você cumprir, ganha um carimbo.

Dizendo isso, Ranpo pegou o carimbo da madeira e rolou ele em cima da mesa.

— Ou seja, se eu conseguir a permissão de todos, você vai me dizer onde minha irmã está? — Akutagawa perguntou pensativo. — Mas por que o Presidente já carimbou?

— Porque eu sou um grande detetive. — Ranpo disse chupando a bala. — Além do mais foi o Presidente que pediu para eu fazer esse cartão. Primeiro fui consultar com ele sobre o que eu deveria fazer com seu pedido. Depois de fazer isso, ele me disse que o novato deveria conseguir a aprovação de  todo mundo. Bom, não posso recusar a ordem do Presidente.

Akutagawa ficou pensativo por um tempo olhando para o cartão. Mas, de repente, como se tivesse se decidido, pegou o pedaço de papel.

— Foram quatro anos e meio. Eu procurei minha irmã por quatro anos e meio. Enquanto metade do meu corpo era rasgada, enquanto derramei mais sangue do que é possível medir... Ir atrás de carimbos não é nada.

— Então é assim. — Ranpo disse sorrindo. — Eu te desejo boa sorte, detetive novato. Até porque... — Ranpo interrompeu suas palavras ali e fazendo uma cara séria disse como que profetizando. — O seu sofrimento vai começar depois que você conseguir os carimbos.

Depois daquilo, Akutagawa levou quatro semanas e alguns dias aproximadamente para conseguir todos os carimbos. O primeiro a marcar foi o Tanizaki. Ele não deu nenhuma condição. Logo depois de ouvir a explicação do cartão, ele carimbou bem na frente do Ranpo.

— Se eu estivesse no seu lugar... — Tanizaki disse sorrindo. — Se a Naomi tivesse sido raptada e eu estivesse procurando por pistas... Com certeza, eu não conseguiria esperar até o cartão estar completo. Eu acho que bateria no Ranpo-san até ele me falar onde ela está. Eu acho você admirável, Akutagawa-san. Por isso, estou bem em carimbar assim.

Akutagawa olhou calmamente o Tanizaki carimbando embaraçado o cartão. E então, após olhar o cartão carimbado, olhou novamente para Tanizaki e disse — Obrigado.

— Se estiver tudo bem, eu gostaria de te dar um conselho. Você ouviria? — Tanizaki fez uma cara séria enquanto entregava o cartão. — Se quando você for buscar sua irmã encontrar o Homem de Roupas Pretas, não demonstre perdão. Esqueça que você trabalha aqui e a justiça da sociedade. Mesmo que você acabe o matando, não é sua culpa. Não há justiça e moral mais importante do que sua irmã nesse mundo.

Kunikida franziu dizendo — Ei, ei. — Mas não disse nada além disso. Akutagawa falou aceitando o cartão:

— Entendi. Se eu conseguir resgatá-la, você será o primeiro a saber, Tanizaki-san.

O segundo a carimbar foi o detetive mais novo da Agência, Kenji Miyazawa.

— Eu não me importo de carimbar agora também, mas... — Kenji falou com uma voz animada típica de um menino. — Como o Ranpo-san disse que deveríamos dar uma condição... Vou aproveitar que estava precisando de ajuda para um trabalho. A Maeda-onesan está precisando de ajuda na fazenda, você ajudaria? Vai ser tranquilo, eu vou te ensinar os procedimentos! É um trabalho simples de verdade que qualquer um conseguiria fazer!

Era plantar arroz.

Seria algo que depois todo comentariam na Agência. A expressão do Akutagawa diante do vasto arrozal. Foi somente naquele momento em que o Akutagawa, que até então não mudava sua expressão, fez uma cara de perplexo naquele nível.

— Vamos começar logo! — Disse o Kenji animado com roupas e botas próprias para plantação. — Está tudo bem! Se você acordar cedo e trabalhar até a sua hora de começar na Agência, você acaba na semana que vem ou    na próxima!

Não eram um ou dois arrozais. Era um vasto arrozal numa depressão rodeada de montanhas a perder de vista.

Será que em duas semanas acabaria? — Akutagawa disse apenas movendo os lábios, sem emitir voz. Talvez não.

— Ei, desculpe. Realmente está tudo bem por você? — Kenji disse se desculpando. — Tem a sua irmã... Será que não prefere fazer outro trabalho?

Akutagawa ficou olhando furioso para o arrozal por um tempo até que falou:

— Eu que falei que pagaria a compensação. Além do mais, no lugar em que cresci, quem não conseguia manter as provisões direito morria. Vamos lá.

Akutagawa pisou no arrozal.

— Ahh, vestido assim não pode. — Kenji disse sorrindo. — Por favor, vista as roupas e as botas próprias para a plantação. E coloque um chapéu de palha também! Acho que vai combinar perfeitamente com você!

No primeiro dia, enquanto ele aprendia os procedimentos com Kenji, a sua resolução acabou. No segundo dia, como não estava acostumado com aquele tipo de trabalho, machucou suas costas. No terceiro e quarto dia, ficou de repouso. No quinto dia, como aprendeu a plantar usando sua Habilidade, conseguiu aumentar substancialmente a eficiência  do  trabalho.

Kenji aplaudiu feliz e elogiou Akutagawa.

Ele pegava a plantadeira de arroz emprestado do fazendeiro a fazendo competir com sua Habilidade e velocidade. Em dias de chuva ficava de patrulha para que não inundasse. Comia bolinhos de arroz que havia ganhado provenientes do próprio arrozal. Akutagawa agora trabalhava em silêncio sem fazer cara feia.

Enquanto olhava para o arrozal, disse:

— Isso me lembra da pequena plantação de batatas que fizemos atrás do lugar em que dormíamos na favela.

No décimo dia, ocorreu um problema.

Quando estava indo para o campo como sempre, metade das plantas de arroz estavam pretas e secas. Depois de examinar as plantas por um tempo, Kenji disse que provavelmente a causa era a água usada na irrigação. Os dois ao investigarem os canais de irrigação descobriram que próximo a nascente havia vazamento de material orgânico solúvel prejudicial a água vindo de despejo ilegal de resíduos industriais.

A Agência investigou as embalagens desses resíduos e logo identificaram o culpado. Era uma companhia farmacêutica que possuía uma fábrica de remédio de produção em grande escala.

Aproximadamente metade do arrozal foi perdido. Os dois tiveram o azar de perder a plantação que haviam acabado de terminar.

— Não há o que fazer. Vamos terminar de plantar nos arrozais que estão bons.

Mas Akutagawa não conseguia aceitar. No dia seguinte, foi sozinho até o prédio da companhia farmacêutica. Imobilizou um segurança com sua Habilidade o fazendo desmaiar e foi até o andar do escritório. Se ele descobrisse quem estava gerenciando o despejo de resíduos industriais ficaria claro quem planejou o despejo. Se apertasse o culpado, ficaria claro qual superior tinha ordenado o despejo. Seu plano era repetir isso até que encontrasse o mandante principal.

Mas bem na hora que o Akutagawa foi entrar no escritório, alguém o chamou por de trás. Ali estavam Kenji, Tanizaki e Oda.

— Vamos voltar. — Kenji falou.

— Isso não foi nada. — Kenji falou quando se tornaram só ele e o Akutagawa ao longo do caminho. — Os desastres causados pela própria natureza são muito mais cruéis e absurdos. Enchentes, friagens, secas, pestes. Algo que levou anos para fazer, acaba num instante. Mas dessa vez sobrou metade. E se a Agência provar o despejo ilegal, eles terão que pagar uma indenização para as vítimas. Não dá para ganhar indenização do sol e  dos insetos. Isso não existe.

— Não consigo aceitar. — Akutagawa se voltou para o Kenji com um olhar severo. — Como assim indenizar? Então desde que pague, uma má intenção é perdoável? Então de fato os ricos sempre serão perdoados de seus crimes. Se há como deter a maldade nesse mundo, é só por um meio. A vingança. Colocar à mostra as cabeças dos inimigos pelo caminho. Gravar  a punição e o terror neles. Não há outro meio de se proteger... Não havia.

Depois de pensar um pouco sobre isso, Kenji disse:

— Desculpe, talvez não haja mesmo.

Então, os dois ficaram sem falar nada por um tempo. Continuaram a andar em silêncio e quando perceberam estavam de frente para o arrozal. Um sol se pondo da cor de pagode brilhava completamente sobre o arrozal como se o queimasse. Por detrás da montanha, a presença da noite se aproximava.

— A noite vem e o dia vem. — Kenji disse olhando para o arrozal. — A primavera vem e o outono vem. Cada um de uma vez. Nós plantamos a grama, a árvore seca, os animais dão cria e então morrem... Vivendo junto    a terra, eu fui entendendo que a natureza é assim, compostas por metades. Quando aconteciam tempestades e deslizamentos eu achava que só essas coisas ruins iriam continuar para sempre, mas, na verdade, tanto as coisas boas como ruins constituem a natureza... Viver é o mesmo. Todos na vila pensam assim também.

— Eu não entendo. — Akutagawa disse olhando para a mesma paisagem.

— Um bom acontecimento e uma calamidade são dois lados que foram divididos igualmente? Você diria essas mesmas palavras para meus companheiros que morreram na favela?

 

 

— Estou dizendo que você está na metade que sobrou, Akutagawa-san.

— Kenji olhou para Akutagawa. — Você sobreviveu. E você tem uma Habilidade muito forte. Todo mundo assim pôde ficar na metade que sobrou.

Kenji interrompeu suas palavras ali e sorriu com o pôr do sol brilhando dentro de seus olhos.

— Por isso com certeza sua irmã vai voltar. A metade boa vai esperar bastante a partir de agora. Assim é a natureza.

Akutagawa ficou olhando para o Kenji, pensando minuciosamente sobre o assunto até que direcionou os seus olhos para o pôr do sol.

— Entendo. — Akutagawa disse com uma voz contida. — Os meus companheiros que morreram me permitiram ficar nessa metade.

Os cumes das montanhas ficaram cobertos do roxo da noite. Ninguém falou nada.

Os dois terminaram os plantios que sobraram em quatro dias. No último dia, Kunikida foi até a área dos arrozais para olhar como estava indo e viu os dois sujos no meio do arrozal conversando.

— Se você quer ver se a plantação está realmente boa ou não, a melhor coisa é comer esses insetos que estão ai! Os insetos de uma boa plantação são bem gostosos fervidos!

— Tem razão. Quando eu não tinha o que comer, eu cavava a terra e comia os insetos. As larvas que tinham nas terras intocadas das montanhas era bem mais gostosos do que nas florestas e nas terras aradas.

— Dessa vez, vamos comê-los assados!

— Estou ansioso.

Olhando os dois conversando, Kunikida murmurou vagamente:

— Estão se dando bem...

Após terminarem o plantio sem problemas, Akutagawa ganhou o carimbo do Kenji. No corredor da Agência Kenji disse sorrindo:

— Quando der o arroz, eu vou trazer 10% para você. Aguarde ansioso.

— Pelo jeito não vou ter que me preocupar em passar fome por um tempo. — Akutagawa disse.

Bem nessa hora, Kunikida passou por eles. Akutagawa perguntou como ia o progresso da investigação do despejo ilegal.

— Parece que já está resolvido. — Respondeu. Depois, olhou profundamente para Akutagawa e perguntou — Você... pegou um bronzeado?

— Não. — Akutagawa respondeu.

— Mas abaixo do seu pescoço há uma marca...

— Não. — Akutagawa disse sem expressão.

— É mesmo? Bom, tanto faz... Estava perguntando sobre o caso do despejo, né? Não se preocupe. Logo estará acabado. A transportadora que levou os resíduos confessou na hora. Só falta buscar o mandato de prisão   para a companhia farmacêutica.

— Excelente. Mas por que a transportadora confessou assim tão fácil? Para um negociante ilegal, vender seus contratantes deveria ser um tabu.

— Claro que confessariam. Não tem ninguém nessa cidade que queira irritar de verdade o Kenji.

A próxima foi a vez do Kunikida.

Desde que ouviu a história do Cartão Tá Bom do Ranpo, ele já havia decidido qual compensação pediria do Akutagawa. Era uma ideia que já estava formada em sua cabeça há mais de um ano. Por isso, quando todos ouviram os detalhes da compensação, concordaram com “Ahh, claro que o Kunikida-san pediria isso”.

Seis e meia da manhã.

Dormitório da Agência de Detetives Armados.

— Ei, novato! Tá na hora de ir para o trabalho! Acorda e se arruma! — Os gritos do Kunikida ecoavam na frente do dormitório.

— Já se passaram dois minutos e meios da hora de acordar! A partir de hoje você vai ter que seguir o cronograma que eu montei por duas semanas! Eu vou reformar o seu estilo livre demais de trabalho como dos seus precedentes! — Kunikida gritava apontando para seu relógio de pulso.

— Vamos, acorde! Vinte e dois minutos para tomar o café da manhã, dezoito para se arrumar, dezesseis e trinta segundos para ir para o trabalho    e começar a trabalhar, seis minutos e dez segundos depois de fazer as preparações para o trabalho! Meus cálculos são perfeitos e por isso têm sentido! Se entendeu vai logo e-

— Estou aqui, senpai.

Uma voz veio de cima da cabeça do Kunikida. Akutagawa estava no telhado do dormitório olhando para o nascer do sol. O gentil ar da manhã tremulava seu sobretudo cinza. Sem piscar nenhuma vez, ele observava de cima do telhado a paisagem urbana tingida pela cor da manhã.

— Você tá acordado?

— Eu tenho o sono leve. — Akutagawa disse olhando a paisagem. — Além disso, acordando cedo, eu percebo como a cidade está. A chegada dos perigos e problemas é mais visível de manhã. O barulho de um carro em   fuga. O cheiro de gasolina queimando. O apito de um navio transportador que ultrapassou o limite de carga...

Ali interrompeu suas palavras e mudou seu olhar para Kunikida que estava parado em frente ao dormitório.

— Está na hora de irmos, não? Estou descendo. — Dizendo isso, Akutagawa levantou o seu corpo com sua habilidade e com destreza desceu  do telhado.

— Ahh... E o seu café da manhã? — Kunikida perguntou para Akutagawa.

— Não preciso.

— O que? Assim não pode. O café da manhã é a refeição principal do  dia. Se você não come de manhã, o pâncreas fica sem estímulo por dez minutos. Ai quando você vai almoçar e jantar a habilidade de controlar a quantidade de açúcar no sangue diminui. Por causa de uma refeição pulada, a sua performance no dia cai. Por isso, para um dia de trabalho ideal é preciso um café da manhã ideal.

Akutagawa sem mudar sua expressão, passou pelo lado do Kunikida que passava seu sermão e começou a andar.

— Ei, espere, Akutagawa! Escute até o fim o que estou falando!

Se fossem expressar em poucas palavras as preocupações do Kunikida seria assim: Os funcionários da Agência são livres demais.

Para Kunikida, que amava um planejamento de trabalho infalível, a conduta livre demais dos funcionários era a origem de suas constantes dores de cabeça. Fosse durante o trabalho ou atendendo os clientes, a flertação continua entre os irmãos Tanizaki, o Oda que se atrasava porque ficava preso nas conversas das tias da vizinhança, a Yosano que dissecava  três ou quatro vezes os pacientes fingindo tratar deles. O Kenji que sumia    do nada dizendo que uma vaca ia parir e o grande detetive que só resolvia os casos que lhe interessavam, Ranpo.

Claro que havia um motivo apropriado para cada um poder fazer o que queria. Porque justamente o presidente da Agência era quem permitia a liberdade deles, Kunikida não podia corrigi-los. Por isso, ele teve que tolerar até agora.

Porém, para começar, as palavras de que Kunikida mais gostava eram “Tudo deve ocorrer como planejado” e as que odiava eram “Bom, tudo bem assim”. Como parte de um eterno sistema aspirando ideais, ele não pararia até que conseguisse o estado perfeito. E a Agência ideal na cabeça de Kunikida era algo que estava bem distante da de agora.

— Akutagawa, eu te nomeio membro do Comitê Disciplinar! — Declarou Kunikida.

Não era difícil para um membro da sociedade apontar o que era falta de seriedade no trabalho. E dada a atitude do Akutagawa, ele censuraria qualquer transgressão sem se preocupar nem um pouco se a pessoa era seu superior. Quem diria que ele seria a pessoa mais ideal para o Comitê Disciplinar. Uma ajuda divina, esse Cartão Tá Bom.

Mas...

— Ouça, Akutagawa. Como um membro do Comitê Disciplinar, você precisa mostrar o exemplo no trabalho. Em resumo, você precisa seguir todo um planejamento. Antes de você ir para o trabalho, primeiro organize os documentos do dia anterior e ligue para a Agência para saber    se não tem nenhum caso novo relacionado. Fazendo as coisas passo a passo você consegue fazer tudo o que planejou. Pensar na melhor forma de otimizar seu tempo e por de fato em prática é o caminho para obter os resultados ideais...

— Eu não gosto de ficar no escritório e trabalhar com a papelada.

— Você, espere aí!

— Mais importante, cadê o inimigo? A função em que eu sou bom é acabar com os inimigos da Agência invés de lutar contra papéis fracos.

— Não, mas to dizendo justamente que o trabalho não é só isso.

— Vou acabar com toda a papelada também.

— Para!

Também tinha vezes assim.

— Escuta. Hoje você vai aprender os procedimentos certos para a realização do trabalho. O pedido dessa vez é a expor uma organização especializada em raptos de crianças. A Agência foi contratada para questionar a testemunha do crime, ou seja, uma criança que foi vítima. Mas  as lembranças da vítima são memórias frescas de um menino de doze anos. Tenha bastante cuidado como vai fazer as perguntas.

— Ei, moleque. Fala como era a aparência do culpado que você viu. Se você não lembrar, vou te atirar do quarto andar.

— Eh, ahh... ahh...

— Não ameace ele, idiota! Akutagawa, você ouviu o que eu disse? Esquece as queixas, nós vamos é ser processados.

— Se não lembrar de novo, vou te atirar do quinto andar. E se mesmo assim não adiantar, te atiro do sexto. E se ainda assim não lembrar, vou te atirar do sétimo.

— Ele vai morrer do quinto andar!

— Ah é? Então deixa ao menos do terceiro...

— Tem algum sentido você perguntar isso?

— Vai dar trabalho. Vamos ter que pegar todo mundo que se encaixa nas características dadas pelo menino.

— Eu preciso te ensinar a agir em sociedade antes de podermos continuar com nosso cronograma...

E vezes assim, ele ignorava os procedimentos do trabalho. Ignorava as tarefas. Tentava destruir alguma coisa sempre. Não importava se era vítima, cliente ou criminoso, ele tentava sempre resolver tudo atacando-os com sua Habilidade. Mais do que por experiência ou hábito, essa sua personalidade parecia ser de nascença.

Quando Kunikida apontou para ele que quando trabalhou no campo com o Kenji estava sendo muito mais sincero, Akutagawa respondeu calmamente. Por causa do lugar onde cresceu, a importância de produzir sua própria comida estava cravada em seu corpo. Mas documentos não enchiam barriga. Mesmo quando tentou antigamente, nunca encheram.

O plano de cultivá-lo como membro do Comitê Disciplinar foi arruinado uma semana após começar.

— Akutagawa? Ei, Akutagawa, cadê você?! — Kunikida andava a passos largos pelo escritório.

— O que houve, Kunikida-san? — Tanizaki que estava trabalhando em sua mesa, perguntou.

— Akutagawa fugiu do trabalho com os documentos! Eu prendi os braços e as pernas dele com algemas, mas ele as cortou com sua Habilidade e... — Os punhos fechados de Kunikida tremiam. — Não tem mais jeito! Vou ter que reportar ao Presidente... Para tornar o Akutagawa num membro do Comitê Disciplinar, terei que instalar um sistema de vigilância, a criação do “Comitê Disciplinar Para Vigiar o Akutagawa Como Membro do Comitê”.

— Eu acho que isso vai ser um ciclo sem fim... — Tanizaki fez uma cara preocupada. — Mas o Akutagawa-san está aqui desde o começo.

— O quê? Aonde?

— Aí. Bem aí.

Tanizaki apontou para a mesa onde os clientes eram atendidos.

Não havia ninguém sentado ali... Não. Akutagawa estava debaixo da mesa. Enquanto franzia os olhos, escondia sua presença se juntando a escuridão.

— O que... O que você está fazendo? — Kunikida inclinou acabeça.

— Estou me escondendo da Yosano-sensei. — Akutagawa, que não possuía emoções, disse com uma expressão plácida.

— Hã?

— Parece que a condição que a Yosano-sensei deu para carimbar o Cartão Tá Bom foi de tratar ele quarenta vezes com a Habilidade dela. — Tanizaki falou com empatia. — Quando ele estava dizendo que se fosse só receber tratamento não importava quantas vezes... A Yosano-san pegou um machadinha de dissecação e uma serra-elétrica...

— Ahh, já entendi. Chega. — Kunikida fechou os olhos e balançou a cabeça. — Eu já sei o que aconteceu depois.

— Eu aguentei quatro vezes. — O olhar penetrante de Akutagawa brilhava na escuridão. — Mas além daquilo... existe um lugar que os humanos não devem pisar.

— Nem o Akutagawa aguentou ela... — Kunikida suspirou. — Bom, eu também fugiria. Mesmo assim, trabalho é trabalho. Você se esqueceu da promessa comigo? Essa semana está planejado para irmos expormos a organização que sequestra crianças. Por causa que precisamos melhorar o seu comportamento, estamos drasticamente atrasados no cronograma. Desse jeito, não cumpriremos o prazo dessa semana. O que vamos...

— A Organização criminosa está na sala ao lado.

— Quê?

— Já peguei eles. — Akutagawa respondeu sem mudar a expressão. — Se eles estavam sequestrando na intenção de ganhar dinheiro, há dois meios para isso, tráfico humano ou dinheiro de resgate. Se a criança for pobre, o primeiro. Se for rica, o segundo. Eu não tenho experiência com o primeiro, mas o segundo é minha área. Infelizmente eu sei bem demais como operam os grupos que sequestram crianças pobres para vender. Seguindo esse rastro, eu fui até eles. Eu peguei todo mundo que sabia da favela e separei    os que haviam trabalhado recentemente. Invadi o esconderijo de cada um e imobilizei todo mundo com a minha Habilidade. Deixei eles vivos para serem julgados pela justiça por precaução. Só que cortei os dedos dos pés de alguns que tentaram escapar...

Kunikida correu rapidamente para a recepção. Quando abriu a porta, ali estavam cinco homens amarrados e amordaçados deitados no chão. Quando perceberam o Kunikida, começaram a chorar e gemer.

— Mas o que...

Eram mais pessoas do que dava para contar. Ele havia investigado todas elas em apenas uma semana.

— Céus, o Comitê Disciplinar realmente não serve pra ele. Eu falei pra agir exatamente como planejado, mas... — Kunikida riu secamente coçando a cabeça. — Cadê o responsável por acabar o trabalho uma semana antes do planejado?

 

Oda e Akutagawa estavam correndo no canal subterrâneo de Yokohama. Oda corria pelas escuras condutas. Pulando a cerca de arame e passando pelos dutos de esgoto, saltava para o próximo nível. Movia—se como o vento

enquanto aterrissava em cambalhotas amortecendo o impacto.

Atrás dele, tecidos o atacavam.

Um tecido em forma de lâmina cortou o ar e interrompeu seus passos. Oda se desvencilhou da lâmina que pulou a sua frente e se agarrando a um duto do teto, acelerou todo seu corpo para frente como um pêndulo.

Depois, quando o aglomerado de lâminas que o atacavam foi quebrar o duto como se fosse um galho, Oda já havia soltado a mão e estava voando  para o próximo.

— Espere! — Um grito de uma besta atrásdele.

— Não vou. — Oda disse calmamente sem parar de respirar por um segundo.

A Habilidade do Akutagawa que o perseguia surgia atrás dele. Oda

virava a cabeça para se desvencilhar de todos os ataques, inclinava o corpo ou então mudava a trajetória com balas. Era como se houvesse uma barreira invisível evitando que os ataques chegassem até ele.

— O que foi? Estamos treinando para quando os seus inimigos fugirem. Leve a sério. — Oda disse enquanto corria. — A sua Habilidade é forte mas quando se trata de uma luta corpo a corpo, a fraqueza do seu corpo vem a tona. Desse jeito, tanto as deduções do Ranpo-san e os carimbos irão por água abaixo.

— Ha... Haha! — Akutagawa zombou enquanto corria por trás sem ar. — Por isso mesmo que você é o meu mestre! Mas...

Oda parou de repente surpreso.

— Isso aqui...

Ali havia uma sala sem saída envolta por paredes de pedra. Se não tinha para onde fugir, não tinha nenhum obstáculo que pudesse usar para se defender.

— Aqui é minha área. Eu fiz com que você corresse para um beco. Nem você será capaz de evitar um ataque de saturamento pelas minhas lâminas aqui.

Oda olhou ao seu redor e coçou a cabeça.

— Muito bem, a vitória é sua. — E então apontou para os pés do Akutagawa. — Por sinal, poderia tirar o pé?

— O quê? — Akutagawa levantou o pé confuso e olhou para o chão.

No chão havia marcas de balas gravadas. As seis balas que Oda atirou haviam tomado a forma da sola do Akutagawa onde ele estava pisando.

Surpreso, ele moveu o outro pé e ali também as marcas de balas estavam  na forma de seu sapato.

— Logo antes de você entrar nesse quarto eu atirei pro teto e elas ricochetearam e formaram esses buracos ai. O que você acha que teria acontecido se eu tivesse atirado um minuto depois?

— Elas estariam fora do meu campo de visão e teriam me acertado na cabeça... — Akutagawa respondeu com uma cara fechada.

— Exato. Mesmo assim, foi um ótimo trabalho o modo como controlou a direção para que o perseguido estava indo. Como recompensa, vamos comer um udon por minha conta.

Akutagawa perguntou depois de pensar um pouco.

— Udon? Por quê?

— Nenhum motivo além de ter me dado vontade. — Oda respondeu com uma expressão normal.

Akutagawa estreitou ainda mais os olhos e disse:

— Se é pra me recompensar, eu gostaria que carimbasse meu cartão. Só faltam você e a Yosano-sensei.

— O que pretende fazer sobre o carimbo da Yosano-san?

— Não tem problema. Amanhã eu penso em algo. — Akutagawa desviou o olhar discretamente.

— Hmm, eu pretendia fazer uma troca pra carimbar, — Oda falou — mas acabei de lembrar de um trabalho que quero que você faça para mim. É um trabalho muito fácil que até uma criança conseguiria.

Akutagawa assentiu e disse:

— Diga.

— A partir de amanhã, eu vou sair da cidade a trabalho por três dias. Eu quero que você tome conta da loja durante esse tempo.

— Loja?

— Um restaurante tradicional. — Oda disse. — É um restaurante que eu frequentava antes mesmo de entrar para a Agência. Infelizmente vou ter que viajar bem no dia em que prometi que ajudaria lá. Quero pedir pra você me substituir.

Oda falou para o Akutagawa que olhava suspeitando dele:

— O que foi? Lá não é muito movimentado. — Oda encolheu os ombros.

— Se você ficar brincando com as crianças acabará logo.

 

— Você me enganou, maldito Sakunosuke Oda...

Cinco, seis crianças subiam em cima do Akutagawa alternadamente.

— Yaaay!

— Waaaa!

— Um escorrega!

Gritando de alegria, ou melhor, berrando, usavam as costas do Akutagawa que estava caído como escorrega. Todas tinham menos de dez anos. Em volta deles, as que tinham menos de três olhavam com inveja para  as mais velhas.

— Foi mal, moço. — O dono do restaurante vestindo um avental amarelo disse rindo da porta do quarto. — Todos estavam tristes que o Oda-chan tinha saído em viagem. Mas pelo jeito, vão ficar bem. Bom, eu tenho que cuidar do restaurante então deixo o resto com você.

— Espe- — Quando abriu a boca para pedir ajuda sua cabeça foi acertada pela bunda de uma criança sendo forçado a fechá-la.

Ali era um quarto da residência adjacente ao restaurante. Akutagawa se protegendo com sua Habilidade como uma tenda em forma de triângulo pegou o celular e discou o número do Oda.

— Hmm, Akutagawa? — Ele ouviu a voz calma do Oda. — O que foi?

— Seu traidor. Como assim “o que foi”? — Akutagawa disse como quem fosse matá-lo. — É só brincar com as crianças que logo termina o caramba. Está claro qual era o seu objetivo principal. E que tanta criança é essa? Está formando um exército?

Além do trabalho na Agência, Oda também tomava conta de órfãos que não tinham para onde ir. Antes alugava o segundo andar do restaurante mas como ficou apertado, mudou todo mundo para a residência principal ao lado.

— São quinze crianças. Não tenho intenção de formar um exército.

— O problema não é esse... Não, deixa pra lá. — Akutagawa disse de mau humor. — Mas não dá pra sustentar essas crianças todas com o salário  da Agência. Como você consegue o dinheiro?

— Isso é segredo. — Pode-se ouvir um pequeno riso do outro lado da linha. — Eu entreguei uma carta para o dono do restaurante com uma lista   de todas as tarefas que quero que você me substitua nesses três dias em que estarei longe. Conto com você, Akutagawa. Cuide bem deles como o mais velho.

— Substitua? Ainda tem mais algu- — No meio de sua frase, Akutagawa percebeu algo. — Espera... O mais velho? Esse seria eu? Então você me considera um deles desde que me pegou na beira do rio?

— Então, conto com você.

— Peraí, seu maldi- — Akutagawa gritou em vão com a ligação sendo interrompida.

E então o inferno de três dias começou.

 

Primeiro dia.

A tarefa imposta ao Akutagawa era de um brinquedo. Gaiola, gira gira, gangorra. Trampolim para escorrega. E coisas nunca vistas. Com seu sobretudo, dava forma aos inúmeros brinquedos que as crianças menores imaginavam. E naturalmente, as crianças brincavam animadamente agarradas nos brinquedos que o Akutagawa criava com sua Habilidade, hora penduradas, hora pulando.

— Wow, incrível! — Uma das crianças gritava alegre suspensa até o teto com a roupa a segurando pela barriga.

— Mais uma vez! Faz mais uma vez! — As crianças pulavam até o teto e voltavam sacudindo o Akutagawa.

— Ahahahaha! Rápido! Rápido! — Em cima de algo semelhante a um dragão, voavam em alta velocidade pelo ar e de volta pelo chão, rindo estridentemente.

Começava as nove da manhã e seu único momento de folga era quando almoçava as três aproveitando que as crianças pequenas estavam dormindo. Depois só conseguia novamente quando era hora do jantar.

Akutagawa estava sozinho contra dez crianças pequenas que se moviam como máquinas eternas.

Quando todos estavam jantando, Akutagawa se encolhia no chão como se fosse um cadáver.

— Alguém... me mate... — Sem forças para mover um dedo sequer e respirando fracamente como um doente à beira da morte, Akutagawa se fundia ao chão sem conseguir resistir à gravidade.

— Bom trabalho, jovem. Não quer jantar? — O dono do restaurante perguntou ao Akutagawa caído.

— Não preciso. — Akutagawa respondeu com a cara de quem a alma já  foi embora. — Se eu comer agora, vou ter disfagia e morrer.

 

Segundo dia.

Akutagawa participou de um dia dos pais como responsável de uma das crianças.

Um assoalho velho cor de âmbar. Colados em uma das paredes, vários hiraganas. Da quadra, a voz do professor de educação física comandando soava. Uma parede branca recém-pintada lá fora.

E no fundo da sala de aula estavam os responsáveis de pé.

Todos estavam nervosos. Metade estava preocupado com o filho não causar nenhum problema durante a aula. E a outra metade...

— Essa pessoa do outro lado... É pai de quem?

— Ele tá encarando muito a professora.

— Está tudo bem? Parece um assassino que vai matar todo mundo só olhando...

De ambos os lados do Akutagawa, parado em pé sem expressão, os responsáveis sussurravam preocupados. Mas o próprio não ligava para nada. Apenas olhava para a aula acontecendo sem se mover ou pensar em nada.

— Muito bem, quem pode ler esse kanji? — Perguntou a professora enquanto apontava para o kanji de casa escrito no quadro-negro. Mas ninguém levantou a mão. A professora inclinou a cabeça preocupada. — Ninguém?

Akutagawa viu a menina que o Oda criava olhar em sua volta hesitante.

Não sabia se levantava a mão ninguém mais levantou.

Akutagawa estalou a língua baixinho. Logo após, a mão da menina começou a subir de repente. Ela se assustou ao ver sua mão levantando mas não conseguia pará-la. Uma linha cinza estava enrolada em seu pulso.

— Oh, Sakura-chan. Consegue responder?

— Ah... Bem... Sim... É... Casa.

— Acertou, muito bem.

Os responsáveis ficaram admirados. Ao mesmo tempo que a menina respondeu, a linha que estava restringindo seu pulso soltou rapidamente e voltou pelo chão para o sobretudo do Akutagawa.

Ele estava com uma expressão indiferente.

 

Terceiro dia.

A pedido do menino mais velho, lutavam como treinamento.

— Eu vou me tornar, sem falta, muito forte como o irmão Oda. E quando eu me tornar forte vou entrar para a Agência de Detetives. Eu prometo!

O menino de quatorze anos chamado Kousuke foi salvo por Oda após se tornar órfão devido a uma disputa chamada Ryuzu no submundo. Hoje em  dia era como um irmão mais velho que botava as outras crianças em ordem. Enquanto trabalhava no restaurante, juntava dinheiro para a sua ambição.

— Eu comprei uma arma também. É de verdade.

Kousuke mostrou a pistola para ele atrás do balcão do restaurante. Era o mesmo modelo que Oda usava, uma pistola 9mm.

— Você mesmo comprou?

— Sim.

Na zona portuária havia um grande número de contrabandistas e desde que tivesse dinheiro, poderia conseguir qualquer coisa. É claro que haveriam vários criminosos quebrados que venderiam uma arma de verdade para uma criança.

Sem expressar nada, Akutagawa olhou e pistola e disse:

— Hmm. Então vamos treinar como deseja.

Kousuke foi virado de cabeça para baixo e jogado com força contra uma cerca de arame. A cerca balançou e o menino caiu rolando no chão deixando escapar um grito de dor.

— Droga! — Kousuke se apoiou em seus joelhos tremendo e levantou. Akutagawa lançou seus tecidos. Um deles se enroscou no pescoço do

Kousuke que havia tentado fugir e o derrubou no chão. O menino amarrado sem conseguir se quer respirar gritou sem conseguir emitir sua voz. Os dois haviam ido praticar num terreno aberto perto do restaurante.

— Eu que nunca consigo ganhar do Oda-senpai só consigo seguir os seus passos. Para que eu possa realizar o funeral dos meus irmãos que morreram, é algo de que não me importo.

— Eu... — Kousuke levantou cambaleando. Em seus olhos ainda havia a chama da vontade.

— Ainda não quebrou? Isso é ser jovem. Vou deixar você me atacar uma vez. Mas se eu conseguir pará-lo saiba que não vai conseguir competir com o Rakshasa do meu mundo.

— Eu aceito. Eu vou. Uryaaaaa!

Kousuke investiu. Fez parecer que era um ataque suicida sem defesa, mas logo antes de atacar Akutagawa, mudou sua trajetória. Foi para o lado raspando pelo chão e deu um chute para cima usando todos os músculos do seu corpo.

De fato, foi um forte chute que se tivesse acertado precisamente o queixo do  Akutagawa teria  feito seu cérebro tremer. Mas o sapato que deveria tê-lo acertado, apenas encostou um pouco na pele do queixo e parou, não avançando mais do que aquilo.

— Ruptura Espacial. — Akutagawa disse inexpressivo.

Um enorme punho feito de tecido lançado como contra-ataque pegou o Kousuke pelo tronco. Ele saiu voando horizontalmente como se tivesse colidido com um carro e rolou pelo chão.

— Eu odeio gente fraca. Fracos não conseguem perseguir seus sonhos.

Fracos não conseguem realizar seus desejos. O fraco que você é nunca vai conseguir seguir os passos do Oda-senpai. Irá morrer sem conseguir ser alguma coisa.

Kousuke que estava caído no chão coberto de terra e feridas gemeu mordendo os lábios.

— Você tá errado! Errado, errado, errado! Eu vou me tornar como o nii-chan!

Akutagawa moveu seu sobretudo pegando uma pistola. Era a mesma de çmm que Kousuke havia lhe mostrado orgulhoso no restaurante. Havia roubado sem o menino perceber.

— Essa é...! — Kousuke ficou pálido ao perceber que sua pistola havia sido roubada.

— E eu também odeio armas. Se exaltando a ponto de perder o discernimento, as pessoas ficam arrogantes. Mas a realidade é essa.

Akutagawa apontou a arma para sua própria testa e disparou todas as balas.

— O que-

Os tiros passaram por cima de sua orelha mas todas as balas foram obstruídas por uma parede invisível e caíram no chão.

— Balas não servem de nada nesse lado. — Akutagawa disse sem mudar sua expressão. — Independente disso, foi pelas armas... pela arrogância dada pela natureza violenta delas, que meus companheiros da favela foram mortos. Por causa disso eu tenho nojo de armas.

Akutagawa jogou a pistola. Ao mesmo tempo, a lâmina de roupa brilhou  na velocidade do som cortando inúmeros pedaços de metal no ar. Os pedaços escuros de metal se espalharam sem piedade diante dos olhos estupefatos do menino.

— Kousuke, eu não tenho direito de decidir como um fraco deve agir.  Mas se mesmo assim você aparecer na minha frente segurando uma arma,   eu vou te matar de verdade na próxima vez. — Akutagawa deu as costas e saiu andando para Kousuke que estava sem voz e tremendo.

Andou até não poder ver mais o terreno que estavam e quando virou numa esquina, Oda estava ali.

— Te causei trabalho, não foi? — Oda disse numa voz tranquila.

— Nunca mais faço isso. — Akutagawa disse de mal humor. — Destrua você mesmo os sonhos de uma criança. Com a sua competência, tenho certeza que não será trabalho.

— Não importa o quanto de força eu demonstre, só aumenta a admiração do Kousuke por mim. — Oda coçou sua bochecha preocupado. — Foi mal ter deixado o trabalho sujo pra você.

O último item da missão dada pelo Oda era fazer o Kousuke que queria entrar para o mundo deles desistir.

— A comida que aquele menino preparou no restaurante era muito boa  até. — Akutagawa disse sem olhar para o Oda. — Invés de ficar se remendando em brigas combina muito mais com ele ser um cozinheiro.

— É mesmo? O Kousuke não combina com brigas?

— Certamente. Ele jogaria sua vida fora alegremente pelo bem de seus irmãos. Esse tipo de pessoa vai dormir cedo num caixão no nosso mundo. Só sobrevivem aqueles que abandonam sua raiva pelo seu objetivo e se conduzem racionalmente.

Dizendo isso, Akutagawa começou a andar novamente.

— Tem razão. — Oda disse enquanto olhava para Akutagawa. — O centro de um humano são suas emoções. Mas o que há no centro do mundo não são emoções. Não há nada no centro do mundo. Por isso, não persiga suas emoções, Akutagawa. Não persiga a besta dentro de si. Mantenha-se em pé com suas próprias pernas, sem se segurar a nada. Dentro do possível, mantenha-se calmo e firme. Senão, não vai sobreviver.

Ouvindo isso, Akutagawa parou.

— Não me diga que... — Akutagawa encarou Oda se virando pela metade apenas. — Você montou essa farsa para que eu mesmo dissesse que só sobrevivem aqueles que abandonam sua raiva pelo seu objetivo e se conduzem racionalmente? Para que eu parasse para pensar antes de realizar precipitadamente minha vingança contra o Homem de Roupas Pretas?

— Não, eu não sou o tipo de pessoa que pensa tão longe assim. — Oda encolheu os ombros.

Akutagawa ficou por um tempo encarando o Oda calado até que disse como que despejando algo:

— Eu sou diferente daquele menino.

— Assim espero.

Akutagawa abriu a boca para responder mas não falou nada. Suas palavras foram absorvidas pelos olhos secos de Oda e sumiram para algum lugar. Desistindo de falar, Akutagawa se virou e continuou a andar.



Comentários