Shelter Blue Brasileira

Autor(a): rren


Volume 3 – Arco 2: Desejos

Capítulo 2.5: Para deixar de ser patético

Mais cedo, na noite do oitavo dia de dezembro, sob uma luz gelada que atravessava graciosamente o tecido fino das cortinas da janela do quarto, ela ficou parada observando a aparência do cômodo. Enquanto um lado se encontra na mais perfeita organização, com livros e outros utensílios de estudo, o outro reflete uma impressão oposta.

Ou pelo menos, era como deveria ser até pelo menos meio anos atrás.

No presente se encontra mais vazio em comparação àquela época. Há algumas roupas, porém longe de ser uma bagunça, como também um kit de maquiagem na sua mesa perfeitamente em ordem. Todavia, a razão disso vem devido ao desconforto atual.

— Ei, a aniversariante não pode ficar o dia todo fugindo disso — comentou uma garota de cabelos rosas usando uma boina, mostrando metade do corpo através da porta.

— Eu sei, poxa... — Ela faz beiço. — Só ainda não terminei, se acalma, sua chata.

— Ai, ai… Eu, hein, viu? — E assim Chie vai embora dramaticamente.

Rie pega a escova na cabeceira e começa a pentear seus cabelos brancos, agora começando a querer passar da altura do peito. Se for levar em conta somente um ano atrás, a sua imagem atual é completamente outra — na realidade, até mesmo a vida é. Exceto pelo cumprimento de seu penteado, seu corpo ainda é exatamente o mesmo, porém passa uma impressão de estar mais madura, por algum motivo, mesmo que seja a mesma desde lá.

O quão é diferente a Rie de dezoito anos para a de dezenove?

A princípio, ela sequer esperava estar viva para ver esse momento acontecer, contudo, uma grande mudança a fez tornar isso possível. No entanto, tudo tem seu preço. Se não fosse por ela ser alguém tão imprestável, Jun não precisaria ter iniciado aquele ataque contra os Ones, ele não teria que abdicar de seu poder para que pudessem continuar ao seu lado, as crianças do orfanato não acabariam sendo ameaçadas de morte e, agora, não seriam obrigados a não se verem em hipótese alguma.

Conheceu um garoto, se apaixonou, começou a namorá-lo, foram morar juntos e agora estão noivos. Tudo isso aconteceu em pouco tempo, chega a ser chocante. Ela viveu tão intensamente durante esse tempo, experimentou tantas coisas novas e, apesar de ter esperado um certo fim iminente, o destino que recebeu agora sequer poderia cogitar.

Uma garota, já com a vida encaminhada precisando retornar repentinamente para a casa dos pais — esse é o sentimento que corre dentro de si. Alguém que fracassou. E então está tendo que comemorar esse momento especial sem a presença dele.

Ela olha para um pacote de presente na sua cama que até então hesita em abrir. Recebeu isso de uma mulher que considerou um ídolo por muito tempo, mas agora absurdamente é sua sogra, Yuri Asano. Obviamente, não tem o nome de quem lhe enviou, mesmo assim perfeitamente de quem é. Contudo, por hora, apenas irá se concentrar em fazer a comemoração com o restante de sua família.

— O bolo já está sobre a mesa, só esperando por você. Mas peço que não se importe com o tamanho, pois foi o que deu. — Uma voz masculina, soando em tom bobo, porém reconfortante, se dirigiu a ela.

— Não têm o que se preocupar, vovô…

Na realidade, ele não é seu avô de sangue, pois Rie foi adotada por essa família desde que a sua original tentou a assassinar. Ainda assim, nesse ponto já sente que é e sempre foi sua verdadeira, desde sempre. O ferreiro Nobu que está sempre com um avental sujo, no entanto, mantendo seu cabelo grisalho penteado para trás e uma barba bem-feita, agora usa uma roupa social fora do seu padrão.

Ela olha para os dois à sua espera, abaixa a cabeça por um segundo, encolhe os ombros, morde os lábios e então a ergue com um sorriso tímido. Ficando sob a mesa os escuta cantarem o parabéns e então sopra as velas faiscantes do bolo.

Chie, com um sorriso maroto, estoura uma chuva de confetes que voam e caem em cima da garota de cabelos alvos que toma um susto e faz uma careta boba, nos quais giram a seu redor e se dissolvem como partículas. No final, Rie cai em risadas.

Aproveitando o momento em família, após comerem e conversarem por um longo tempo, seu avô colocou em um projetor na parede um álbum de fotos. Ela só foi ser adotada pelos Ueno no final da infância, portanto os momentos com sigo presente foram menores, mesmo assim, ainda o bastante para deixá-la constrangida com as recordações. Quanto a outro momento, a saudade ao ver uma imagem dela junto de Chie e sua falecida mãe Naomi.

Isso a faz perceber que mesmo que tenha acontecido com pequenos fragmentos nos quais foram costurados e juntados, conseguiu ter pequenos momentos e vivências como essas em que, a princípio, teriam sido tiradas o direto de ter completamente após ser descoberta como uma falha. Mesmo que não tenha sido da forma tradicional, ou a que esperava conseguiu ter. Isso lhe trazia um sentimento muito caloroso.

Entretanto, faltava algo muito importante neste momento tão especial. Apesar de tudo, lhe fazia ficar com um ar de vazio.

A princípio, ela não retornou a esse lar para comemorar, foi forçada a estar nesse lugar. O que antes seria uma oportunidade para apresentar aquela sua nova casa, mesmo sendo um lugar improvisado, teria que ser deixado para depois. Sendo sincera, ela sequer tem a perspectiva de quando será possível.

— E então? O que você está pretendendo fazer para o próximo ano? — Chie pergunta espontaneamente, sem demonstrar estar pensando em qualquer coisa.

— Já está acabando, né? Bem, ainda não pensei…

A realidade é que ela imaginava estar morta nesse ponto, portanto sequer cogitou no que viria depois. Uma vez que deixasse de existir, nada mais que virá adiante importaria; apenas aquilo que ficou para trás — esse era o tipo de ideia que deve durante um bom tempo.

Mas agora esse adiante existe e ela pode o agarrar com suas mãos sem que seja tomado de si. Então, por que ela ainda não se sente viva?

Irei cantar para que todos saibam que uma vez estive aqui…

Todavia, a questão é que no presente ela não irá mais ir. A motivação inicial que a movia não faz mais sentido, mesmo assim o desejo continua dentro de si.

Durante esse ano, mesmo sendo vista como aquela que debocha do legado de sua inspiração, esperando se deparar com um beco sem saída onde sequer consegue alcançar o que almeja, ela se viu mais motivada do que nunca. Uma inspiração que pegou de Jun e transformou em força para aquilo que faltava.

Esse garoto que apesar de ter lutas internas muito diferentes das dela e diversos erros em suas tentativas, sempre tenta continuar a seguir adiante. Portanto, ela sabe que pode fazer o mesmo também.

Não é mais uma questão de conseguir aprovação e reconhecimento dos outros através de suas canções — de sua existência. Contudo, de mostrar quem realmente é, expressar tudo que almeja e no fim sentir-se satisfeita, garantindo de que nada foi em vão. Não busca mais uma conclusão, porém algo contínuo e duradouro.

Sua motivação precisa ser ressignificada, no entanto, permanece com um intuito em comum que, apesar se incapaz de ter isso no momento, sabe por qual direção deve seguir para construir esse objetivo:

— Por enquanto, eu vou focar em garantir que mais crianças não sejam impedidas de viver para que, então, consiga transmitir ainda mais vida a esse mundo que já perdeu quase que completamente a sua. — Rie olhou mais uma vez para aquela imagem na parede de um momento que não irá voltar, mas que se calor permanece guardado em seu coração. — É por isso que quero continuar a cantar.

E ao fim dessa fala, a garota decidiu ir em direção ao quarto para encarar aquilo que evitou até então. Foi até o presente jogado na cama e o abriu cuidadosamente, com muito carinho e ansiedade, porém imerge nos sentimentos alegres que a mantém nesse agora e a moviam adiante.

Dele ela então retirou uma tiara de um azul-escuro quase preto, com uma textura suave e que cintilava lembrando um universo estrelado. Algo que era muito bem a cara de Jun para escolher, mas que a deixou com um forte sorriso no rosto.

E junto estava uma certa mensagem:

 

“Desde que me deu aquele cachecol, também queria poder te dar algo a altura. Bem, além de ter um visual que se destaque, exatamente do jeito que coisa, também tem um bônus de encantamento nisso que irá te proteger. Então, espero que goste e feliz aniversário! Vai vir muitos mais além desse.”

 

Não havia qualquer assinatura, entretanto Rie sabia perfeitamente de quem era.

 

* * *

 

Em uma manhã de início de verão, onde o clima inicia gélido com uma sensação de umidade trazida pelos inúmeros rios e lagos espalhados pela cidade, constituída por diversas ilhas interligadas por pontes. A presença de um céu, repleto de nuvens em que os raios refletem e se propagam entre elas ao nascer, tingindo-as de tons coloridos, ainda é uma sensação um tanto estranha para Rie, como se algo estivesse errado.

A imagem dessa imensidão, bem diante de si, chega a ser hipnotizante. Lhe dá vontade de voar e desbravar completamente esse infinito, entretanto se tratava de algo que estava proibida de fazer nesse presente.

Agora é o momento em que ela entrará de cara numa matança, para evitar uma menor. Hoje, dia 05/01/2099, dá-se início à festa entre as academias da capital Blue, feitas especialmente para Zeros se tornarem as armas da humanidade. O momento para demonstrar suas qualidades e descartar aqueles que não sirvam.

Ou pelo menos, era para ser desse jeito como até então foi, pois agora com junção dos alunos Ones, o cenário será outro. O que antes se tratava apenas um meio de entretenimento para esse povo dourado, a partir de um jogo de sobrevivência entre aqueles que sequer consideram pessoas, irão passar a fazer parte.

Seja qual for o tipo de situação que Rie terá que enfrentar ao entrar no estádio, ela não faz a menor ideia. Ao menos, após vários dias, enfim, se encontrará com Jun novamente.

Quando chegar lá, perder não é uma opção. Eu não posso perder…

Caso não vença esse campeonato, as crianças do orfanato que até então tem ajudado a tomar conta voluntariamente, serão mortas. Por se tratar de Zeros nascidos entre Ones, já foram abandonadas e deixadas sem famílias para apodrecerem naquele lugar. O preconceito ainda existe e, portanto, a chance de serem adotadas é muito baixa. Se ela não fosse uma garota de sorte, era muito provável que estivesse na mesma situação que elas quando despertou sua aura e tentaram a descartar.

Esse é um tipo de injustiça em que ela não consegue aceitar. A falta de vida que esse mundo ganha cada vez mais é algo que a partir de agora irá trazer de volta.

Entretanto, quanto ao não saber o que perante o que o destino pode lhe trazer:

— Eu finalmente encontrei você… — Uma voz escapa com uma navalha na brisa da manhã, cortando cada pensamento que tentava se manter inteiro.

Rie não precisa virar o rosto para saber de quem se trata. Aquela entonação suave, mas gélida, como se cada palavra fosse pronunciada com a ponta de uma faca, ainda habita profundamente dentro de seu interior.

Ela agarra o seu próprio pulso direito com os dedos trêmulos da mão esquerda, mantendo o olhar firme, imóvel. A tiara azul-escura repousa sobre sua cabeça como um céu noturno contido, cintilando discretamente, e a faz desejar estar ao lado daquele que a presenteou com isso, seja para se proteger, esconder, fugir.

O fato deste item ter um encantamento para proteção, foi o que deu a ideia para ser possível a criação do vestido que está usando. Curto, fluido, em um gradiente de azul intenso, com a cintura marcada por uma fita escura e mangas longas de renda preta que abraçam seus braços com desenhos graciosos e delicados. As meias com baratas também rendadas sobem até o topo das coxas, escuras e destacando sua forma, conectadas a um salto baixo firme que ecoa com cada passo. Roupas feitas para batalha, mas também para provocar.

Sabia perfeitamente o quanto isso a enfurecia.

A garota de cabelos brancos finalmente se vira, devagar. O vento levanta parte de suas mechas, e o movimento suave da saia faz parecer uma faísca de tempestade prestes a se formar. Kimiko está à sua frente, envolta em roupas de gala, douradas e leves ao mesmo tempo que é desnecessariamente reveladora, como se precisasse sempre lembrar de que mundo é. Atrás dela, a tal da sua irmã mais nova, mas não como uma sombra e sim, como uma cópia rasa, com o mesmo orgulho escorregadio que a irrita.

A mãe, ou melhor, essa bruxa observava sua figura de cima a baixo. Os olhos apertam nas mangas de renda. Reprovam o decore. Paralisam nas meias.

— Isso… é o que você escolheu vestir? — Ela cospe palavras, como se o próprio ato de verbalizar fosse sujar seus lábios.  — Acha que isso é uma aparência digna de alguém que carrega uma espada? — pergunta a mulher que veste uma roupa de corte alto, revelando todo o torso e cobrindo somente aquilo que não deve ser mostrado, dando para ver perfeitamente os seios livres de qualquer outra peça por baixo, caindo em um tecido metálico quase transparente.

Rie dá um passo à frente. A luz entre as nuvens atravessa o céu intenso e reflete entre seu penteado claro.

— Quem você está achando que é? Uma cadela feita você ainda acha que ainda pode falar comigo? — A voz dela sai baixa, firme, como uma corrente de gelo que começa a percorrer pelo chão.

Os olhos da irmã se arregalam. Um silêncio tenso se instala ao redor, os poucos presentes cessam as conversas ao perceberem o que se desenrola.

— Você pode baixar esse olhar de julgamento… — Ela continua, sem a encarar diretamente, como se falar com Kimiko fosse arrastar os próprios olhos por cacos de vidro.

Essa mulher que apenas no sangue é mãe, então avança um passo, o suficiente para que o instinto desperte. A mão descobre o pulso, então revelando uma pulseira clara com joia azul que antes não estava lá, na qual se transforma movendo-se para a palma direita como uma espada feita de um cristal metálico da cor do luz de um brilho que contém um espectro infinito. Ela empunha a arma como um raio: rápida, precisa, afiada como a lembrada das mãos que tentaram afundar uma lâmina anos atrás.

O som de ferro ecoa ao redor, rasgando o ar ao se chocar contra o chão à frente de Kimiko, como um limite desenhado.

— Se der mais um passo, serei generosa e irei cortar apenas suas pernas.

O frio surge sem aviso. Uma brisa que se intensifica em segundo, fazendo os fios do cabelo balançarem com força, colidindo em rajadas cada vez mais afiadas. O solo aos pés de Rie começa a estalar, como se o próprio ambiente respondesse à tensão que pulsa dentro dela. Espinhos de gelo emergem do chão, finos e ameaçadores, afiados o bastante para almejar manter distância.

Kimiko recua. Chega a ser cômico. A mesma mulher que a chamava de imprestável, agora contempla a garota que devia ser sua filha com a expressão de que encara algo devastador. E os olhos imbuídos pela aura a azul, a perfura de forma intensa.

Aiko, em contrapartida, no mesmo instante tenta avançar contra Rie. Contudo, em um simples mover de seu pé, uma avalanche, como se fosse um tsunami composto por cristais frígidos, dispara de forma esmagadora contra a jovem.

As pessoas presentes se assustam, enquanto outras começam a correr. O tamanho da magia que Rie usara é tão grande que se propaga até a altura dos prédios próximos. A irmã, mais nova, então fica presa, se contorcendo entre as estalagmites em uma tentativa inútil de escapar.

A mulher de cabelos pretos e vestido revelador, então, saca uma adaga chique decorada a ouro de uma pequena bolsa que carrega no ombro. Foi uma questão de segundos para que a lâmina de Rie traçasse uma linha, arranhado do final do estômago até o centro do peito de Kimiko. O sangue tenta correr, mas congela em um rastro ardentemente frio que começa a se propagar ao redor da ponta, levemente cravada, queimando em uma fumaça refrescante.

— O problema de você é ver qualquer feminilidade como fraqueza, mas vive se arrastando, por aí feito uma vadia de vitrine. Que cantar, que se arrumar, que se expressar é se diminuir… — Uma parede de gelo começa a se formar enquanto ela fala. — Mas o que me impediu de morrer… foram essas coisas. O que me salvou foi justamente o que você sempre tentou apagar em mim…

A força da aura dela se intensifica. Uma cor azul no cabelo passa a subir, tingindo os fios nas pontas suavemente. O chão ao redor de Kimiko faz estalos altos, e a mulher começa a ser tomada por geada. O ar se torna cortante. Rie sente os olhos arderem de tanto foco, mas não pisca. Não pode piscar.

Todos ao redor estão em silêncio. Um soldado, ao longe, recua com medo. A irmã biológica tenta sussurrar algo, mas as palavras congelam com o bafo diante da parede gelo. Kimiko, ainda orgulhosa, não diz nada.

— Sabe o que é engraçado? Se Mikio é considerado como príncipe, eu estou noiva do outro e isso é um furo na própria lei de vocês que não podem negar, por mais que não queriam ele ainda pode reinar. — A voz de Rie agora cresce, carregada em um tom de deboche que não precisa esconder. — E como já derrotou o outro em batalha, conforme a tradição, agora é o primeiro na lista de sucessão. Mesmo assim, ainda não muda que agora, hierarquicamente, eu estou acima de você. Então, coloque-se no seu lugar.

Rie agora se aproxima da barreira de temperatura mínima, apoiando a mão sobre ela com delicadeza. E quanto recua, ela se desfaz em pó de neve que começa a se dissolver como partículas luminosas.

— Então não ouse mais me procurar… ou da próxima vez, eu te mato. Uma megera fracote feito você não presta nem para me fazer respirar antes de te transformar em pó.

Sem esperar resposta, Rie vira-se. O vestido ondula como se deixasse para trás todas as palavras que sempre quis dizer. A tiara cintila discretamente com cada passo, e conforme o som do salta vai ecoando ao atingir o solo, toda a magia na forma de gelo ao seu redor vai se dissipando com fumaça fria. Mas mesmo com o caminho livre, ela sabe: não saiu ilesa.

As mãos ainda tremem. Os olhos ainda doem. A raiva… ainda pulsa. Mas pela primeira vez ela não abaixou a cabeça.

 

* * *

 

O teto de vidro do interior do edifício vibra em tons artificiais, tingindo de azuis metálicos e dourados pulsantes. Luzes dançam como serpentes acima do estádio colossal, refletindo nas superfícies de aço das arquibancadas elencadas.

Um rugido coletivo sobe da multidão, misturando ansiedade, ódio e euforia. Jun respira fundo. A eletricidade do lugar parece se enroscar em seus nervos.

Está sozinho no setor reservado aos participantes. Os olhos percorrem o espaço sem pressa, mas há uma inquietação em seu peito. Rie deveria estar por perto. Ela está demorando mais do que o esperado, mas ele ainda não se questiona. Parte dela já se acostumou com a ausência — forçada ou não. Ficar distante está começando a se tornar normal. E também não é como se ele pudesse ver fora da arena.

No centro do estádio, uma mulher caminha com passos amplos. O microfone em sua mão vibra quando ela fala. Sua voz é clara, quase doce demais para o peso das palavras que está prestes a projetar:

— Sejam bem-vindos à edição deste ano da Festa das Academias! — O som explode, reverberando no metal sob seus pés. — E desta vez, com uma novidade digna de nova era!

Jun estreita os olhos. A luz dos holofotes reflete nas pupilas, forçando-o a semicerrar as pálpebras. Acima da narradora, uma cabine de vidro repousa suspensa. Ele já sabe o que há lá dentro. Consegue sentir, mesmo à distância, o olhar que o atravessa como se fosse uma lança. A rainha. Sua avó. Imóvel, inatingível, observando tudo de cima.

— Também é uma honra que cinco dos cavaleiros reais… — continua a narradora. — A elite da elite, o ápice do Ones, estarão participando do evento!

Um silêncio breve. Tenso, como se algo no ar fizesse a multidão se engasgar por um segundo.

Cinco figuras aparecem em meio a uma névoa artificial do estágio. Não são apresentados propriamente, não dizem sequer uma palavra. Só estão lá, como sombras lapidadas em perfeição. Três garotos, duas garotas. A idade, no entanto… Jun se vê desacreditado ao reparar melhor. São jovens, provavelmente da mesma idade que ele.

Como isso é possível?

Entre tantas variáveis, tantas probabilidades e, ainda assim, todos com a mesma faixa etária. Aquilo o incomoda de uma forma que não consegue expressar. Um padrão forçado demais, como se fosse… cultivado? Não é possível que todos sejam prodígios.

Ele sacode a cabeça, mas a confusão não se desfaz, e a narradora continua com a animação programada:

— Como de costume, o prêmio da festa é… o cumprimento de um desejo! Qualquer um! Absolutamente qualquer um!

A frase paira no ar como um isca envenenada. Ao redor, os sorrisos dos Ones nos assentos superiores ganham empolgação. Talvez para eles seja verdade, mas para os Zeros obviamente há um limite claro. É como se pudessem desejar nunca mais lutar, ou que todos não precisam mais enfrentar as bestas, ou que parem de serem tratados como meras ferramentas; apenas será possível alquilo de mesmo valor que eles.

E então, com tudo apresentado, no campo abaixo um casal se posiciona. Os nomes não são ditos, mas aparecem em uma tela de placar que Jun não se presta a ler. Suas roupas são nada fora do comum, um uniforme escolar reforçado para batalha da cor preta, em comparação com os da academia dele que são brancos, assim revelando que são do outro lado da cidade.

Ele nota suas posturas contidas, pela forma como os dois mantêm os olhos no chão até o último infante. No outro lado, um casal de Ones se move com elegância e orgulho. Sorrisos entediados, como se isso fosse algo desinteressante. Um aquecimento.

O sinal de início ecoa com intensidade e assim, o terreno da arena começa a se transformar. Uma floresta artificial se forma, junto de obstáculos — o exemplo prático do uso de uma magia de materialização. É muito provável que também haja o auxílio de tecnologia para tornar isso possível, mas ainda é surpreendente que o cenário vá mudar para um novo durante cada luta diferente.

Realmente isso é um espetáculo. Uma festa…

O casal de Zeros avança primeiro, como se o próprio medo os empurrasse. Os movimentos são bem treinados e precisos. Há um brilho de determinação nos olhos da garota, enquanto o garoto recita uma sequência de gestos e em segundo, uma conjuração é feita: um jato cortante de ar comprimido perfura o escudo do One à frente. Um golpe certeiro e direto que faz o estádio em silêncio ficar supresso.

Esse impacto faz o One ser jogado no chão. Ele desliza metros sobre o campo metálico com a marca do ataque brilhando sobre o torço como uma cicatriz acesa. E assim é acertado pela espada da Zero. Nesse meio tempo, enquanto a garota do lado dourado se vê surpresa, ela é rapidamente golpeada pela adaga do oponente devido à falta de atenção.

Foram um acerto em cada um deles. Uma clara vitória, sem sombra de dúvidas, inesperado o bastante por acontecer por parte daqueles que sequer são considerados humanos. Mas não há qualquer som.

Nenhum anúncio. Nenhum sinal.

A narradora apenas sorri, e Jun sente o estômago afundar de uma vez.

O One se levanta. Seu sorriso agora é outro, escuro e doloroso de se ver. Ele gira a arma em mãos e caminha em direção aos Zeros como quem volta de um passeio, não de um combate. A garota recua, enquanto o garoto estende o braço para protegê-la, mas já está cansado e suado. Aquele feitiço que a princípio se mostrou impressionante, agora revela ter drenado completamente sua energia.

E assim, diante deles, a realidade se esclarece: Não é uma luta. É um abate. E agora… só resta esperar o fim.

Nesse instante, os Ones atacam. O som que se segue é seco, apenas um estalo. Os ossos quebram. A moça, desse modo, cai primeiro com seus olhos vidrados nas mãos que tentam conter o sangue que escapa do abdômen. E no segundo seguinte, a lâmina do segundo atravessa o peito do Zero restante, e o brilho se apaga dos olhos dele quase que imediatamente.

O vermelho escorre, pinga, derrama e se espalha, em meio ao impacto do corpo no solo. A queda ecoa em um som seco, decepcionante e incrivelmente ridículo.

E o estádio explode em aplausos.

A multidão de Ones vibra como uma tempestade satisfeita. Gritam, pulam, sorriem, comemoram, celebram. Os Zeros nas arquibancadas ficam em silêncio. Alguns desviam o olhar, já outros apenas fecham os punhos com força.

Jun não se move. O coração bate forte demais, e o sangue parece mais espesso dentro das veias. Ele observa os corpos sendo retirados com eficiência cirúrgica, como se fossem parte de uma encenação. Como se nunca tivessem estado vivos.

Na cabine alta, a rainha permanece a observar, imóvel, intocável, equiparável a uma divindade. A garganta de Jun seca. Ele sente de forma física o peso que iniciou.

Aquele que por sua presença na academia, por optar não se esconder outra vez, trouxe a atenção do irmão com o título de príncipe e então ocasionou a união dos dois tipos de alunos. Esse que deixou um caos para trás na cidade dos Ones, eliminado a muralha e última barreira que os separava, destruindo o falso céu no final — o maior símbolo dessa realidade sob uma falsa ilusão.

Um fim que ele almeja alcançar e assim fez, independente do que fosse. O desejo de mudar o mundo. O desejo que está resultando no desfecho que acabou de presenciar nesta festa. Ele já não tem certeza se algum desejo justifica isso.

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