Volume 1
Capítulo 2: Figura rancorosa.
[Sexta-feira 09 de fevereiro de 2402, 22:40 da noite]
Das sombras do armazém, seis humanos corriam em minha direção como cães. Pútridos, isso é uma reanimação de cadáver! Milo tinha um sorriso confiante no rosto enquanto observava seus servos.
Esse é o “pequeno preço” que você teve que pagar?
Uma força invisível passou por mim. As criaturas foram empurradas antes que pudessem se aproximar. Marcelo tinha um livro aberto nas mãos e um olhar astuto em seu rosto. Fagulhas caíram dos braseiros enquanto algumas criaturas se levantavam. Milo olhava para Marcelo com desgosto.
— Vou atrair as criaturas, cuide de Milo — disse Marcelo, virando uma página do seu livro.
Avançando em direção a Milo, três das seis criaturas me ignoraram e as demais ficaram ao redor da Aberração. Deixe a preocupação de lado e mantenha o foco.
Foco!
Erguendo a espada durante a corrida, minha estocada foi recebida por uma das criaturas que serviu como escudo humano enquanto Milo se afastava.
O som de passos vindo por trás era de um outro pútrido tentando atacar. Puxando a lâmina do escudo humano, agachei para realizar um corte circular na cabeça do atacante. O topo de sua cabeça voou e seu corpo tombou para o lado antes de morrer definitivamente… de novo.
É estranho como lutar para sobreviver parecia errado quando seu inimigo nem estava vivo. Vender-se para a obscuridade torna algo ruim em uma coisa pior. Essas pessoas nem mortas tem paz, seus corpos violados pela malícia de um Anfitrião.
Enquanto me erguia, o escudo humano avançou contra mim em uma tentativa de abraço.
Movendo a espada por dentro do seu golpe junto ao meu corpo. Cortei seu braço com um giro e estoquei sua cabeça por trás. O corpo morto do humanoide caiu atrás de mim enquanto direcionava meu olhar para frente.
Milo estava a metros observando com um olhar difícil de discernir. O pútrido que o rodeava estava mostrando os dentes em minha direção. É realmente agoniante pensar que muitos de nós terminam como esse cretino. Avançando em sua direção, o pútrido se ergueu para se colocar na frente de meu corte.
Idiota!
Manobrando a espada desferi outro corte diagonal no braço da criatura. O reanimado ainda tentava morder ou agarrar com seu braço restante. Aproximando-me dela, seu cheiro rançoso fazia meus olhos lacrimejarem. Erguendo a espada em uma estocada de baixo, impalei sua cabeça pela mandíbula.
O corpo morto caiu ante meus pés. Olhando melhor agora, esse cadáver parece ser bem jovem e estar bem fresco… Erguendo a cabeça, Milo fazia uma carranca para mim, mas se transformou em um mero olhar de raiva diante do meu. Isso é um preço pequeno? Posso acabar com você com a consciência livre de culpa.
Antes que eu pudesse dar um passo à frente, um lençol gélido tomou o lugar. Linhas negras se sobrepuseram acima das vermelhas, formando um hexágono comigo, Marcelo e Milo dentro. Olhando para Marcelo, as criaturas ao seu redor estavam estáticas e caíram, folheou seu livro e andava sem pressa pelo lugar enquanto entoava algo.
Seu olhar se ergueu para encontrar o meu. Um sorriso apareceu brevemente antes de fechar o livro e olhar para Milo. O que você está tramando? A linha negra se intensificou e os símbolos que Milo tinha feito desapareciam.
— NÃO! SEU FILHO…
Em meio ao grito de Milo, seus dentes se fecharam ao redor da lingua.
— Dentro das Seis Inferior, ofensas ou desrespeito é proibido — explicou Marcelo. — Dentro das Seis inferiores, rituais com teor malicioso são proibidos… Por tanto, serão desfeitos.
As linhas vermelhas foram extintas do chão. O hexágono negro se intensificava ainda mais enquanto Milo se debatia tentando abrir a boca. Dentro das Seis Inferiores, Milo ficaria sem seus cadáveres animados ou coisas do gênero e isso somado a sua inexperiência em lutas facilitaria as coisas.
Pelo que me foi dito.
Mas eu deveria apenas matá-lo? Se a coisa que fez isso com ele e deu esses conhecimentos obscuros está a solta, precisamos parar ela! Mas isso apenas atrasará minha aposentadoria… Que merda. Entre a cruz e a espada, preciso fazer o que é certo, eu acho.
Em posição, avancei na direção de Milo, quebrando a distância entre nós. Ele desviou do primeiro corte. Realocando meus pés, realizei um segundo, dessa vez vertical, em seu pescoço. Uma fina linha vermelha escorreu pela sua camisa.
Olhando-me com desdém enquanto segurava o pescoço, avançou e tentou dar um soco com o braço enegrecido. Aparando o golpe, um pequeno movimento em seu braço esquerdo foi o bastante para perceber o segundo golpe. Que porra é… Seu braço esquerdo tinha uma ponta óssea projetada acima do antebraço, mas foi aparada a tempo.
Chutando seu joelho, ele virou para trás com um estalo antes de retornar para o lugar com o mesmo som molhado. Com um grito bestial, Milo avançou novamente, desferindo inúmeros socos. Defendendo-me com a lâmina, seus golpes eram pesados, mas infantis e sem ritmo ou sincronia.
Após segundos no impasse, sua expressão e seus socos ficaram cansados. É mais difícil do que parece, né? Enquanto me socava com seu braço esquerdo, redirecionei seu soco e uma abertura nasceu para que traçasse a lâmina em seu ombro. O braço caiu no chão e um grito agudo correu pelo local.
A luz dos braseiros iluminavam o velho homem segurando seu ombro enquanto sangue corria e esguichava por entre seus dedos. Vamos acabar com isso. Abaixando a espada, avancei em sua direção. Milo tentou prever o ataque colocando o braço negro a sua frente, mas com um agachar em meio a corrida, realizei um corte circular em suas pernas.
Sangue manchou o chão, junto a uma coisa parecida com sangue alaranjado que saia de suas feridas. Marcelo aproximava-se devagar e entoou uma breve palavra. As linhas negras se desfizeram junto ao lençol gélido, a luz dos braseiros ficavam mais fortes e seu cheiro de incenso começava a se espalhar.
Milo olhava inexpressivo para o teto. Seu braço negro se contorcia e cada vez mais perdia sua forma. Em seu peito, um leve brilho laranja surgiu, o brilho piscava como o bater do seu coração enquanto murmurava algo e lágrimas desciam por seus olhos. Realmente lastimável.
— Onde posso encontrar esse Pólios? — Aproximei-me de Milo.
— Você… está… satisfeita? — murmurou.
— Essa foi sua escolha, e, portanto, sua culpa.
Um riso forçado seguido por tosses deixou seu semblante miserável ainda pior. Erguendo a espada acima do ponto brilhante em seu peito, dei-lhe um olhar frio enquanto aplicava uma leve força.
— Você pode morrer como a aberração que você se tornou, ou fale onde posso encontrar quem fez isso e preserve o pouco da humanidade que lhe restou.
— Vá… para… o… Agh!
Seu corpo foi coberto por chamas quando a espada o empalou. Marcelo fechou seu livro e os demais corpos no lugar foram cobertos pela mesma chama. O silêncio foi seguido por pequenos chiados enquanto cada canto do armazém se tornava visível pela luz do fogo.
Uma ameaça a menos e uma nova ameaça para se preocupar. Agh!
No silêncio e estalos, sons de passos viam do telhado. Olhei para Marcelo e apontei para cima, ele gesticulou que talvez houvesse um comparsa. Talvez seja a presença que senti nos observando, hm. Ficando abaixo do som, Marcelo abriu novamente seu livro e observava ansioso.
Guardando minha espada e sacando minha arma. Concentrei-me, fechando os olhos e, quando os abri de novo, o mundo borrado assumiu o lugar. Acima de mim, no telhado, uma massa incolor rodeada de partículas vermelhas estava estática. Mirando a arma, o breve silêncio antes do disparo foi o suficiente para me preparar. Respirar e…
Bang!
— Agh!... — grunhiu a criatura.
O som de seu corpo descendo o telhado rolando era quase cômico. Marcelo olhou para mim como se esperasse uma ordem. Avancei para fora do armazém e o puxei pelo casaco até a porta. O ar fresco seguido pela brisa no campo verde era gratificante. No pasto, uma figura humanoide corria até as árvores.
Seguindo a criatura pelo pasto molhado até a floresta, um rastro laranja fresco se destacava na grama. Eu o acertei! Mas a figura ferida ainda corria mais do que nós. Refazendo todo trajeto de volta, desde os pastos verdes molhados e a cidade abandonada, a figura seguiu fielmente a trilha que havíamos seguido antes.
Eu acertei a cabeça! Como ela ainda está fugindo? Que merda!
Bang!
Chegando na ponte. Meu disparo fez a criatura grunhir novamente, mas continuou à nossa frente. Esse bicho é muito rápido! Minhas pernas estavam ficando dormentes à medida que eu ofegava. Parando em cima da ponte, Marcelo me usava como apoio enquanto ofegava feito um porco.
Caminhando devagar na trilha até a estrada, o rastro do sangue vermelho caramelo brilhava no escuro. Essa gosma é a mesma que Milo estava liberando, que nojo.
Boom!
O som de uma explosão correu pela floresta. Foi na direção do carro! Iniciando novamente a corrida, a voz de Marcelo resmungando se perdeu atrás de mim. Ainda no bosque, o brilho das chamas atravessava as árvores para encontrar meus olhos. Meu carro… Chegando na estrada de pedras, meu carro estava em chamas.
— Puta… merda… Eu tô cansado — reclamou Marcelo.
Ignorando-o, olhei para ambos os lados da estrada e bosque. Não tem gosma em nenhum lugar! Para onde ele foi? A mata se iluminava com a fogueira caseira e a luz da lua. E por que tinha que ser o meu carro?! Que merda! A silhueta da lataria se destacava como uma sombra em meio às chamas.
A garoa fria me consolava enquanto estava de olhos fechados. Talvez eu possa mentir dizendo que foi roubado… merda. As nuvens foram bem sucedidas em cobrir a lua, mas seu brilho ainda estava visível. Matamos uma coisa e outra escapou, essa noite foi tudo, menos como eu tinha imaginado.
— Eu estacionei perto da rodovia… vamos andando? — Marcelo cutucou meu ombro. — Ou tá afim de assar uma carne aqui? A gente pode caçar e…
Um olhar fulminante foi o bastante para ele calar a boca. Andando pela estrada de brita com seus passos vindo por trás, ainda podia ouvir uma risada baixa vindo dele. Idiota, espero que seu carro também tenha explodido! Agora vamos ter que ir na base de qualquer jeito e isso vai atrasar ainda mais meus planos.
Merda.
Minutos na estrada feita com pedras, o som de nossos passos era semelhante a mastigação. Cercada pelas árvores e a garoa, chegamos em um posto de gasolina. Puxando Marcelo pela gola, o levei até seu carro para apressar as coisas. Ele murmurava reclamações enquanto saía para a rodovia. Ignorando-o, foquei em entender o que aconteceu hoje.
Milo realizaria um ritual naquele armazém. Mas o sentido dele ter nos chamado só é lógico se fossemos a oferenda para a coisa que ele estava servindo. De qualquer forma, a criatura que fugiu tinha inteligência o suficiente para destruir nosso meio de locomoção.
Isso é ruim, muito ruim.
Os faróis na rodovia brilhavam através do vidro molhado. Só queria que as coisas acabassem rápido, tudo vai se estender mais longe do que gostaria. Afinal… uma entidade celeste sempre é um mal sinal. Espero que na base eu possa escapar dessa investigação.
Espero muito que sim!
Será que eles vão ficar irritados se eu atrasar um pouco? Agh! A voz distorcida de Milo falando deles me dá ânsia de vômito. Acho que só preciso fingir que estou cansada, talvez eles fiquem com pena. Juro que mentir pra eles me deixa mal! Mas eu… hm.
Que na casamata as coisas sejam mais simples.